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Abrasco contribui com projeto de reformulação do sistema de saúde do Reino Unido (NHS): Luiz Facchini, que representou a Associação, detalha a experiência em entrevista 

A Abrasco contribuiu com a elaboração do Plano de 10 anos para a Saúde da Inglaterra. As atividades, organizadas pelo Departamento de Saúde do Reino Unido, em março deste ano, reuniram em Londres (UK) e em Brighton pesquisadores, profissionais da saúde e especialistas em Saúde Pública de diversos países. A iniciativa, com o objetivo de promover mudanças no National Health Service, incluiu ainda uma reunião com o secretário de Saúde do Reino Unido, Wes Streeting, e uma audiência no Parlamento. Coube ao pesquisador e abrasquiano Luiz Augusto Facchini representar a Associação e compartilhar a experiência brasileira. 

Criado em 1948, após a Segunda Guerra Mundial, o National Health Service (NHS), Serviço Nacional de Saúde (tradução livre), do Reino Unido, inspirou diversos outros sistemas de saúde ao redor do mundo, incluindo o Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. O NHS prevê, assim como os sistemas brasileiro e canadense, acesso universal aos serviços de saúde e ações de promoção e prevenção. 

Ao considerar diversas mudanças sociais dos últimos anos, que envolvem o processo saúde-doença e os determinantes sociais em saúde, em outubro de 2024, o governo do Reino Unido anunciou o desenvolvimento do 10-year Health Plan for England, Plano de 10 anos para a Saúde da Inglaterra (tradução livre). A iniciativa busca garantir a manutenção do NHS no futuro e prevê mudanças em três eixos: 1 – reorientar  o cuidado e a assistência do hospital para a comunidade; 2 – fazer um melhor uso da tecnologia, especialmente da saúde digital; e 3 – focar na prevenção de doenças. 

Com o intuito de construir o Plano, o governo do Reino Unido, através do King’s College London e do Institute of Development Studies, decidiu ouvir experiências de outros sistemas públicos de saúde ao redor do mundo. Para entender melhor como foi a participação da Abrasco nesse processo, conversamos com o abrasquiano e professor titular do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Luiz Augusto Facchini. O pesquisador representou a entidade durante as atividades e compartilhou a experiência brasileira na Atenção Primária à Saúde (APS), via Estratégia Saúde da Família (ESF), o que impressionou os britânicos. 


Comunicação Abrasco: o National Health Service (NHS) do Reino Unido, de 1948, possui muitas convergências com o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, de 1988. Ambos são universais, gratuitos e financiados por impostos. Como o intercâmbio de ideias e conversas entre gestores do SUS e do NHS pode auxiliar na criação de soluções para problemas contemporâneos?

Luiz Facchini: o NHS possui, sim, muitas convergências com o SUS. O NHS foi lançado em 1948, logo depois da Segunda Guerra Mundial, e, 40 anos depois, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi lançado no Brasil com uma inspiração forte em relação ao NHS, pelo fato de serem sistemas universais de saúde, gratuitos, financiados por impostos. Portanto, o intercâmbio pode apoiar a reforma do NHS, prevista no plano decenal – que pretende readequar o NHS na sua perspectiva futura em função das crises que o sistema está vivendo.

Vários desafios do NHS são similares àqueles do SUS, que também precisa se adequar às mudanças da sociedade brasileira reorganizando o sistema. Eu considero que o nosso modelo é um modelo que avançou mais do que o NHS na sua concepção, especialmente na organização da Atenção Primária à Saúde (APS). Nós temos uma extensa rede de centros de saúde, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) são mais de 45 mil em todo o Brasil. 53 mil equipes de Saúde da Família, que reúnem 300 mil agentes comunitários de saúde e que cobrem uma população de aproximadamente 150 milhões de pessoas. Isso faz com que a nossa APS seja uma das mais abrangentes e destacadas em todo o mundo. E o NHS não tem essa característica. A APS deles é com base em médicos, o chamado general practitioner que geralmente atendem à população em suas clínicas, com base em listas de pacientes.

Comunicação Abrasco: a equipe do NHS ficou bastante impressionada com a experiência brasileira de saúde pública, em especial com o modelo e os resultados da Estratégia Saúde da Família (ESF). De qual maneira a ESF pode auxiliar na atenção à saúde no Reino Unido?

Luiz Facchini: a Estratégia Saúde da Família (ESF) é um dos modelos de Atenção Primária à Saúde (APS) mais bem delineados em todo o mundo e está inspirando a reforma do NHS, porque ela é caracterizada por equipes multidisciplinares que reúnem colegas da medicina, enfermagem, odontologia, técnicos e agentes comunitários de saúde. Essas equipes, além de terem responsabilidade sanitária por um território definido e uma população definida, combinam ações de cuidado das pessoas e das famílias daquele território, com ações de Saúde Coletiva.

Ações que articulam o trabalho no âmbito do território, que vinculam atividades clássicas de promoção da saúde, de prevenção de agravos e de vigilância em saúde, com atividades intersetoriais, como por exemplo no âmbito da educação, como, o Programa Saúde na  Escola, de assistência social, como o Bolsa Família, de atividade física, alimentação saudável e meio ambiente. Então, esse é o grande destaque da saúde da família, tanto em termos nacionais quanto no âmbito internacional e isso tem sido muito inspirador para a reforma da atenção primária que o NHS está conduzindo, para a reflexão sobre o modelo que será utilizado no Reino Unido. Temos muitos desafios no Brasil, mas temos avanços muito marcantes que são inspiradores para os sistemas de saúde inglês e de todo o mundo 

Comunicação Abrasco: além da experiência brasileira de saúde pública, a equipe do NHS listou ainda as experiências do Canadá, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Índia, Japão, Nova Zelândia, Tailândia e Ruanda. Por mais que cada nação possua suas especificidades, existem problemáticas transversais, comuns do tempo em que vivemos, como as emergências climáticas e o risco de novas epidemias, que irão atravessar todo o planeta. De qual forma e como os países podem pensar estratégias conjuntas para essas questões?

Luiz Facchini: tivemos a oportunidade de conhecer essas experiências, que permitiram uma reflexão a respeito das características dos sistemas de saúde e da atenção primária, mas também dos seus desafios. Muitos desafios estão relacionados com as mudanças em curso no mundo, tanto em decorrência de emergências climáticas e riscos de novas epidemias, quanto da transição demográfica, cujo envelhecimento das sociedades aumenta demandas tradicionais aos serviços,  mas também cria novas demandas, seja para o cuidado institucional, seja para a vida familiar.

Então, participar das discussões sobre a reforma do NHS foi uma grande oportunidade de refletir sobre nossos desafios no Brasil. O SUS avançou muito nos princípios da universalidade, da integralidade e da equidade, com contribuições marcantes da Atenção Primária à Saúde e especialmente da Estratégia Saúde da Família. Além disso, a APS tem um grande potencial para apoiar intervenções relacionadas às mudanças climáticas e às novas epidemias, considerando sua presença em quase todos os bairros e comunidades, urbanas e rurais do país. Porém, as mudanças climáticas também implicam em riscos para a própria estrutura da Atenção Primária à Saúde (APS), que pode afetar as edificações das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e a capacidade de atendimento das equipes. No Censo Nacional de Avaliação das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do SUS, realizado em 2024, sob liderança do Ministério da Saúde, com participação do CONASS, do CONASEMS e de todos os municípios, cerca de 18% das UBS relataram ter sofrido problemas decorrentes de eventos climáticos. 

No caso da pandemia de Covid-19, em muitos lugares, especialmente em localidades do Nordeste, a ESF teve uma atuação muito importante, fazendo monitoramento dos casos, organizando a vigilância com a participação da população, por meio do trabalho dos agentes comunitários de saúde. Além disso, a APS pode fazer atividades vinculadas às questões ambientais, como no caso da dengue e outras arboviroses, identificando a ocorrência de casos e implementando o tratamento precoce, evitando o agravamento do problema e a mortalidade. Porém, é especialmente importante o trabalho de vigilância na localização e eliminação de criadouros de mosquitos, articulando as ações de cuidado individual e com as ações de saúde coletiva.  É importante compartilharmos essas experiências em âmbito internacional, para que todos os países possam se beneficiar das estratégias de sucesso da APS implementadas no SUS. 

Comunicação Abrasco: além das emergências climáticas e do risco de novas epidemias, o NHS enfatizou duas problemáticas que também afetam o Brasil: financiamento e formas de aproximar a população dos serviços de saúde. Quais encaminhamentos e soluções surgiram no debate para essas questões?

Luiz Facchini: entre as problemáticas que o NHS tem destacado nessa reforma duas são justamente o financiamento e a participação social. O SUS é um dos sistemas de saúde mais eficientes em todo o mundo, considerando seu alcance em relação à universalidade. Além disso, outro destaque é a integralidade, ou seja, a capacidade do SUS de acolher todas as necessidades de saúde da população, as demandas da população. Muitos sistemas de saúde do mundo trabalham com listas  de algumas doenças, alguns problemas para os quais é garantido o cuidado de saúde. No SUS, temos garantia de atendimento de todos os problemas de saúde, desde o curativo, até a vigilância, desde a imunização, até os transplantes, desde os cuidados domiciliares, até as cirurgias cardíacas e o tratamento de câncer.

Além da  integralidade,  o SUS promove a equidade, por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), que contribuiu para a redução da mortalidade infantil, das internações por condições sensíveis à APS, pelo aumento da cobertura vacinal e da sobrevivência de idosos em condições sociais mais vulneráveis. A ação da ESF  promove a equidade, ao melhorar o desempenho dos serviços de saúde de lugares mais pobres e remotos, tornando-os equiparáveis e até vantajoso ao de lugares mais ricos, com melhor infraestrutura. O desempenho equitativo da ESF  é observado nos cuidados de saúde de mulheres, gestantes, crianças, pessoas com condições crônicas, idosos e populações com necessidades de atenção nos seus domicílios. Por isso, é fundamental ampliar o financiamento público em saúde no Brasil, pois assim o SUS será capaz de dar respostas ainda melhores às necessidades de saúde da população. O NHS também busca ampliar seu financiamento, para fazer frente às demandas da população, porém o gasto público em saúde na Inglaterra é praticamente o dobro daquele observado no Brasil para o financiamento do SUS. Por isso que eu enfatizo: o SUS é realmente muito eficiente.

Em consequência, precisamos aumentar muito a proporção de gasto público em saúde no Brasil, priorizando a Saúde da Família e a Atenção Primária à Saúde (APS) com novos recursos, para melhorar a capacidade de resposta do SUS. O financiamento é crítico  para melhorar o acesso e a qualidade do cuidado na APS. Os investimentos precisam atualizar a infraestrutura e os equipamentos  da rede básica, incluindo as novas tecnologias da saúde digital. Também é necessário diversificar as estratégias de abordagem dos problemas de saúde, ampliando o enfoque médico e medicamentoso, para incluir a promoção da saúde, a prevenção de agravos, a reabilitação e os cuidados paliativos.

Em relação à participação social no Brasil, cabe lembrar que ela está inscrita na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde nº8080 de 1990, seja via controle social, por meio da organização dos conselhos, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), os conselhos estaduais e municipais até mesmo de conselhos locais vinculados às Unidades Básicas de Saúde e seus territórios. Mas a participação também se dá ao articular outras atividades no âmbito da comunidade, muitas delas mobilizadas pelo trabalho dos agentes comunitários de saúde. Esse é um tema de grande interesse do NHS, que não dispõe de mecanismos formais de participação social, muito menos de controle social, como nós conhecemos aqui. 

Comunicação Abrasco: no evento, o Brasil, mais uma vez, se mostrou um grande ator no campo da saúde. Qual a importância no mundo das contribuições brasileiras na construção da saúde como um direito, com acesso universal e gratuito? 

Luiz Facchini: a experiência brasileira do SUS e da ESF foi realmente foi muito destacada por colegas do King’s College, em Londres e da Sussex University, em Brighton, que lideraram o evento, junto com os colegas e mas também por colegas do NHS, durante a audiência com o ministro da saúde Wes Streeting e durante a audiência pública  no parlamento, no Westminster Palace.  É importante ressaltar   o reconhecimento recebido, porque cotidianamente  ficamos preocupados com os problemas e os desafios que enfrentamos no SUS. 

A Saúde da Família é provavelmente a experiência mais abrangente, inovadora e criativa de APS, desde que seus  princípios e atributos foram explicitados na Declaração de Alma-Ata, em 1978. O Brasil desenvolveu um modelo de APS  muito inovador  para garantir  os direitos da população ao acesso universal e gratuito ao sistema de saúde, sem necessidade de pagamento para o uso dos serviços, qualquer que seja a necessidade, como já mencionei anteriormente.

Ainda temos dificuldades de acesso a especialidades e exames, com tempos de espera longos em muitos casos. Porém, o Brasil está bem posicionado na comunidade das nações, para recomendar  a adoção de sistemas universais de saúde, de acesso universal, integral e gratuito, que promovam a equidade e tenham a Atenção Primária à Saúde como coordenadora do cuidado e  ordenadora da rede de atenção.

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