O debate em torno da regulamentação do uso da maconha no Brasil chegou ao Congresso Nacional. No Senado Federal o tema surgiu por recomendação popular que obteve o apoio de 20 mil assinaturas. Na Câmara dos Deputados, o tema surgiu por meio de dois projetos de lei – 7187/2014 e o 7270/2014 – que propõem a regulamentação da produção, comércio e consumo da maconha. As propostas seguem as mudanças no status legal da Cannabis feitas nos Estados Unidos e no Uruguai e se baseiam em evidências de que a criminalização do uso da maconha é danosa tanto do ponto de vista social e da saúde quanto para o progresso científico e para a economia. O próprio organismo das Nações Unidas para o controle de drogas, UNODC, aponta que a criminalização é o caminho menos produtivo e eficiente para lidar com uma questão de saúde pública.
Diante dos problemas agravados pelas políticas de repressão às drogas, é urgente que o Brasil faça um debate amplo, baseado nas evidências mais recentes produzidas por pesquisas científicas e em experiências exitosas no tratamento da questão. Com intuito de fortalecer e contribuir com o debate público, as entidades e profissionais abaixo assinadas vêm a público apoiar o debate e esclarecer alguns mitos recorrentes no debate:
1) O argumento de que a regulamentação é igual ao descontrole não é real conforme dados psiquiátricos, neurocientíficos, econômicos, sociológicos e antropológicos apontam. A Cannabis regulamentada teria venda permitida apenas em locais autorizados, como no caso dos remédios, adquiridos exclusivamente em farmácias mediante um controle de venda. Reforçamos a necessidade de políticas públicas adequadas para a Cannabis, isonômicas em relação ao álcool e ao tabaco.
2) A regulamentação da maconha será benéfica para o controle de seu uso, hoje subnotificado por causa do temor dos usuários em afirmar que utilizam uma substância ilícita. Apesar de proibida, a maconha é consumida por mais de um milhão de brasileiros (Lenad, 2012). Estas pessoas devem ser retiradas da ilegalidade e receber o direito de cultivar a planta para consumo próprio ou pagar impostos por um consumo comercial lícito. Um dos principais problemas de saúde relacionados ao uso de maconha hoje é sua baixa qualidade, com fungos e adulterantes. Ainda mais lesivo à sociedade brasileira, usuários de maconha ou não, é o fato de seu comércio ser controlado por organizações criminosas. Estes fatores estão atrelados à sua ilegalidade e serão mitigados num cenário regulamentado.
3) Os efeitos terapêuticos da Cannabis são consensuais tanto na literatura científica moderna como na medicina tradicional. Hoje, não há dúvida sobre seu potencial medicinal no auxílio ao tratamento de doenças como Aids, câncer, epilepsias, esclerose múltipla, dores neuropáticas, Huntington, Parkinson, artrites, insônia, glaucoma, anorexia, dependência de outras substâncias e síndromes genéticas e comportamentais como Dravet, CDKL5 e autismo. Apenas quem desconhece os recentes trabalhos clínicos com a Cannabis pode negar esses benefícios. Mais de 20 estados americanos e inúmeros países desenvolvidos utilizam em seus pacientes tratamentos com canabinóides.
4) Todas as drogas, lícitas e ilícitas, podem causar danos para a saúde, principalmente entre jovens e adolescentes. Segundo estudo publicado no The Lancet, um dos principais jornais científicos do mundo, a maconha, apesar de ilícita, apresenta risco mais baixo de adição e causa menos danos, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, quando se comparada ao álcool e ao tabaco.
5) São necessárias políticas rígidas de controle do álcool a fim de evitar o uso abusivo, principalmente entre jovens menores de 18 anos. A política do tabaco é um exemplo positivo de como a restrição do consumo associada à abordagem de saúde podem contribuir para a forte diminuição das taxas de consumo e dos danos decorrentes do uso. As experiências internacionais apontam que a regulamentação, e não a proibição, é que abre portas para um controle mais efetivo, além de permitir uma estratégia pragmática de prevenção do uso abusivo de drogas, pautada na educação sobre os fatores de risco e a dependência.
6) As evidências na literatura médico-científica que apontem para a maconha como causa de esquizofrenia ou de outras psicoses ainda são inconclusas, embora os dados disponíveis sugiram que o consumo deva ser evitado entre jovens menores de 18 anos. É importante lembrar que uma série de fatores pode servir de gatilho para o início da doença. Assim como o estresse ou o álcool, a maconha pode deflagrar o aparecimento dos sintomas, mas não pode causá-los. Não houve evidência de aumento de prevalência de esquizofrenia em comunidades que flexibilizaram as regras para o acesso à maconha e os dados atuais nos permitem afirmar que fatores de risco familiares ou a vulnerabilidade social sejam mais relevantes para o surgimento da doença do que o consumo de Cannabis. Predisposições individuais para reações adversas existem para todas as drogas. O melhor contexto para identificar pessoas em grupos de risco é um ambiente social com ampla informação, solidariedade e ausência de medo. Tal ambiente só é gerado pela regulamentação do uso lícito.
7) Experiências internacionais apontam que um ambiente de regulação é o mais propício para um controle eficaz e preventivo para o abuso de drogas uma vez que retira o usuário das mãos de traficantes, afasta-o de situações de risco e do perigo de ingestão de substâncias desconhecidas, permite uma prevenção honesta por meio de um diálogo franco e aberto sobre os riscos e consequências de cada droga e gera um ambiente de acolhimento e cuidados de saúde para os dependentes.
O uso recreacional da maconha é muito complexo para ser discutido apenas por médicos, dado que são pessoas sadias que fazem esse uso. É necessário um amplo debate multidisciplinar com a participação de psicólogos, sociólogos, antropólogos, juristas e especialistas das mais diversas áreas do conhecimento. Por estes motivos, entre outros, as entidades e os indivíduos abaixo assinadas vêm a público se posicionar a favor de que o Congresso Nacional, o governo federal e a sociedade brasileira discutam abertamente uma reforma da atual política de drogas que busque maneiras mais justas e humanas de lidarmos com esta questão.
Assinaturas:
1. Associação pela Reforma Prisional – ARP
2. Associação Brasileira de Estudos Sobre o Uso de Psicoativos – ABESUP
3. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT
4. Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO
5. Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME
6. Centro Brasileiro de Estudos da Saúde – CEBES
7. Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas – CEBRID
8. Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC
9. Chefes de laboratório do Instituto do Cérebro da UFRN (Adriano Tort, Antonio Pereira, Claudio Queiroz, Draulio de Araujo, Katarina Leão, Marcos Costa, Richardson Leão, Rodrigo Pereira, Sergio Neuenschwander, Sandro de Souza, Sidarta Ribeiro)
10. Conectas
11. Conselho Federal de Psicologia – CFP
12. Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Psicoativos (GIESP) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – UFBA
13. Grupo de Pesquisas em Direitos Fundamentais (Roberto B. Dias da Silva e Konstantin Gerber) – PUC-SP
14. Growroom
15. Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – LEIPSI -Unicamp/SP
16. Laboratório de Neuroanatomia Celular – UFRJ
17. Rede Latinoamericana de pessoas que usam drogas – LANPUD
18. Instituto Brasileiro de Ciências Criminas – IBCCRIM
19. Instituto Silvia Lane- Psicologia e Compromisso Social
20. Movimento Mudança
21. Movimento de Rua
22. Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP
23. Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos – PUC SP
24. Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes – PROAD
25. Rosa Maria Marques – presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde
26. Rede Pense Livre – por uma política sobre drogas que funcione
27. Renato Malcher – neurocientista, professor Phd e pesquisador do Laboratório de Neurologia e Comportamento do Departamento de Ciências Fisiológicas do Instituto de Biologia da UNB
28. Revista semSemente
29. Smoke Buddies – Portal Cannábico
30. União Nacional dos Estudantes – UNE