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Ainda ecoa em Mariana (MG) o barulho das barragens que se romperam em 05 de novembro do ano passado, formando com os choros daqueles que tudo perderam e com as reivindicações das populações afetadas uma massa sonora tão suja quanto a da lama tóxica que arrastou vidas e que marcará para sempre a história ambiental brasileira.

Passados mais de cinco meses do crime ambiental (e ainda sem perspectiva de julgamento), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, junto com a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) e outras 40 entidades e movimentos sociais realizam de hoje (11) à sábado (16) a Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce.

Cerca de 120 pessoas irão percorrer quatro rotas traçadas na região da bacia hidrográfica – duas no Alto Rio Doce, uma no Médio, estas no território do estado de Minas Gerais, e outra na foz, localizada no estado do Espírito Santo. Cada rota terá um diferente mosaico de questões, denúncias e anúncios a partir das experiências construídas nas fases de organização e durante a atividade. Os percursos irão se reunir em Governador Valadares (MG), entre a tarde do dia 15 e a manhã de 16. O encerramento irá promover um ato público que com a participação dos caravaneiros e seus movimentos, população e representantes dos Ministérios Públicos. Será também o momento de apresentação das instalações pedagógicas, nome dado à montagem que compartilhará os símbolos, textos, imagens, falas e tudo mais o que for produzido durante a Caravana.

+ Nota da Abrasco sobre o desastre ambiental de Mariana (MG), de novembro de 2015

Diálogos e convergências: Segundo Marcelo Firpo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e coordenador do Grupo Temático Saúde e Ambiente (GTSA/Abrasco), a ideia de Caravana reflete um caminho que vem sendo trilhado há algum tempo e que reúne diferentes organizações e movimentos sociais ligados por diversos aspectos aos campos da agroecologia e da agricultura familiar e camponesa.

“Essa perspectiva de atuação iniciou-se com o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências: agroecologia, saúde e justiça ambiental, soberania alimentar e economia solidária, realizado em 2011, e continuou na organização de outros dois eventos: o III Encontro Nacional de Agroecologia e o II Simpósio Brasileiro de Saúde Ambiental (SIBSA), ambos realizados em 2014”, explica Firpo. A mobilização política para a retomada da ação conjunta foi, infelizmente, galvanizada pela necessidade de denúncia e responsabilização de mais esse desastre.

“A Caravana parte dessa tragédia-crime que expôs o lado mais perverso da mega-mineração para exportação de minério, ferro gusa e aço bruto. O tom de denúncia surgirá com muita força na caminhada. Mas isso só não basta. Queremos criar as bases de uma memória coletiva da tragédia, bem como apresentar alternativas ao modelo predatório da mineração. Isso é muito difícil porque a mineração faz parte da região; a Vale é a maior financiadora de políticos e partidos do país, provocando um enorme conflito de interesses e agravando a dependência histórica dos municípios mais atingidos. Mas existem outras riquezas e alternativas econômicas na região, como a agricultura familiar e agroecológica, o turismo histórico e comunitário, experiências de recuperação de nascentes e ecossistemas degradados, diferentes economias solidárias. E isso também é importante de ser registrado, mostrado e potencializado”.

Além de Firpo, estarão presentes na Caravana os pesquisadores André Búrigo (EPSJV/Fiocruz) e Ary Miranda (ENSP/Fiocruz), ambos também do GTSA/Abrasco; Aline Azevedo, (Ministério da Saúde), indicada pelo GT Saúde do Trabalhador/Abrasco, e Danielli Costa, pesquisadora do grupo Tramas (UFC). Confira abaixo a entrevista com Marcelo Firpo e acompanhe as atividades da caravana pela comunidade criada na rede social Facebook.

Abrasco: Partindo do entendimento de que a produção científica em saúde vem muito do saber olhar, saber ouvir, o que você espera da Caravana?

Marcelo Firpo: A ideia central da Caravana é conhecer um território a partir de vários olhares, experiências de resistências, lutas, mas também de alternativas em termos de novas economias e mercados, produção agroecológica, reforma agrária, práticas de saúde do campo. É uma mescla de denúncias e anúncios, com a articulação de olhares internos aos territórios, e também externos por meio de movimentos e organizações mais nacionais, bem como cientistas engajados. Nessas experiências, camponeses, indígenas, quilombolas, grupos ambientalistas, praticantes da economia solidária, movimentos envolvidos em conflitos ambientais, além de grupos de pesquisadores e instituições sensíveis, todos podem se envolver numa viagem de compreensão, tanto singular como mais ampla, sobre o que está em jogo naquele espaço. São experiências, sonhos, lutas e vontade de transformar em que todos saem fortalecidos pela percepção que é preciso enfrentar coletivamente as tragédias socioambientais de um capitalismo destrutivo, e que várias práticas no presente já apontam para transformações que precisam se fortalecer.

É, portanto, uma prática político-pedagógica e de produção compartilhada de conhecimento; de construir os fios da meada. Avança na proposta de uma ciência militante, engajada, que renova a saúde coletiva num momento de especialização fragmentadora e institucionalização burocrática que enrijece o potencial emancipatório do campo.

Vejo como uma atualização de nossas origens nos anos 80. Antes a luta era pela democracia, contra os regimes militares e as desigualdades sociais. A luta pela democracia e contra as desigualdades continua, mas o contexto atual é bem diferente. A crise socioecológica se intensifica, assim como as contradições do modelo de desenvolvimento da América Latina no contexto da globalização econômica, bem como dos governos mais à esquerda que fazem alianças perversas com setores econômicos e políticos bastante conservadores. Precisamos de novos referenciais e práticas que arejem potencialidades de produção de conhecimento e transformação social. As Caravanas vão nessa direção.

Abrasco: Nas reuniões de preparação, quais pontos já foram identificados como importantes no debate da saúde, tanto nos aspectos ambientais e sociais?

Marcelo Firpo: São vários, inclusive porque os problemas de saúde vão muito além das áreas mais atingidas pela lama dos rejeitos da barragem. No caso das pessoas, famílias e comunidades que perderam pessoas queridas e mesmo sua identidade, já que vários povoados foram inteiramente destruídos, há uma questão muito importante relacionada à saúde mental, aos traumas pós-desastre, à depressão e ao sentido de vida que precisa ser reconstruído. Algo semelhante também aparece para comunidades tradicionais como o povo indígena Krenak que possuem uma cosmovisão fortemente vinculada ao papel do rio, da água, que agora está poluída e sem vida.

Outra questão forte e complexa se refere à poluição das águas e dos solos. As populações de cidades como Governador Valadares (MG), e Colatina e Linhares (ES), estão apreensivas e sem confiar nos laudos e falas das autoridades e instituições. As informações sobre a contaminação da água do rio utilizada para consumo humano são confiáveis? Quais incertezas existem e como traduzi-las para as populações? Que alternativas confiáveis de tratamento de água são razoáveis do ponto de vista do direito à saúde e ao saneamento básico? Como e quando os solos contaminados pela lama de rejeitos poderão ser novamente usados para o plantio? Como ficam os peixes do rio Doce e os pescadores que vivem deles? Há também outros debates importantes, como a saúde dos trabalhadores da mineração. A grande maioria dos mortos são de trabalhadores terceirizados, precarizados. E como ficam as barragens existentes e com riscos graves caso novos rompimentos ocorram? A inexistência de sistemas de alarme e planos de contingência em Mariana é inaceitável e criminosa, pois é responsável por várias mortes.

Outro ponto central é a fragilidade do estado e das instituições que licenciam e controlam empreendimentos da mineração. Há uma enorme fragilidade, e as empresas acabam na prática sendo autorreguladas. Em época de crise, como a queda do preço do minério no mercado internacional que aconteceu desde 2012, a tendência é reduzir os investimentos em segurança e gestão ambiental. Questões como essas serão debatidas pela Caravana.

+ Nota produzida por diversas entidades em fevereiro deste ano afirma que tragédia não será esquecida

Abrasco: A Caravana é fruto de uma articulação da Abrasco com a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), universidades e movimentos sociais. Qual a importância dessas articulações para o campo da saúde coletiva?

Marcelo Firpo: A Caravana Territorial do Rio Doce surgiu inicialmente a partir de uma proposta da Abrasco, prontamente assumida pela ANA e pela AGB, dentre outras organizações. Faz parte do que nomeamos SIBSA [sigla de Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente]  em Movimento, um processo continuado de articulação com movimentos sociais e abordagens territoriais para trabalhar conflitos e problemas socioambientais e de saúde e ambiente. Ou seja, criar uma agenda dinâmica e antenada na atualidade das questões e demandas sobre saúde e ambiente. Ela foi levada logo após a tragédia para grupos de agroecologia e para o coletivo que está retomando o processo Diálogos e Convergências, e rapidamente foi assumida por inúmeras organizações de MG, ES e também nacionais. A Abrasco esteve presente em todas as reuniões preparatórias e estaremos em várias rotas que compõem a Caravana.

A articulação com outros campos do conhecimento e movimentos sociais é central em nossa proposta de atuação do GT Saúde e Ambiente, que aliás não está sozinho nesse processo. Desde o Diálogos e Convergências estamos trabalhando com a ideia de um InterGTs da Abrasco envolvendo principalmente temas como os agrotóxicos, a alimentação saudável, a luta pela agroecologia como alternativa para uma sociedade mais justa e saudável. Além da gente temos trabalhado conjuntamente em várias ocasiões com os GTs Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva, Saúde do Trabalhador, Promoção da Saúde, Vigilância Sanitária e Educação Popular e Saúde. Isso tem a ver com a construção de uma ciência não apenas engajada e militante, mas complexa e sensível, que não se perca nos labirintos da especialização excessiva e de uma aparente objetividade que acaba por desprezar questões éticas centrais para a vida e a saúde coletiva.

Por exemplo, recentemente também atuamos conjuntamente na questão do modelo “mosquitocêntrico” centrado no uso de venenos para enfrentar as epidemias de dengue, zika e chikunkunya. A saúde coletiva, em nossa opinião, deve reforçar questões como o saneamento básico e as desigualdades socioespaciais para analisar o problema, em vez de reproduzir um modelo falido de combate ao mosquito que há trinta anos predomina no país.

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