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Gastão Wagner fala do papel dos movimentos sociais na 14ª Conferência Nacional de Saúde

Adriano De Lavor - Radis

A sociedade está desistindo do SUS”, alerta o sanitarista Gastão Wagner, indicado relator da 14ª Conferência Nacional de Saúde, que se realizará de 30/11 a 4/12, em Brasília. Pesquisador com vasta experiência em saúde coletiva, ele considera urgente um novo pacto em defesa do Sistema Único de Saúde, diante da fragmentação e perda da eficácia política dos movimentos sociais. Na entrevista que concedeu à Radis no campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social, ele indicou que o relatório da 14ª deverá dialogar com a sociedade e defendeu um maior comprometimento da sociedade com o SUS, que, para ser viável, deve ter seu orçamento dobrado. “O SUS ainda é uma reforma parcial”.

Quando foi convidado para ser o relator da 14ª CNS, o senhor declarou que os movimentos sociais da saúde precisavam retomar seu protagonismo para interferir nas disputas políticas sobre os rumos do SUS. Como conseguir isso?

Há uma crise geral dos movimentos sociais, se compararmos com os anos 1970, ou mesmo 1980, com o período constituinte, a redemocratização, a própria Reforma Sanitária, a renovação do sindicalismo e a constituição de novos partidos. Nós tivemos no Brasil um período de muita ebulição política. Relativamente a este período, há um esvaziamento nos movimentos sociais. Há um renascimento nestas participações pela internet, mas os movimentos sociais estão muito fragmentados e alguns instrumentos tradicionais perderam a eficácia política.

De que forma?

Considero que no Brasil os partidos políticos de hoje são um Estado ampliado, no sentido dado pelo filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Fazem uma mediação entre o público e o privado, entre o estatal e a sociedade civil, muito mais pelo lado do Estado do que pelo da sociedade civil, o que é um paradoxo. É a crise da representação política: as pessoas votam, mas os partidos perderam muito a legitimidade, ainda que tenham força administrativa na gestão do Estado. Perderam a capacidade de canalizar a representação social. Houve uma renovação grande nos sindicatos no Brasil, nos anos 1970 e 1980, no ABC paulista. Isso foi abandonado. Nós temos sindicalismo de cúpula, de negócios, de carimbos, de negociação oficial. Houve vários componentes importantes do SUS e da Reforma Sanitária, como os movimentos populares no Rio de Janeiro, nas favelas, ligados à Igreja e a dom Helder Câmara (1909-1999); em Campinas (SP), com a Teologia da Libertação e as comunidades eclesiais de base, movimentos contra a carestia. O que sinto é que houve uma ocupação desse espaço pelo narcotráfico, com outro uso — festas, bailes etc. Houve um esvaziamento dos movimentos dos bairros; uma mudança de sentido.

E em relação aos espaços acadêmicos?

Houve uma retomada do componente acadêmico e universitário — Cebes, ABRASCO, etc. —, mas nós acabamos cuidando de publicações. O movimento fragmentou-se em linhas da Epidemiologia e das ciências sociais, se voltou para o mundo acadêmico, o que não é inútil. Mas, do ponto de vista da sustentação de um projeto social de reforma sanitária, política e urbana, é pouco.

Em entrevista à `Radis´ (102), o sanitarista Hésio Cordeiro declarou que a saúde “perdeu um pouco suas bandeiras”. O senhor concorda?

Nestes 20 anos, não acho que perdemos as bandeiras, mas mantivemos as mesmas. Falta atualização. As bandeiras da Reforma Sanitária são as diretrizes do SUS — universalidade, integralidade, equidade, regionalização. Boa parte delas não foi cumprida integralmente. O SUS ainda é uma reforma parcial, depois de 20 anos. Faltou capacidade política para ampliar o acesso, para qualificar, para criar redes regionais, para integrar os hospitais com a atenção básica, para expandir a atenção básica para 80% ou 90%. O SUS tem muitos méritos, mas é uma reforma parcial. Isso é paradoxal porque demonstra para a população que ela não pode ter uma confiança completa e absoluta no SUS, do ponto de vista do atendimento. Algumas áreas funcionam bem — como o programa de Aids — mas se for câncer, o tempo em filas, a espera por cirurgia, quimioterapia e diagnóstico é muito grande. A qualidade dos hospitais públicos é heterogênea. Alguns ótimos, como o Inca e alguns hospitais universitários; mas muita coisa que deixa a desejar. A cobertura da Saúde da Família, da atenção primária, é pequena (50%, 40%). Uma parcela muito pequena de resolutividade de fato, com pouca legitimidade diante da população. Isso esvazia a idéia de um pacto pela consolidação do SUS, com todas as consequências econômicas — financiamento, política de pessoal. Não vejo atores sociais com esse projeto. Talvez seja isso que o professor Hésio esteja dizendo. E aí eu concordo com ele. Também não vejo gestores — nem no Ministério da Saúde, nem nas secretarias — com projeto de construção do SUS. Só falam em redes temáticas, linhas de cuidado, sempre com algum foco. Não que sejam equivocadas, mas não são suficientes para a virada da Reforma Sanitária de que precisamos.

Como garantir esta virada?

Precisamos dobrar os recursos, dobrar a cobertura da atenção básica, integrar em rede hospitais, áreas especializadas e atenção básica. Isso não foi feito no Brasil em lugar nenhum. As regionais estão começando agora, com baixa capacidade de gestão e de governabilidade. Nos anos 1990, com o enfraquecimento dos movimentos sociais, o protagonismo da Reforma Sanitária ficou nas mãos dos gestores. É o setor mais ativo, que mais formulou propostas, mais pressionou o ministério. A saída para isso? Não vejo muita saída. Temos que olhar para o passado, sem saudosismo, e repensar que os movimentos sociais não serão reconstruídos daquela forma. O objetivo agora é aumentar a tensão sobre os gestores. O ritmo de implantação do SUS e a qualidade são insuficientes, a opinião pública está desistindo do SUS. A maioria das pessoas usa, mas o investimento simbólico e concreto é pelo plano de saúde que funcione, para conseguir pagá-lo. Os sindicatos fazem discurso a favor do SUS e nos contratos de trabalho reivindicam plano de saúde privado. E esse setor C da sociedade, que está em ascensão social, tendo acesso aos bens de consumo, mais do por um sistema público, sonha com saúde privada. Quando houve o esvaziamento do movimento social tradicional, ficaram alguns movimentos focais. Os que lutam contra DST/aids, defensores da Reforma Psiquiátrica, alguma coisa semelhante no HumanizaSUS, na Saúde da Família, com ativismo político. Mas são fragmentados, não têm projeto para a consolidação do SUS.

O problema é fragmentação?

Não temos um consenso. Há expoentes da Reforma Sanitária que acreditam na terceirização da gestão e das práticas, através de Organizações Sociais de Saúde (OSS). Outros abominam isso, radicalmente. Alguns setores defendem que a atenção primária deveria ter o mesmo formato que a equipe tradicional da Saúde da Família. Outros querem uma heterogeneidade maior. Devemos ter carreiras municipais, estaduais ou nacionais? Ou não devemos ter carreiras? Há fragmentação e as diretrizes gerais não são suficientes. Não temos um ator político, um bloco político. Mesmo nós, lideranças, não estamos sendo capazes de formular diretrizes que criem certo consenso. Uma referência que tenho usado para pensar saídas é o modelo da 8ª Conferência Nacional de Saúde. O relatório tinha menos de 30 páginas e serviu de bandeira e de projeto para vários setores. Foi um cadinho que uniu vários segmentos, com origens ideológicas e partidárias diferentes. Um projeto comum, da maioria. E passamos durante 10, 15, 20 anos, tentando transformar isso em lei orgânica, no SUS. Agora há um impasse na implantação do SUS pelo contexto econômico neoliberal e por problemas internos — O SUS é muito fragmentado, a municipalização foi muito radical, a gente não consegue criar redes nem sistemas…

A eleição do ministro Alexandre Padilha como presidente do Conselho Nacional de Saúde reflete a fragmentação do movimento?

Não, porque no período anterior o presidente era um trabalhador da Saúde. O segmento dos profissionais que indicou e, analisando o desempenho do Conselho, não acho que foi melhor do que atualmente.

Mas não reflete uma desmobilização em relação à gestão?

Isso. No auge dos movimentos sociais, nós conseguimos uma institucionalidade que incluiu participação social — conferências, nos vários níveis, e os conselhos. Existe um grau de democracia institucional no SUS que é inusitado no Brasil. Isso é norma, que produz tensão social positiva sobre os gestores, sobre o governo. Na medida em que o movimento social se enfraqueceu, seus líderes e representantes perderam a representatividade. O movimento de base diminuiu. São sempre as mesmas pessoas: 70%, 80% delas têm mais de dez anos de mandato. O movimento também perdeu muito a eficácia. O ministro desrespeita o Conselho Nacional e não acontece nada. O Conselho Estadual de São Paulo determina que os ambulatórios de especialidades médicas se integrem na rede da atenção básica. Não se integram e não se passa nada. Isso é um paradoxo. As últimas conferências produziram e refletiram essa fragmentação. Têm 800 resoluções. Ninguém conhece. Nem dentro do SUS e muito menos a opinião pública. Não se conseguiu fazer um discurso como o da 8ª, que falou para a sociedade.

Passados 25 anos da 8ª CNS, qual o seu maior legado?

Um projeto com grande potencial de interação com a sociedade. Resoluções que influenciaram partidos políticos e conseguiram um canal de legitimidade: 80%, 90% delas viraram a Constituição e a Lei Orgânica 8080. Tinham uma eficácia política muito alta para a época.

Como conseguir algo assim na 14ª?

Tenho a esperança de um documento como o da 8ª, que fale para o Brasil e não só para essa militância ativista profissionalizada das conferências, dos conselhos. Respeito essas pessoas, muitas têm dedicação, mas baixa capacidade de representação. A 14ª tem que fazer um diagnóstico do SUS que bata com o sentimento da maioria da população, não fique fazendo só louvação, endeusamento das suas qualidades — que precisam ser defendidas. E apresentar um documento-síntese que pergunte à sociedade brasileira: vocês querem um SUS, de fato? Custa 7% do PIB. Nós temos 3,5% para gastos públicos, precisamos de mais 3,5%. Isso é o custo. Precisamos de carreiras, de profissionais dedicados, de educação permanente, e diminuir a fragmentação. Um documento que fale sobre financiamento e modelos de atenção, numa linguagem muito simples e que consiga comover a sociedade. Até agora, a comissão de organização, que representa gestores, trabalhadores e usuários, já aprovou que vamos tentar fazer dois documentos. O primeiro é essa carta à população. Um apelo por um pacto pelo SUS — não só pelas mães, não só pelas crianças, não só pela mortalidade, mas pela integralidade, pela universalidade. E apontando o que significa materialmente esse pacto: dobrar o recurso financeiro em quatro anos, superar alguns limites do nosso modelo de gestão… O outro documento seria interno, para gestores, trabalhadores e usuários, com as reivindicações específicas de cada programa, de cada área.

A partir desse olhar sobre o SUS, hoje, como se organizará a 14ª?

Alguns professores, pesquisadores e mesmo ativistas concordam com a análise crítica que faço sobre a baixa eficácia política, a fragmentação, a baixa solidariedade e a aspereza nas relações entre os vários setores. Como só discutem divergências, alguns chegaram a propor acabar com a gestão participativa, o que eu acho um equívoco. Melhor ter do que não ter. É igual à democracia. Tem que aperfeiçoar. Para a 14ª, cada conferência municipal pode fazer o relatório que quiser, para o SUS local. Mas vai mandar para as conferências estaduais sete diretrizes prioritárias. E dentro delas, entre cinco e dez propostas. Ou seja: tem que apontar o que considera prioridade agora, para os quatro anos seguintes. Na conferência estadual, terão que discutir e fazer uma síntese. E só levarão sete diretrizes para a Conferência Nacional. Nós estamos nos obrigando a pensar cada vez mais focados em temas estratégicos e não nos detalhes. Que fiquem 14 diretrizes, até compormos a carta aos brasileiros.

Isso vai, inclusive agilizar o processo de votação…

A organização criou também alguns filtros. São 20 grupos na Conferência Nacional, que discutem todas as diretrizes. Tudo que for aprovado por 50% dos grupos não vai para a plenária final, já entra no relatório. Então, vários consensos a comissão de relatoria vai poder fazer. São algumas ideias formais, mas que induzem a se pensar, do ponto de vista estratégico, para a sociedade civil. Não é para trabalhadores ou para essa camada militante de usuários. Fizemos uma pesquisa de satisfação entre usuários de Campinas, sobre a qualidade da saúde mental na atenção primária. Começamos com os usuários do conselho local. Aqui, nós temos conselho local de saúde em cada unidade. Decidimos ampliar a metodologia e incluir usuários não ativistas, fazer duas coortes. É outro discurso! Outra avaliação.

Qual a grande diferença entre as duas avaliações?

Os usuários-militantes têm um discurso parecido com o nosso, sanitaristas, gestores. Explicam que existe
fila por conta da lei de responsabilidade fiscal, e por isso falta pessoal, não se pode contratar e tal. Os outros usuários só sabem que não foram atendidos. Não que esses usuários sejam contra o SUS. Mas conhecem seus problemas reais. Esse movimento mais institucionalizado, em todos os segmentos — trabalhadores, usuários e gestores — foi perdendo o compromisso de falar sobre problemas concretos e enfrentá-los.

O SUS se comunica mal com a sociedade?

Sim. Mesmo com a gestão participativa, a nossa capilaridade real com a sociedade é baixa. Como dar voz e poder de deliberação a esse usuário não especializado em ativismo? Apesar de esta engenharia de gestão participativa ser muito sofisticada, nós temos que pensar em uma rede, um sistema mais capilarizado. Penso que haver vínculo, em todos os serviços de saúde, entre equipes de profissionais e usuários, é uma forma de controle social importante. Você saber quem é seu médico, por mais que fique seis horas em um pronto socorro, quem é seu enfermeiro… Enfim, temos que pensar redes, assembleias de usuários, que não sejam deliberativas, mas que sejam informativas, de comunicação.

Essa seria uma forma de facilitar o acesso?

Creio que sim. O tema do acesso é perigoso. O eixo único da conferência é Acesso e acolhimento com qualidade: um desafio para o SUS. Se ficarmos com acesso e acolhimento sem qualidade é para fazer medicina e atenção à saúde de baixa qualidade para o povão, um perigo muito grande. Tem que haver acesso, acolhimento e qualidade como palavras de ordem. O SUS tem problema de acesso na atenção básica e na atenção aos problemas crônicos — quem tem câncer, quem tem deficiência física, família que tem portador de deficiência mental… O SUS não tem proposta para deficiência mental até hoje. A gente criou a universalidade e a equidade para os que têm HIV antes do que para os que têm deficiência física. Tudo pressão política. Mais articulação, um projeto vertical, uma rede temática… Saúde mental fez a mesma coisa, com uma amplitude menor, mas avançou mais que o SUS.

A escolha de um eixo único sintoniza-se com a proposta de desfragmentação…

Sim, porque trata de acesso e qualidade. Há uma chance grande de essa conferência ter alguma coisa a dizer para a sociedade. Eu imagino que se isso acontecer, vai haver uma fratura com os governos. Como não se tem recursos para implantar o SUS, o governo prioriza alguns temas, algumas linhas de cuidado. Eu era o vice na gestão de Humberto Costa no Ministério da Saúde, portanto corresponsável, quando definimos quatro diretrizes: Urgência e Emergência e Samu, Brasil Sorridente, Farmácia popular e o QualiSUS. Não que fossem ruins, mas eram insuficientes. Os governos, por querer mostrar algum serviço em quatro anos, escolhem um programa muito focal. Às vezes isso é necessário, quando se tem uma epidemia de aids ou dengue. Não há problema nisso, mas é preciso haver um plano estratégico.

Nesse cenário, levam vantagem os setores que têm melhor articulação política…

Isso. Alguns brasileiros têm mais direito à saúde que outros. Porque estão em cidades onde a gestão foi
mais capaz de fazer avançar o SUS. Às vezes, na mesma região há diferenças. O morador de Campinas tem melhor acesso e qualidade no SUS do que o de Sumaré, uma cidade emendada a Campinas. Por quê? Porque a gestão de Campinas é muito melhor.

O que representa esse novo pacto que a 14ª CNS propõe para o SUS?

O discurso que estou fazendo — no Conselho, nas conferências estaduais de que participei no Sul, municipais em Campinas e Goiânia, nas entrevistas — é chamar a atenção para isso: gente, olha, nada contra as redes temáticas, nada contra as linhas de cuidado, mas o Brasil tem que discutir um pacto para o SUS, porque a opinião pública está desistindo do SUS. Nós estamos nos conformando em ter um SUS residual, onde só cabem algumas populações carentes e alguns programas que o mercado não atende.

Como o participante pode se preparar para a conferência?

Primeiro: deve pensar em estratégias. O que nós temos que fazer para avançar o SUS é dobrar o recurso financeiro. Como faremos isso neste país, nesta época? Segundo — e aí a presidenta Dilma tem toda razão — não dá para aumentar o dinheiro do SUS sem dizer onde se vai gastar e a forma. Queremos aumentar mais 3,5% do PIB para estender a atenção básica? Que atenção básica? Vamos ou não poder escolher o médico? Vai ter avaliação, carreira? Qual será o papel dos hospitais? É importante essa aliança entre usuários e trabalhadores. A população sabe que quer ter acesso e qualidade. Os modelos e formas de se fazer isso dependem muito do discurso dos profissionais, dos especialistas. Onde há sistema nacional, como na Inglaterra, houve aliança política e técnica entre trabalhadores e sociedade civil. E também influência de partidos políticos, universidades. Precisamos de mais dinheiro e dizer onde vamos colocar. Não há consenso, stricto sensu, sobre a Reforma Sanitária. Nós paramos de discutir. É importante esse esforço de tentar uma síntese, um discurso que salve a gente desse impasse.

Que impasse?

A norte-americanização da atenção à saúde no Brasil. Temos algumas evidências, não podemos ignorá-las. O Brasil gasta 7% do PIB com saúde, 3,5%, com o SUS, os outros 3,5%, com a saúde suplementar, que atende 25% das pessoas. O gasto per capita com o mercado é alto. É 4,5 mil dólares. Imagine se você pegar 80% dos brasileiros e jogar para esse modelo norte-americano. A Lígia Giovanella [pesquisadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde, da Ensp/Fiocruz] e o Nelsão [Nelson Rodrigues dos Santos, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp fizeram uma comparação interessante. Varia, mas os Estados Unidos estão gastando 4 mil dólares per capita com atenção à saúde. Mas 40% dos norte-americanos ou não têm cobertura, ou têm cobertura muito focal, em planos pequenos. Mais ou menos 58% da população têm uma cobertura próxima da integralidade. O gasto per capita com essa parcela da população é 13 mil dólares. O que o presidente Obama queria? Uma lei para universalizar e criar um SUSzinho para estes 40%. A Inglaterra garante este padrão de 13 mil dólares gastando 3 mil dólares per capita. Pela racionalidade do modelo, pelo papel da atenção básica, da promoção e das diretrizes, pela utilização racional dos hospitais e da medicalização. Com 2,3 mil dólares, você garante uma atenção de qualidade para o conjunto da sociedade. Agora, a mudança de modelo exige uma reforma política. Tem que confrontar interesses: de corporações médicas, do setor hospitalar, da indústria farmacêutica, da cultura da população, consumidora de medicalização. No Canadá e na Inglaterra, o cidadão não vai direto ao psiquiatra, nem ao psicólogo. Tem um filtro na atenção básica.

É possível mudar a cultura de medicalização?

É possível. Essa cultura é mais fraca nesses países que citei. Ainda que se tenha propaganda, há uma racionalidade defendida pela maioria da população. No Canadá, a população se habituou a não ter acesso direto a um ortopedista. Essa interação entre trabalhadores e usuários é fundamental. Eu digo que, para o SUS dar certo, há três planos: um deles é político, que é o do financiamento, das diretrizes; há outro que é de modelo de atenção, com a definição do papel da atenção primária; e tem o terceiro, que é a mudança de paradigma e de prática. Esse consumismo é induzido pelo mercado, mas é confluente e funcional com a Biomedicina, com o paradigma de que a doença é somente orgânica, que as únicas terapias são cirurgia ou remédio. Estilo de vida e autocuidado também são terapias: subjetivas, sociais e psicossociais. Esse reducionismo do modelo biomédico estimula a medicalização. Nossa reforma tem que caminhar nestes três planos: político-financeiro, de atenção e gestão e de paradigma.

Poderia citar exemplos?

No SUS, até hoje, diretores de unidades básicas e de hospitais são cargos de confiança de secretários. Isso é um absurdo. No mundo inteiro não é mais. Cargo de confiança é o do ministro, do diretor de regional de Saúde. O resto é carreira, concurso interno. Conheci cidades que nomearam leigos, pessoas usuárias para dirigir unidades de saúde. Isso é demagogia. E outros, racionalistas tecnocráticos, põem gestores da Volkswagen para administrar hospital público. Pode ser um bom assessor na área financeira, administrativa, de processos, mas não na área clínica, de reabilitação. É outra lógica. Quanto custa mudar isso? Por que o movimento social não procura alguns deputados e faz uma lei proibindo municípios, estados e União de usar cargos de confiança e obrigando a criar procedimentos internos (e podemos discutir quais são) nos serviços de saúde? Uma medida básica que poderia diminuir muito o clientelismo. Essa é uma discussão complexa, que tem que caminhar junto com a defesa do aumento de recursos e legitimar o SUS como política, criar um pacto nacional em defesa do sistema de saúde. Um compromisso das pessoas. Eu já propus, em palestra, um plebiscito com a população brasileira: vocês querem o SUS? Com 7,5% do PIB, público, com controle social, avaliação de desempenho? Por que aí a gente iria para cima do governo dizendo que o povo escolheu. Ou não. Eu tenho medo de perder (risos). Mas prefiro isso do que a gente ficar se enganando. Porque se for outro modelo, aí, sim, só vamos cuidar dos carentes, de algumas epidemias, e o Brasil vai para o buraco daqui a algum tempo, por ser inviável do ponto de vista financeiro.

Fonte: Revista Radis

 

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