A universalidade como conceito fundador do direito à saúde e à assistência médica esteve no centro dos debates da Audiência Pública do Supremo Tribunal Federal realizada na segunda-feira, 26 de maio. Convocada pelo Ministro José Antonio Dias Tóffoli, a sessão servirá de embasamento para o julgamento do recurso extraordinário nº 581.488, apresentado pelo Conselho Federal de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers). A autarquia entrou com uma ação federal contra o município de Canela, solicitando que a rede de serviços local vinculada ao Sistema Único de Saúde aceitasse o pagamento de extras e de honorários pelos pacientes internados, concedendo aos mesmos privilégios na escolha de leitos e de profissionais para acompanhamento. A prática, conhecida como “diferença de classe”, foi julgada improcedente pela 4ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, motivando o prosseguimento do processo para a instância máxima do Judiciário brasileiro.
Antes de iniciar a sessão, o Ministro do STF concedeu a palavra ao Advogado Geral da União, Ministro Luís Inácio Lucena Adams, que afirmou ser do entendimento da AGU a preservação do modelo de saúde pública definida pela Constituição Federal, “matriz de afirmação de uma igualdade substancial, em última análise, da defesa do mínimo existencial para a população”.
O primeiro convidado a ocupar a tribuna foi o representante do Ministério Público Federal, o sub-procurador da República Humberto Jacques de Medeiros. Em sua exposição, Medeiros afirmou que o tema da diferença de classe tem aparecido com certa frequência nos debates acompanhados pelo MPF e definiu o mecanismo como “um fóssil dentro do serviço de saúde”, existente quando a prestação era mutualística e de base securitária, banida na Constituição de 1988 com a adoção do SUS. “O grave ao Ministério Público em toda esta questão é que não se está apenas a discutir a diferença de classe num sistema em que a Constituição diz que o acesso é igualitário e universal. […] A questão aqui é a relação do Estado com as prestações republicanas a todos os cidadãos”. Medeiros ainda frisou que todos são iguais perante à lei e à dor e que, pela responsabilidade do Estado frente às duas questões, não se pode permitir que o sistema público de saúde seja discriminatório, preconceituoso e criador de privilégios.
Na sequência, o representante do Cremers, Cláudio Balduino Souto Franzen, tentou minimizar o sentido da ação civil impetrada pela autarquia, anunciando que não queria travar um debate por ele chamado de ‘ideológico’. “Queria dar a ideia de que defendemos a opção em internar-se em condições melhores do que as oferecidas pelo Sistema Único de Saúde devido às baixas remunerações concedidas aos hospitais privados”, afirmando que a matéria trata exclusivamente da assistência feita à população em hospitais privados e filantrópicos. No entanto, Frazen fez uma exposição de dados, fotos e opiniões contrárias às políticas desenvolvidas pelo Ministério da Saúde, como o Programa Mais Médicos, sem expor de fato os interesses que movem ao Conselho a defender os pagamentos extras. Ao levantar a crítica sobre o crescimento da saúde privada no país – “Há um estímulo que se empurre a população brasileira aos planos de saúde” – o médico e seu Conselho sugerem um problema ainda maior: o pagamento individualizado, seja na assistência oferecida pela rede filantrópica, seja no atendimento prestado pelo serviço público. A mesma visão foi defendida pelos representantes da Confederação Nacional de Saúde e da Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos.
Direito e cidadania: As nuances dos interesses do mercado foram explicitadas na fala de Ana Luiza D’Ávila Viana, representante da Abrasco na Audiência. Professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMP-FM/USP), Ana Luiza abriu seu discurso abordando a interrelação entre o direito à saúde e o direito à assistência médica. “A saúde como direito fundamental da pessoa é um bem inalienável, um ab-solutus que não pode ser alterado para se tornar um objeto de escambo ou comercio.Por isso, a assistência à saúde deve ser sempre um instrumento de concretização do direito a saúde.Se ela realiza iniquidades, discriminações, injustiças sociais ela entra em conflito como o direito maior que é o da saúde”.
Para Ana Luiza, a defesa do SUS universal é um avanço social que deixa para trás marcas da segmentação oriundas do INAMPS quando, através de inúmeras políticas, eram permitidas diferenciações na assistência, acentuando desigualdades sociais como a que o mecanismo da diferença de classe tenta reeditar. “Permitir a volta a um padrão de atendimento estratificado em função da capacidade de pagamento é o retorno a um passado autoritário, desigual em sua essência e contra as políticas pró-cidadania que têm garantido conquistas importantes para o conjunto da sociedade brasileira nas últimas décadas”.
A professora não desviou do debate sobre o crescimento da saúde complementar privada e afirmou, como defendido pela Abrasco, que há interesses privados que ocupam espaço no próprio aparelho de Estado em prol da abertura desse comércio, fazendo existir um mercado de saúde de natureza privada operando fora e dentro do SUS. No entanto, segundo ela, é ingênuo pensar que as soluções para melhoria de serviços e de gestão em saúde perpassam pela adoção de práticas privadas em ambientes públicos. “Estamos diante de uma nova realidade. Não será legitimando a contratação de serviços e pessoas dentro de hospitais públicos que enfrentaremos de modo efetivo e eficaz os desafios que estão colocados à sociedade, governos, trabalhadores e gestores da saúde”, destacou Ana Luiza, que encerrou sua fala reforçando que a construção de um SUS pobre para os pobres só interessa aos inimigos dos Direitos Humanos: “é imprescindível que o Estado brasileiro e seus governantes, nas diferentes esferas de poder, promovam a equidade e não a discriminação. Não podemos aceitar que a desigualdade seja legitimada”.
Último a falar na sessão, o ministro da Saúde Arthur Chioro iniciou sua participação ressaltando que os princípios constituintes do SUS foram fruto da luta do movimento da Reforma Sanitária. Após a apresentação dos números que mostram a grandeza do SUS e rebatem a quem chamou de “arautos do apocalípse”, Chioro frisou que a utilização mista dos subsistemas público e privado de saúde por parte da população não pode prejudicar os que só fazem uso do sistema público e que a possibilidade de tratamento diferenciado deve promover igualdade, e não ao contrário. “Quando olhamos para esse debate, o princípio da equidade nos convoca a tratar as pessoas de forma diferente, mas uma diferença ditada pelas suas necessidades: tratar diferente para que a diferença não se transforme em desigualdade e que possamos desenvolver justiça social. O que estamos discutindo aqui hoje vai na contramão desse direito constitucional”.
Participaram ainda da audiência André Longo Araújo de Melo, Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde – ANS; Fabrícia Boscaini, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul; Alexandre Venzon Zanetti, Coordenador Jurídico da Confederação Nacional de Saúde; Wilson Duarte Alecrim, Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass); Raul Cutait, professor da FMUSP e ex-diretor do Hospital Sírio Libanês; Gladimir Chiele, Procurador do Município de Canela; Júlio Dornelles de Matos, Presidente da Federação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas do Rio Grande do Sul; Maria do Socorro de Sousa, Presidente do Conselho Nacional de Saúde; Paulo Humberto Gomes da Silva; Presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul; Antônio Carlos Figueiredo Nardi, presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), e Lucieni Pereira, auditora federal e presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC). Não há data prevista para o julgamento. O trâmite processual prevê a reunião dos documentos e transcrições da audiência, nova revisão do recurso por parte da Procuradoria Geral da República e análise do relator, Ministro Dias Tóffoli, para então entrar na agenda do Plenário do Supremo.
Acesse aqui o discurso na íntegra da professora Ana Luiza D’Ávila Viana