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Discurso de Elias Rassi – Solenidade de Abertura do Abrascão 2015

Vilma Reis

Confira a íntegra do discurso do professor Elias Rassi Neto, presidente do 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva:

Em texto publicado em 1963 e dissecado pelo professor Francisco Campos em 1999, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Kenneth Arrow, além de descrever o funcionamento dos mercados de acordo com a teoria econômica, culminando com a existência de um equilíbrio competitivo e um estado ótimo, também problematiza a comercialização da assistência médica.

Ao descortinar as grandes diferenças entre a assistência médica e as demais “mercadorias”, afirma que essa assistência requer um “lugar especial na análise econômica”. Rejeita também o mercado de seguros (e planos de saúde) como capaz ou adequado em prover políticas de seguros para a assistência médica. Alerta para populações não cobertas, seleção adversa, fator moral (sobre-utilização), envelhecimento, doenças não-seguráveis, dentre outros fatores.

Afirma ainda que:
– “A forma de articulação da prestação de serviços (instituições existentes, regulação e pressão competitiva) pode afetar tanto a qualidade do serviço médico como o ritmo da pesquisa científica (e do progresso científico-tecnológico no futuro). ”
Podemos resumir ser esse um setor em que as influências de “compulsões éticas” praticamente inviabilizam sistemas de saúde alimentados pelo lucro.

No Brasil, os estímulos dados ao setor de planos de saúde, via renúncias fiscais, ou a abertura do setor ao capital estrangeiro, reforçam essa cruel divisão na assistência à saúde e à doença e trazem nuvens negras sobre nossas cabeças… Ao mesmo tempo, parece indispensável recordar o papel do movimento da reforma sanitária na luta pela democracia.

As bandeiras que se agregaram nos movimentos expressos como “saúde e democracia” e por mais e melhor assistência e que capitanearam milhares de manifestações populares durante a década de 1970 foram decisivas na reconquista do direito de escolha dos brasileiros, sejam as eleições para as prefeituras de capitais, sejam para governadores e presidentes.

É forçoso reconhecer que isso não bastou e não basta. Mais de vinte anos de ditadura foram capazes, dentre tantos malefícios, também de desorganizarem por um longo período nossa capacidade administrativo-gerencial como também as nossas representações políticas. Não por acaso, a “Reforma Política” em discussão no Congresso Nacional não passa de um amontoado de propostas voltadas a alterações cosméticas, onde muda-se para não mudar.

Como consequência desse processo, uma grande preocupação passou a ser a soma dos gastos com essas representações. Isso justificou a limitação no quantitativo de vereadores, imposta no Artigo 29, posteriormente alterada por emendas constitucionais (EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 58, DE 23 DE SETEMBRO DE 2009).

Ora, ao invés da discussão de nosso modelo de representações, ou mesmo do papel dos legisladores municipais, optamos por manter as câmaras municipais como espaço de concentração do poder e os vereadores como meros intermediários de demandas individuais. Não conseguimos alcançar a possibilidade de ampliação das bases de representações.

Pode parecer pitoresco, mas a reforma política necessária passa pela ampliação do poder decisório local. O país necessita, o país carece de legislativos que encontrem a sua força e o seu vigor na defesa intransigente dos interesses populares e que tenha vigor suficiente para ultrapassar os limites impostos pelo poder econômico eleitoral, que distorce e concentra as representações.

É possível pensar numa Goiânia com 150 vereadores, onde essa participação se dê de forma cidadã, e não como profissão. Vereador não é profissão. Para evitar uma leitura apressada, vale imaginar outro modelo. Essa câmara municipal se reuniria dois dias por mês e sem salários. Apenas uma ajuda de custos de meio salário mínimo.

A participação ampliada propiciará desconcentração de poderes individuais, de “salvadores da pátria” e permitirá debates voltados às questões reais e decisões com força suficiente para promoverem mudanças. Por si só, esse modelo é capaz de alterar profundamente o papel e composições das Assembleias Legislativas e Congresso Nacional, ao alterar o jogo político a partir dessa nova força motriz da democracia. Municipalização só ocorrerá de fato com o deslocamento das forças políticas e do poder para os espaços reais da vida das populações.
E porque essa discussão aqui? Nesse congresso de saúde coletiva?

Respondo à essa indagação com a convicção de que a inexistência de ferramentas adequadas de gestão e de gerência nessa área, é consequência do jogo de interesses manifestado em legislações restritivas, voltadas aos interesses econômicos e fartamente exemplificado em unidades de saúde que não resistem por cinco ou dez anos em condições adequadas. A completa ausência de autonomia gerencial ou capacidade de formação de personalidades próprias pelos serviços, com raras e honrosas exceções, também é fruto do descaso e incapacidade de enfrentamento das questões reais e que bloqueiam os avanços necessários.

O tema da Conferência Nacional de Saúde: “Saúde Pública de qualidade – direito do povo brasileiro” reflete bem essa exigência e justifica a busca de uma imagem em nossos serviços públicos de saúde. Nós somos capazes de organizarmos bons serviços. Já demonstramos isso fartamente. O que não podemos é continuar fazendo de conta que isso é possível frente a essa legislação impeditiva e que criminaliza os gestores.

TODOS os secretários de saúde de Goiânia são processados pelo Ministério Público. TODOS.
Isso se repete em praticamente todas as capitais brasileiras. A consolidação do SUS também é bloqueada pela mesma legislação que gerou os escândalos atuais no cenário brasileiro.

Ou alguém aqui acredita que as quatro irmãs (Camargo Corrêa, OAS, Odebrecht e Andrade Gutierrez), ou cinco irmãs (Queiroz Galvão) foram criações maquiavélicas do atual governo? Esse quadro se reproduz em cada estado ou município brasileiro. O Ministro Chioro, ao enfrentar essas manifestações no campo das próteses enfrenta esse mesmo processo na área da saúde. É urgente a superação desses desafios pelas vias do fortalecimento democrático.

Optar pelos caminhos tortos, pelas simplificações, somente aprofundará a crise. Marina Silva está correta ao afirmar que é preciso “democratizar a democracia”, e continua: “Eu diria que a gente vive uma crise civilizatória, uma crise onde cinco grandes crises, econômica, social, ambiental, política e de valores, constituem uma única crise, que é uma crise civilizatória.”..e mais: “Quando a corrupção virar um problema nosso, acabaremos com a corrupção ou criaremos instituições para coibi-la (…)”.

Caros colegas, essas são apenas algumas linhas de algumas ideias. Esse congresso se propôs a se constituir em um grande fórum de debates, onde cada qual se manifeste e ao final tenhamos força e vigor para continuarmos as grandes transformações que nos propusemos décadas atrás e, ainda, incorporarmos novos e tantos novos atores na construção de um país menos desigual, mais solidário e justo.

Muito já fizemos, muito ainda por fazer. Se não tarefas de todos nós, tarefas de outros tantos.

Embora assustadora e aparentemente desigual, juntos somos mais.

O sonho não acabou.

O tema dessa conferência: “Saúde, Desenvolvimento e Democracia: O desafio do SUS universal“ convida para essas reflexões e posicionamentos, dentre tantos outros. Bem vindos. Mais que nunca, A LUTA CONTINUA.

 

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