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A nova parceria para a aceleração de medicamentos – Muito barulho por (quase) nada?

Reinaldo Guimarães*

O NIH (National Institutes of Health), maior agência de fomento à pesquisa no mundo, dedicada ao campo da saúde humana, anunciou ontem (4 de fevereiro) a constituição de um projeto piloto de parceria entre a agência, o FDA (a ANVISA dos EUA), dez grandes empresas farmacêuticas globais e seis associações civis de proteção a pacientes, cujo objetivo é “transformar o atual modelo de desenvolver novos diagnósticos e tratamentos mediante a identificação e validação conjuntas de alvos biológicos promissores de doenças” (em tradução livre) . O piloto envolve a Doença de Alzheimer, o Diabetes Tipo 2, a Artrite Reumatoide e o Lupus¹.

 

Em junho do ano passado, Ciência e Saúde Coletiva publicou um artigo de minha autoria intitulado: Pesquisa Translacional: Uma Interpretação². Nele, eu discutia as razões e a racionalidade desse ‘novo’ modelo de gestão da pesquisa em saúde, lançado pelo NIH em meados da década passada, cujo objetivo central é acelerar a transição de conhecimento de base científica das bancadas de pesquisa para o desenvolvimento e produção de novos medicamentos e outros produtos industriais de saúde.

 

No artigo, é apresentada uma hipótese sobre a origem desse movimento e são discutidos alguns tópicos relativos a ele. A sua definição e o seu escopo, as razões de ter nascido nos EUA e o porquê de ter nascido neste século. E proposto também que a concepção e a construção da pesquisa translacional decorreram de uma dupla determinação. Pelo lado da oferta de conhecimento, da verificação de um impacto aquém do desejável produzido pela pesquisa das ‘ômicas’ (genômica, proteômica, etc.) no campo do desenvolvimento e produção de novos e inovadores produtos para a saúde, mesmo tendo sido essas ‘ômicas’ o principal alvo dos financiamentos do NIH nos últimos 20 anos. E pelo lado da demanda (a indústria), pela profunda crise pelas quais passa a indústria farmacêutica global, decorrente de, no mínimo, três fatores: (1) uma diminuição do registro de moléculas efetivamente inovadoras, principalmente na rota de síntese química; (2) o aumento exponencial dos custos de lançamento de novos produtos, em particular os custos da pesquisa clínica; (3) o encerramento do período de proteção patentária de um número significativo de medicamentos geradores de grandes receitas financeiras, substituídos por genéricos pelo mundo afora.

 

Os Estados Unidos são líderes mundiais na descoberta, desenvolvimento, patenteamento, registro, produção e vendas de medicamentos. Seu mercado, em 2011 (US$ 320 bilhões em vendas), respondeu por 37,4% do mercado coberto pelas 20 maiores empresas globais (US$ 855 bilhões – cerca de 80% do mercado farmacêutico mundial). No mesmo ano, dentre as dez maiores empresas biofarmacêuticas no mundo, quatro (Pfizer, Merck, Johnson & Johnson e Abbott) eram norte-americanas e responderam por cerca de 20% do mercado global³ . Em 2008 o setor respondia por 655 mil empregos diretos e 905 mil indiretos, contribuindo com US$ 114 bilhões para o PIB dos Estados Unidos. Uma crise nesse segmento não é um tema de interesse apenas do setor. É um assunto de impacto nacional. A indústria farmacêutica é uma das maiores, senão a maior lobista nos EUA. Desde 1998, desembolsou US$ 3,2 bilhões com lobbies e US$ 183 milhões com doações de campanhas eleitorais 4.

 

Considero discutível a acusação de ‘ineficiência translacional’ da pesquisa das ‘ômicas’. Talvez a frustração decorra muito mais do marketing que vem cercando seu lento avanço, acenando quase sempre com promessas que não se coadunam com as dificuldades de prever o futuro em matéria científica. Mas o fato é que o NIH, locomotiva do avanço da pesquisa em saúde nos EUA, pode ter sido vítima de um ‘veneno’ que ele mesmo ajudou a produzir. Para garantir o aumento de seus orçamentos junto ao governo, lançou mão desse marketing pouco ‘científico’, acenando aos congressistas e ao executivo com avanços mirabolantes e rápidos. Como estes não vieram, passou a ser alvo de críticas do próprio governo expressas, por exemplo, num orçamento que não cresce nem mesmo nominalmente nos últimos anos 5.

 

Quanto à crise da ‘Big Pharma’, os remédios propostos para superá-la foram inúmeros. Alguns bastante positivos como, por exemplo, a ‘descriminalização’ dos medicamentos genéricos. Outros, impensáveis numa indústria que se autodenomina ética como, por exemplo, a utilização de práticas de comercialização nada éticas (propaganda off-label,  fabricação de resultados em ensaios clínicos e suborno). Mas no assunto em tela, gostaria de me fixar em apenas um, que acho que tem relação com ele.

 

Entre 2008 e 2012, foram realizadas 907 operações de fusão/aquisição de empresas farmacêuticas, num valor de US$ 437 bilhões 6. Esses movimentos empresariais não objetivaram fundamentalmente comprar fábricas, estoques de produtos, instalações ou mesmo cérebros. O interesse maior é comprar o estoque de moléculas promissoras (pipelines) de outra empresa e esse interesse decorre da já mencionada diminuição do registro de moléculas inovadoras num cenário de aumento de custos para registrá-las. Não me parece fora de propósito associar a nova proposta de parceria entre empresas e o NIH como resultado de um esgotamento da estratégia de fusões e aquisições. Não pela falta de apetite, mas talvez pela falta de pipelines que valham a pena. E, numa visão que reconheço ser algo conspiratória, para dar uma organizada no mercado, haja vista a possibilidade de ataques especulativos entre empresas ‘grandes demais para serem compradas ou fundidas’.

 

Entendo que a recém-lançada ‘Parceria para a Aceleração de Medicamentos’ deve ser interpretada à luz desse contexto de dupla determinação ou, se preferirmos, de mais um passo para a estratégia da pesquisa translacional. Como mais uma inciativa para tentar acelerar a ‘translação’ das bancadas de pesquisa para o mundo do desenvolvimento, produção e mercado. Agora com um novo e importante ingrediente, que é o envolvimento institucional do lado da demanda (a indústria) com os esforços de turbinar a oferta de conhecimento novo gerado na bancada. Se for bem sucedido, é um inegável avanço. Entretanto, algumas ponderações devem ser feitas.

 

(1) O acordo incide sobre uma parte fundamental do processo de criação de um medicamento novo, que é a etapa de invenção. Se por um lado ela é fundamental, por outro é a mais barata. Não terá qualquer impacto, pelo menos nos curto ou médio prazos, na solução das dificuldades da Big Pharma.

 

(2) Os recursos financeiros envolvidos são ínfimos, se comparados à escala de valores postos na mesa quando se trata de indústria farmacêutica, conforme se pode verificar em algumas cifras mencionadas neste texto. A parceria envolve US$ 229,5 milhões em cinco anos, o que fornece uma média de US$ 46 milhões por ano.

 

(3) A maior parte dos recursos financeiros (US$ 118,9 milhões) advirá do NIH. Dinheiro público, portanto. Custa crer que essa injeção de novos recursos nos grupos de pesquisa nas universidades e institutos venha a ter algum impacto na melhoria da performance dos mesmos. Aliás, no caso dos EUA e da pesquisa translacional, pode-se duvidar se as dificuldades na translação decorrem principalmente da falta de recursos financeiros. Talvez estejam localizadas no ritmo inerente ao desenvolvimento científico de uma área nova como são as ‘ômicas’.

 

Uma nota final, que não poderia deixar de comentar. Há 11 anos, no ambiente da Organização Mundial da Saúde, se verifica um debate sobre estímulos da indústria farmacêutica destinados à pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos para doenças que atingem desproporcionalmente as populações de países em desenvolvimento. As resistências dos países onde estão localizadas as matrizes dessas mesmas empresas (e outras) que celebraram agora essa parceria têm sido imensas. O máximo a que se chegou foi a um frágil e inconcluso acordo sobre um pool de patentes, bem como a uma proposta de acordo multilateral entre governos para a criação de um fundo financeiro para o financiamento de pesquisa envolvendo essas doenças. No meu julgamento, de muito difícil implementação.

 

* Reinaldo Guimarães é médico sanitarista e diretor de Propriedade Intelectual da ABIFINA

1 – www.nih.gov/science/amp/pdf/AMP-FactSheet.pdf‎

2 – Guimarães, R. – Pesquisa Translacional: uma interpretação. Ciência e Saúde Coletiva, 18(6)1731-1744, 2013

http://www.imshealth.com/portal/ims/menuitem.5ad1c081663fdf9b41d84b903208c22a/?vgnextoid=fbc65890d33ee210VgnVCM10000071812ca2RCRD

4 – Huff Post Politics. Auction 2012: How Drug Companies Game Washington.  Disponível em:  www.huffingtonpost.com/2012/02/01auction-2012-drug-companies-lobby_n_1245543.html

5 – http://www.aaas.org/page/guide-rd-funding-data-%E2%80%93-historical-data

6  – Fierce Pharma, 13 fevereiro 2013. http://www.fiercepharma.com/special-reports/top-biopharma-ma-deals-2012

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