Ainda nos primeiros dias de 2023, o Brasil – e o mundo – ficou impactado com as notícias que chegavam do território Yanomami, em Roraima: imagens de crianças com desnutrição severa circularam como uma denúncia do genocídio em curso. O governo federal decretou uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, em 20 de janeiro. A mesa “Emergência Yanomami em perspectiva”, durante o 9º CSHS, abordou a ação e seus desdobramentos. 

Segundo Ana Lúcia Pontes, integrante do GT Saúde Indígena da Abrasco,  foi a primeira vez que o Estado brasileiro decretou uma emergência sanitária em território indígena, e também a primeira vez que a medida veio em resposta à desassistência e desestruturação da própria ação estatal. Pontes esteve à frente do Centro de Operação de Emergências em Saúde Pública (COE – Yanomami),  de janeiro a julho deste ano.  

“Não sabíamos como estaria a SESAI. Foi um dos primeiros órgãos desmontados, evangelizados e militarizados. Não sabíamos em quem confiar, e nem como a máquina funcionava. Sabíamos da crise sanitária com os Yanomami , e o cenário era preocupante. Fomos para Roraima, não tinha como acompanhar de Brasília”, contou Pontes. Foi a primeira vez que ela falou publicamente sobre a experiência, que  descreveu como um processo “ainda a ser digerido”, em âmbito pessoal e profissional. 

Retrospectiva 

Em maio de 2021, a Abrasco emitiu uma nota técnica, e a APIB iniciou a ADPF 709, junto ao STF, pedindo a retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami. Em maio de 2022, a Abrasco e demais entidades científicas emitiram um alerta reportando que a invasão dos territórios, a degradação ambiental e a inércia do então governo federal estavam causando insegurança alimentar e desnutrição crônica em crianças, além de explosão de casos de malária, Covid-19 e outros agravos. Denunciavam, também, a contaminação por mercúrio. 

Só no início de 2023, com a mudança de governo, o Ministério da Saúde organizou uma missão exploratória no território, com foco nos polos base Surucucu, Xitei e Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami de Boa Vista, no estado de Roraima. “O relatório da missão Yanomami revelou déficit de recursos humanos, dificuldade de acesso,estrutura precária nos polos, mortes evitáveis de crianças e fragilidades na rede de assistência. As imagens de crianças desnutridas chegaram ao presidente Lula, tornando-se pauta prioritária do governo federal em 20 de janeiro”, pontuou Ana Lúcia. 

Ela explicou que a ação imediatista do governo foi delicada: “Esse contato com os povos indígenas não pode ser rápido, nem invasivo, precisa ser construído. Mas não houve tempo, foi tudo muito rápido. O Estado falha quando não faz e falha quando age. Era necessária uma resposta rápida, mas ela também traz danos por ser rápida”. 

Além do Ministério da Saúde, diversos órgãos federais se envolveram – Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Defesa, Ministério do Ministério do Desenvolvimento Social, Funai , dentre outros – assim como organizações da sociedade civil e controle social. Cerca de 760 profissionais foram contratados emergencialmente, com destaque para cerca de 244 voluntários da Força Nacional do SUS.

Esquecimento geral 

Apesar da comoção nacional no início do ano, Pontes acredita que já há um esquecimento geral: há comprovação de que os garimpeiros estão voltando para a região, o que significa, inegavelmente, doença e morte. O trabalho de Barbara Sousa Moreira , da Urihi Associação Yanomami, é exatamente lutar para que a sociedade não ignore as necessidades – e os direitos – desse povo indígena. 

Muitas das fotos que circularam em jornais do mundo todo, foram tiradas pelos integrantes da Urihi. Na cultura Yanomami, fotografar uma pessoa é “roubar” sua alma. “Sabemos que fere seus costumes, a circulação de imagens estampando seu sofrimento. Mas eles entendem que é  importante que as pessoas tenham acesso a essas imagens para que possam ver a situação em que foram postos”, contou Moreira. 

Em novembro, o Centro de Referência em Saúde em Surucucu, estruturado pelo COE, foi desmobilizado. A Urihi redigiu um documento, direcionado ao Ministério da Saúde e ao governo federal, solicitando em caráter  emergencial a instalação de um novo centro. “Esse centro de referência foi quase uma UTI, recebeu até gente baleada. 99% do acesso ao território Yanomami é aéreo, então ter uma unidade de saúde como essa no território salva vidas”, explicou Moreira. Ela também afirmou que enquanto o centro estava ativo, muitas pessoas não precisaram ser transferidas para o Hospital Regional de Roraima. 

Em julho, aconteceu o  4º Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, em Maturacá (AM). Os líderes assinaram um documento, com as seguintes reivindicações: proteção territorial, assistência à saúde, educação, recuperação ambiental e segurança alimentar. Segundo Moreira, uma política contínua para segurança alimentar é primordial, para evitar a mesma crise em 4 ou 5 anos.

“Os Yanomami sempre falam muito sobre  educação, querem ter escolas estruturadas, e professores valorizados. Ainda estamos em crise, ainda estamos em uma emergência, em situação de extrema vulnerabilidade”, pontuou Moreira. 

Formação de profissionais de saúde indígena deve ser prioridade 

Inara Nascimento Tavares, coordenadora do GT Saúde Indígena da Abrasco e professora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena (UFRR), também participou do COE Yanomami, especificamente da reestruturação da Casai Yanomami Boa Vista. Além da reforma no espaço, foi necessário repensar o modo como a unidade de saúde era utilizada. “Foram muitos conflitos de mediação de mundos – com os próprios indígenas, e também com os profissionais que chegavam de Brasília, Minas Gerais, Rio de Janeiro e caíam em Surucucu sem entender a dinâmica dos territórios”, contou. 

A professora disse que a experiência provocou muitas reflexões sobre a formação dos profissionais de saúde não indígenas – já que Saúde Indígena é matéria optativa, nos cursos de saúde. Ela identificou um diferencial entre integrantes do Mais Médicos, por exemplo, com experiência em unidades de saúde periféricas ou isoladas, e médicos recém saídos de consultórios. 

Além disso, ficou evidente também os desafios na absorção dos profissionais indígenas de saúde na estrutura do Estado, atravessada pela burocracia e pelo racismo institucional. “Quando é uma pessoa indígena como referência de cuidado, faz muita diferença para quem está ali sendo atendido. Pode ser de outro povo, mas é parente. Mas a presença desses trabalhadores revela muito racismo. Uma médica branca, por exemplo, chamou uma mulher indigena do povo macuxi, gestora de saúde, para limpar o consultório”, disse Tavares. 

Ela defendeu que a Casai seja um espaço para promover a saúde e o bem-viver, não um espaço de adoecimento. “Os Yanomami não se veem com essas imagens que circularam. Há vida, mesmo em torno da  emergência”, pontuou. 

Ana Lúcia Pontes concordou que a qualificação profissional é essencial, e que para algumas pessoas é necessário dias, até meses, para entender a dinâmica do território – outras nunca serão capazes de compreender. “O momento é de construir políticas, a  SESAI tem que ser fortalecida, os distritos sanitários precisam ser fortalecidos. É preciso melhorar os processos dos concursos, as universidades precisam formar gente apta. Sobretudo, o cuidado aos povos indígenas deve continuar como prioridade. As pessoas estão morrendo, e estão morrendo hoje”. 

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