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‘Saúde pública absorve os efeitos da violência’ diz Ferdinando Ferreira

Redução das taxas de homicídio no país passa pela restrição do acesso a armas de fogo, indicam novos estudos

A jornalista Christina Queiroz ouviu o sociólogo José Ferdinando Ramos Ferreira, coordenador do Grupo Temático Violência e Saúde da Abrasco na reportagem Desarmando a violência da edição de julho da revista Pesquisa FAPESP. A última edição do Atlas da Violência, do Ipea, mostra que o prejuízo de R$ 373 bilhões ocasionado em 2017 pela violência no país é composto de múltiplos gastos, que envolvem, dentre outros, o sistema prisional, a segurança pública e privada, e o Sistema Único de Saúde (SUS). No caso do SUS, somente as internações motivadas por ferimentos com armas de fogo custaram R$ 190 milhões aos cofres públicos, entre 2015 e 2018. “A saúde pública absorve os efeitos da violência armada, que acabam drenando recursos que poderiam ser utilizados à aquisição de novas tecnologias e medicamentos”, enfatiza Ferdinando. Ele lembra que a vítima de arma de fogo, quando sobrevive, necessita de atendimento quase sempre complexo, com internação e sucessivos tratamentos e terapias que possibilitem sua recuperação física e mental. Confira a reportagem na íntegra:

Desarmando a violência Redução das taxas de homicídio no país passa pela restrição do acesso a armas de fogo, indicam novos estudos

Entre 1990 e 2015 cerca de 2,5 milhões de pessoas morreram em decorrência de ferimentos provocados por armas de fogo no Brasil, Colômbia, Estados Unidos e México. O dado é de estudo desenvolvido por instituições canadenses, publicado em maio na Lancet Public Health. O trabalho indica também que a mortalidade por armas de fogo é maior nos países em que seu acesso é facilitado. No intervalo de tempo pesquisado, a mortalidade por armas de fogo decresceu nos Estados Unidos – embora continue entre as mais altas do mundo – e na Colômbia e aumentou no México e no Brasil, que desde 2003 tem uma legislação restritiva em relação ao acesso, mas no qual ainda há um grande contingente de armas em circulação. Em 2017, os prejuízos causados no Brasil pela violência chegaram a R$ 373 bilhões, ou 6% do Produto Interno Bruto (PIB), revela o Atlas da Violência, recém-divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

“O Brasil é o país com a maior quantidade de assassinatos no mundo, em números absolutos. Só em 2017 foram 65,6 mil homicídios; 74,4% dessas mortes foram causadas por armas de fogo”, informa Bruno Paes Manso, cientista político e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), ao lembrar que o percentual médio correspondente na Europa é de 18%. Segundo a pesquisa “Mortalidade global por armas de fogo”, realizada pelo Institute for Health Metrics and Evaluation, com dados de 195 países em um intervalo de 16 anos, o Brasil lidera o ranking, somando 43,2 mil assassinatos por armas de fogo apenas em 2016. Em seguida estão os Estados Unidos, com 37,2 mil mortes.

São múltiplas as razões que permitem compreender a alta incidência de mortes por armas de fogo no Brasil. Uma delas envolve o acelerado processo de urbanização do país, entre as décadas de 1970 e 1980. O crescimento exponencial das cidades foi acompanhado por crises econômicas, pelo aumento da desigualdade e da criminalidade. “A partir da década de 1980, houve uma espécie de corrida armamentista”, observa o economista Daniel Cerqueira, do Ipea. “Naquela época, era possível adquirir armas em lojas de departamento”, recorda. Progressivamente aumentaram os homicídios por armas de fogo. Assim, se em 1980 esses assassinatos atingiram 6,1 mil pessoas no país, em 2000, somavam 30,8 mil mortes, conforme levantamento do Ipea feito com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde.

Preocupadas com a escalada da violência, diferentes unidades da federação, entre elas São Paulo, passaram a discutir medidas de restrição ao acesso a armas de fogo. Em 2003, foi aprovada a Lei Federal nº 10.826, conhecida como Estatuto do Desarmamento, para restringir o porte e regulamentar a posse de armas de fogo. Dados do Instituto Sou da Paz indicam que, entre 1997 e 2003, 926 mil armas de fogo foram comercializadas no país – uma média de 132 mil unidades ao ano. A partir de 2004, a média anual caiu para 53 mil unidades.

Desde então, a taxa média anual de crescimento de assassinatos por armas de fogo vem caindo no país. “Com o advento do estatuto, houve uma quebra de tendência na velocidade de crescimento das mortes por armas de fogo. Se nos 23 anos anteriores à lei esse avanço era de 8,1% ao ano, a partir de 2004 passou a ser de 2,2% anuais, até 2014”, relata Cerqueira, ao estimar em 133 mil as vidas preservadas. O economista não tem dúvidas a respeito do papel desempenhado pela legislação. “Se a quebra de tendência tivesse sido causada por fatores externos ao estatuto, como razões macroeconômicas ou demográficas, o país teria observado efeitos similares nos indicadores de violência letal perpetrada por outros meios, o que não ocorreu, mas apenas nas mortes causadas por arma de fogo e exatamente após 2003”, analisa. “Sem o estatuto, a taxa de homicídios no país entre 2003 e 2017 teria sido, no mínimo, 12% mais alta”, estima.

74% dos homicídios no brasil em 2017 foram causados por armas de fogo

Para identificar o caminho percorrido por armas legalmente comercializadas, o Instituto Sou da Paz rastreou, em sua mais recente pesquisa, realizada em Goiás, o itinerário de 8,9 mil unidades apreendidas pela polícia, entre junho de 2016 e dezembro de 2017. “Identificamos que 73% das armas haviam sido fabricadas antes da aprovação do estatuto, o que indica que o armamento da população, nas décadas de 1980 e 1990, segue causando impacto na violência do país até hoje”, argumenta Bruno Langeani, advogado do instituto. Também se constatou que pelo menos um terço das armas apreendidas no estado tinha registro legal, antes de elas serem desviadas para atividades criminosas. Em outro estudo realizado em São Paulo, pela mesma organização não governamental em parceria com o Ministério Público, foram analisadas 4,2 mil armas apreendidas em roubos e homicídios, em 2011 e 2012. “Pelo menos 38% delas tinham origem legal”, conta Langeani.

À constatação semelhante chegou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instituída em 2011 pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. De acordo com a CPI das Armas, em uma década foram extraviadas cerca de 18 mil armas, somente de empresas de segurança privada no estado. A CPI também realizou o rastreamento de armas utilizadas em crimes e assassinatos, identificando que 86% delas apresentavam origem legal e foram desviadas para fins criminosos. “Segundo dados do Sistema Nacional de Armas [Sinarm] do Ministério da Justiça, 22,9 mil armas de fogo foram perdidas ou extraviadas entre 2009 e 2011, e 29,3 mil foram furtadas ou roubadas”, informa Cerqueira, do Ipea. Os dados, enfatiza ele, são claros: “Quanto maior o número de armas de fogo em circulação, maior a migração de armamento para o mercado ilegal”. Langeani vai na mesma direção. “O fato de as apreensões feitas pela polícia envolverem principalmente armas de fabricação nacional, que são produzidas e vendidas legalmente no país, reforça a hipótese de que a maioria em circulação no mercado ilegal tinha registro legal e não entrou por meio de contrabando.”

Impacto no orçamento

A última edição do Atlas da Violência, do Ipea, mostra que o prejuízo de R$ 373 bilhões ocasionado em 2017 pela violência no país é composto de múltiplos gastos, que envolvem, dentre outros, o sistema prisional, a segurança pública e privada, e o Sistema Único de Saúde (SUS). No caso do SUS, somente as internações motivadas por ferimentos com armas de fogo custaram R$ 190 milhões aos cofres públicos, entre 2015 e 2018. “A saúde pública absorve os efeitos da violência armada, que acabam drenando recursos que poderiam ser utilizados à aquisição de novas tecnologias e medicamentos”, enfatiza o sociólogo José Ferdinando Ramos Ferreira, coordenador do Grupo Temático Violência e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ele lembra que a vítima de arma de fogo, quando sobrevive, necessita de atendimento quase sempre complexo, com internação e sucessivos tratamentos e terapias que possibilitem sua recuperação física e mental. “Custos por ferimentos à bala são elevados porque muitas vezes exigem a realização de cirurgias e internações em terapia intensiva. Podem atingir múltiplos órgãos e demandar a colocação de prótese, por exemplo”, analisa o médico Danilo Blank, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Departamento de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Um dos pontos de atenção da SBP em relação à violência armada envolve o crescimento da letalidade entre a população jovem. “A principal vítima da violência homicida no Brasil é a juventude. Na faixa etária entre 15 e 25 anos, o crescimento da letalidade por armas de fogo é maior do que no resto da população”, relata o médico, referindo-se aos resultados do Mapa da Violência, estudo da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), de 2016. De acordo com essa pesquisa, nos últimos 30 anos o número de assassinatos por arma de fogo nessa parcela da população saltou de 3,1 mil para 25 mil, o que representa um crescimento de 700%. Na população geral o aumento foi de 600%. “No período em análise, os jovens brasileiros de 15 a 29 anos corresponderam a 60% de todos os mortos por armas de fogo”, lamenta Blank. Ao considerar o processo de transição demográfica pelo qual passa o Brasil, em que a população com mais de 60 anos deve chegar a 67 milhões até 2050, Blank revela preocupação com o impacto que as taxas de homicídio entre a população jovem podem ter na economia do país. “A transição demográfica e os percentuais elevados de mortes entre a faixa etária mais jovem afetarão a população economicamente ativa”, alerta.

De acordo com levantamento da SBP, baseado em dados do SIM do Ministério da Saúde, nas últimas duas décadas mais de 145 mil crianças e jovens de até 19 anos morreram em consequência de disparos de arma de fogo – acidentais ou intencionais, incluindo casos de suicídio. “Apenas em 2016, foram registradas mais de 9 mil mortes nessa faixa etária”, diz Blank. Nos últimos 20 anos, segundo o pesquisador, as internações de crianças e adolescentes resultantes de ferimentos provocados por disparos de armas de fogo custaram cerca de R$ 210 milhões aos cofres públicos. “Até os 14 anos de idade, os traumatismos no trânsito são a principal causa de morte”, observa. “Dos 15 aos 30 anos, são as mortes por armas de fogo.”

R$ 210 milhões foram gastos pelo SUS com internações de crianças e jovens feridos por armas nos últimos 20 anos

Ao evidenciar que nos últimos 25 anos disparos por armas de fogo constituíram causa persistente de mortalidade no Brasil, no México, na Colômbia e nos Estados Unidos, o estudo publicado pela Lancet Public Health, sob a coordenação de Anna J. Dare e Hyacinth Irving, pesquisadoras do Centre for Global Health Research da Dalla Lana School of Public Health, da Universidade de Toronto, Canadá, defende que a redução do acesso e circulação de armas de fogo deveria constituir a estratégia central dos quatro países para diminuir a ocorrência de homicídios. Para sustentar o argumento, o trabalho menciona, dentre outros, revisão bibliográfica publicada em 2016 na Epidemiologic Reviews, editada pela Oxford University Press, por pesquisadores das universidades Columbia, de Nova York, Nacional de Colômbia e de Boston. Nessa revisão, os autores voltaram a analisar os dados de 130 estudos científicos, realizados entre 1950 e 2014, com informações de 10 países, que examinaram associações entre leis relacionadas a armas de fogo e homicídios por armas de fogo, além de suicídios, lesões e mortes não intencionais. A partir dos resultados, o estudo coordenado por Dare e Irving indica a existência de relação direta entre a adoção de leis para a restrição do acesso a armas de fogo e a diminuição de mortes por essas armas. Além da associação entre o acesso e a incidência de mortes por armas de fogo, o artigo publicado na Lancet Public Health chama a atenção para a principal vítima desse tipo de violência: homens jovens, negros e com baixa escolaridade.

Na década de 1990, o economista norte-americano John Lott Junior, presidente do Crime Prevention Research Center, desenvolveu um estudo na Universidade de Chicago para analisar a relação entre leis favoráveis ao porte de armas e as estatísticas de criminalidade em cerca de 3 mil municípios, entre 1977 e 1992. Chegou à conclusão de que estados que adotaram leis favoráveis ao porte teriam conseguido reduzir os homicídios em 8,5%. “Para interpretar os dados identificados na pesquisa, o autor elaborou uma hipótese segundo a qual as pessoas não cometem crimes violentos quando sabem que as outras estão armadas”, explica Bruno Paes Manso, do NEV-USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.

Em 2017, pesquisadores da Universidade Stanford, também nos Estados Unidos, chegaram a resultados diferentes, utilizando metodologia que considerou os efeitos de múltiplos fatores, e não apenas a flexibilização do porte, na oscilação da criminalidade nos estados. Entre os fatores considerados estavam as taxas de encarceramento, de presença policial, índices de pobreza, desemprego, densidade populacional, renda per capita e consumo de álcool. “Nessa pesquisa recente, constatou-se que estados que não flexibilizaram as leis para porte e posse de armas, como Califórnia e Nova York, alcançaram reduções maiores nos índices de criminalidade”, conta Manso. Além disso, o estudo de Stanford revelou que nos estados que flexibilizaram o porte os crimes violentos subiram entre 13% e 15%.

O direito individual

Em junho, durante o lançamento da última edição do Atlas da Violência, Carlos von Doellinger, presidente do Ipea, argumentou a favor da posse de armas de fogo como direito individual, a ser exercido por cidadãos sem antecedentes criminais. “Há uma defesa do Estatuto do Desarmamento, porém, na minha posição pessoal, não estou falando como presidente do Ipea, acho que, por uma questão de princípio, me incomoda a impossibilidade de o cidadão ter uma arma em defesa da sua integridade física, do seu patrimônio, da sua propriedade e da sua família.”

Apesar de reconhecer a legitimidade dessa linha de argumentação, Cerqueira, também do Ipea, cita levantamento pioneiro, realizado em 1999 pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), a partir de dados registrados em boletins de ocorrência. “Pelo histórico desses documentos, constatou-se que vítimas de assalto, quando armadas, apresentaram risco 56% a mais de serem mortas, se comparadas com vítimas desarmadas”, observa. A socióloga Jacqueline Sinhoretto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), uma das autoras do estudo citado por Cerqueira, enfatiza que, em situações em que a vítima estava armada, o número de mortes nas ocorrências policiais mostrou-se mais elevado, incluindo pessoas que transitavam pela cena do crime.

No estudo das instituições canadenses, publicado na Lancet Public Health, a posse aparece como um dos principais fatores de risco para mortes por disparos de armas de fogo. Em sua conclusão, os autores do estudo defendem que a criação de mecanismos legais para reduzir a exposição da população civil a armamentos é crucial para diminuir a incidência de homicídios por armas de fogo. Além disso, afirmam que o desenvolvimento de estratégias que permitam desconstruir a associação entre segurança e posse de armas deve acompanhar essas medidas.

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