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Questionar sua própria história – no tempo, no espaço e em ato – e com ela refletir sobre os desafios postos pelo contemporâneo e imaginar novos e outros possíveis. A capacidade de a saúde coletiva de se enxergar e se transformar atravessou as falas do debate “O Campo da Saúde Coletiva”. A atividade abriu o bloco de celebração dos 40 anos da Abrasco, realizada na Tenda Palmira Lopes, dentro da abertura do 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, em 27 de setembro, no campus da UFPB.

Lígia Vieira, docente do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, apresentou os resultados de uma investigação de nove anos dedicados ao tema e sistematizados no livro “O Campo da Saúde Coletiva – Gênese, Transformações e Articulações com a Reforma Sanitária Brasileira”. Coube a Tatiana Wargas, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), fazer os comentários e a Arlindo Fábio a coordenação dos trabalhos.

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“A Abrasco é a política, a luta, mas é pesquisa também” disse Lígia ao agradecer ao convite de estar entre tantos irmãos nordestinos e de todo o país.

A partir de documentos e eventos que fundaram a Associação, Lígia buscou traçar uma sociogênese desse espaço social que é a Abrasco, articulando as trajetórias com as possibilidades abertas singradas e também com as que foram negadas ou não escolhidas, utilizando a ideia de campo e outras categorias de Pierre Bourdieu.

Da origem médica ao novo paradigma dos sistemas de saúde: “Apesar de ter surgido na prática clínica debatida nos Departamentos de Medicina Preventiva e Comunitária, os caminhos desses primeiros agentes juntaram aqueles que queriam fazer uma nova medicina, mas articulada a uma ideia de reforma que não se reduzia a uma reforma administrativa” disse Lígia Vieira ao apontar o entrelaçamento das trajetórias de médicos e cientistas sociais que passaram a ocupar espaços em alguns programas de pós-graduação.

Nessa confluência de conhecimentos, origens e práticas, a docente destacou os 3 encontros anteriores à fundação, mas que foram decisivos para a reunião realizada em 27 de setembro de 1979, na sede da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em Brasília.

“A saúde coletiva surgiu então como um substantivo aparentemente neutro e abrigou sentidos para esse campo” contou Lígia ao apontar a resistência das agências internacionais com o termo “Medicina Social”, conformando assim a ruptura com a tradição da Higiene, da Saúde Pública stricto sensu e da Medicina Preventiva, mas que, ao afirmar o termo “Coletiva” e sua ligação com as ações e serviços de Saúde Pública, mantiveram certa continuidade às práticas institucionalizadas desenvolvidas pela máquina estatal.

Em pouco tempo, essa entidade plural, com atores de diferentes formações e linhas teóricas; não alinhada ao Estado e parceira dos movimentos sociais conseguiu em pouco tempo multiplicar sua presença e ampliar sua interlocução. De 1981 a 1984, a Abrasco realizou e/ou participou de mais de 14 encontros e reuniões onde pontuou críticas ao modelo previdenciário de saúde e apresentou propostas para uma nova visão de saúde.

“Esse grupo de fundadores construiu essa ideia entre o biológico e o social, bem como a organização dos serviços implicadas nos saberes e práticas incluindo as práticas políticas e que implicava na participação social” ressaltou Lígia Vieira.

Das visões da Saúde a multiplicação do conhecimento: O conjunto de fundadores foi entrevistado pela docente, que tomou suas produções individuais e coletivas como marcas de diferentes pontos de vista sobre esse objeto chamado Saúde Coletiva, advindo daí uma variada gama de definições: sinônimo de Saúde Pública, reorientação de Saúde Pública; espaço disciplinar abrangente; imposição de problemática, entre outras. Em comum, a discussão sobre as fronteiras e os transbordamentos desse conjunto de conhecimentos com outros campos disciplinares já instituídos e a percepção da dificuldade – ou inexistência até – de uma nova identidade desse profissional/formulador(a) de conhecimentos.

Contudo, esses tantos possíveis, bem como suas limitações,  não foram impeditivos para o crescimento dos programas de saúde coletiva. Os 6 programas de pós-graduação (PPG) fundadores da Abrasco passaram para 48 no final da primeira década dos anos 2000 e para 95 PPG neste 2019, conforme dados da Capes.  Aumentou também a participação de pesquisadores, estudantes e profissionais de saúde no principal fórum da entidade, o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva.

Nesses quarenta anos, a docente baiana destacou a consolidação da epidemiologia; da política planejamento e gestão; e das ciências sociais e humanas como o tripé constitutivo do que considera a Saúde Coletiva: um espaço de relações com projetos de tornar-se campo, devido à pouca autonomia relativa frente aos cenários econômico, político e científico da conjuntura brasileira, mas vivo em transformações e caracterizações, qualificando-o como um campo em consolidação. Dentre os elementos que sustentam essa argumentação, apontou a criação do curso de graduação e o fortalecimento das práticas profissionais a partir do paradigma da saúde, produtor de uma lógica sanitária, presente tanto na academia como nos movimentos da sociedade, voltada à defesa da vida da população e que se reafirma coletiva sobre a dimensão individual da doença e do cuidado.

“Nesse momento, onde vivemos um retrocesso civilizatório, recuperar a história da Abrasco e da Saúde Coletiva nos ajuda a identificar alternativas para a reabertura de possíveis. Para enfrentar a violência que mata Aghatas; para defender as Universidades sufocadas; para lutar contra o desmonte da ciência e da tecnologia, das políticas sociais, culturais e artísticas; para resistirmos e lutarmos em defesa da saúde, das liberdades democráticas e pela formação dessa militância sócio sanitária” concluiu Lígia Vieira.

O passado das nossas verdades: “Esse é um momento oportuno de resgate, não só pelo que recupera de uma história social importante pelos contextos e apostas, mas por trazer nuances e reconhecer contribuições contada por muitas vozes” afirmou Tatiana Wargas ao fazer um panorama inicial da obra em debate. Em todo os processos em que se revisita a história revisita-se também o passado das nossas verdades, apontou a pesquisadora carioca, tomando essa estratégia para investigar mudanças e desafios que se apresentaram e abriram sendas para a construção dos tempos presentes e futuros.

Assim como Lígia Vieira, Tatiana destacou que só é possível pensar a gênese da Abrasco a partir das transformações produzidas no interior da prática médica quando ao encontro de correntes que pensavam o social – nomeadamente o materialismo histórico e a epistemologia francesa – tendo Sergio Arouca e Cecília Donnagelo como primeiros artífices -e as articulações que então desembocaram nos primórdios do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira.

“Não foi só um movimento interno nessas escolas e na academia, mas que se valeu da capacidade de interação desses atores para fora, com partidos políticos, grupos; movimentos lideranças sociais e uma série de atores que contribuíram para uma percepção das relações das condições de saúde e de vida das populações com a mobilização social” disse Tatiana.

Essa nova visão de saúde que extrapola campos anteriormente consagrados e mistura uma gama de atores criaria não só a Abrasco como entidade científica e acadêmica, mas também o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde – Cebes – de caráter eminentemente político, entrelaçando assim residências, programas de pós-graduação em formação a serviços de saúde e seus domínios burocráticos a novas visões e práticas em saúde, e que desembocaram, entre outros fatos, na construção do capítulo da Saúde na Assembleia Constituinte e na própria criação e consolidação do Sistema Único de Saúde.

Dessas verdades consolidadas, a pesquisadora citou também alguns processos e debates que foram abandonadas no percurso, como os eixos de saúde do trabalhador e saúde e ambiente, que não se consolidaram como integrantes do núcleo formativo do campo, dentre outras temáticas, mas que vem ganhando mais força nos tempos recentes.

“Acredito que estamos mais abertos ao debate dos grupos que já foram chamados de minorias e que foram vulnerabilizados ao longo desse tempo. É um desafio para o campo poder retomar as essas formulações e práticas de saúde para serem repensar, reconstruídas e colocadas em análise para todos nós” conclui.

Ao final, Juan Pedro Pereira Silva, aluno do curso de Enfermagem da UFPB; Jozineide Maria Cajueiro, agente comunitária de saúde PSF Grotão e militante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) da Paraíba; e Allison Sampaio, doutorando do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/UFRJ) e integrante da Rede de Médicos e Médicas Populares, fizeram perguntas que, acima de tudo, trouxeram pertinentes questionamentos desses segmentos a tal debate, questionamentos esses que atualizam e renovam essa entidade viva e pulsante que é a Abrasco.

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