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 POSICIONAMENTO ABRASCO 

Especial Abrasco sobre o aumento da mortalidade infantil e materna no Brasil

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva manifesta publicamente sua preocupação diante do aumento da mortalidade infantil e materna no Brasil e faz um alterta, através deste Especial Abrasco, aos profissionais de saúde, gestores e pesquisadores do campo da Saúde Coletiva e à sociedade brasileira. Após um período de declínio sustentado dos coeficientes de mortalidade no primeiro ano de vida em todo o país, em 2016 houve a reversão desta queda.

Ao analisar os dados registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM do Ministério da Saúde de 2010 a 2016, sem efetuar correção por sub-registro de óbitos, pode-se constatar que:

1. O número total de óbitos infantis no Brasil diminuiu entre os anos de 2015 e 2016. O SIM registrou no primeiro ano de vida 37.501 óbitos em 2015 e 36.350 em 2016. Esta diminuição foi verificada nas cinco regiões do país;
2. No entanto, os coeficientes de mortalidade infantil – CMI apresentaram aumento em todas as regiões, com exceção da região Sul. Os dados mostram que, no Brasil de 2015 para 2016, o CMI aumentou em 2,4% (12,4 para 12,7 por 1000 nascidos vivos). As regiões com os maiores percentuais de aumento foram a Nordeste e a Centro-Oeste (3,4% e 3,6%, respectivamente). Esse aumento dos coeficientes de mortalidade é explicado pela importante retração no número de nascidos vivos nesse período: 3.017.668 em 2015 e 2.857.800 em 2016;
3. Ainda comparando os dados de 2015 e 2016, os coeficientes de mortalidade no período neonatal (óbitos de 0 a 27 dias de vida) ficaram estáveis em todas as regiões do país, mas a mortalidade pós-neonatal (óbitos de 28 a 364 dias de vida) aumentou, com exceção da região Sul. O maior aumento foi observado na região Nordeste, onde o coeficiente de mortalidade pós-neonatal passou de 3,8 em 2015 para 4,2 por 1000 nascidos vivos em 2016;
4. Entre os óbitos com causas definidas, o número de mortes infantis por diarreia que vinha progressivamente caindo entre 2010 e 2015, aumentou em 2016 em todas as regiões, com exceção da região Sul. Este aumento levou a uma elevação do coeficiente de mortalidade pós-neonatal específica por diarreia entre 2015 e 2016 no país, e nas regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro Oeste;
5. Já o percentual de óbitos infantis sem definição da causa básica variou de 2,2% para 2,6% no Brasil, enquanto que no período pós-neonatal, a variação foi de 5,9% para 7,0%. Apenas na região Norte não se verificou aumento deste indicador entre os anos 2015 e 2016;

Embora seja prematuro afirmar que esse aumento da mortalidade infantil será mantido nos próximos anos, é importante observar que a reversão da tendência de queda em 2016 foi decorrente do aumento de óbitos no período pós-neonatal. Óbitos, estes, que ocorrem justamente em consequência da exposição a fatores externos associados à piora das condições de vida e do acesso a serviços de saúde.

Estas observações são um alerta e precisam ser analisadas por um período maior de tempo para que se possa verificar se esses aumentos serão mantidos ou se houve oscilações ocasionais. A Abrasco chama a atenção, no entanto, que nesse mesmo período – entre 2015 e 2017, houve piora em outros indicadores calculados a partir dos dados do SIM como a mortalidade por agressões em adolescentes e adultos jovens. A mortalidade materna, por exemplo, teve uma redução de 43% entre 1990 e 2015 porém em 2017 apresentou ligeiro aumento.

A mortalidade materna está sofrendo os mesmos efeitos dos fatores associados ao aumento da mortalidade infantil, como a crise econômica, o ajuste fiscal e os cortes de investimentos em saúde. O Brasil está assistindo a estes aumentos e à queda nas coberturas de imunização e o risco do surgimento de epidemias de doenças já controladas no passado e é dever da Abrasco evidenciar a opinião de especialistas para o entendimentos destes números. Não devemos aceitar que depois de tantas conquistas estejamos caminhando para trás a passos largos.

MORTALIDADE INFANTIL – OPINIÃO DE CESAR VICTORA

Pela primeira vez desde 1990, houve aumento na taxa de mortalidade infantil do Brasil em 2016, e a tendência é que o índice de 2017 se mantenha acima do registrado em 2015. A Abrasco ouviu a opinião de Cesar Victora, epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas que na década de 1980, realizou o primeiro estudo que mostra a importância da amamentação exclusiva para prevenir a mortalidade infantil.

Abrasco – O Ministério da Saúde atribui a alta mortalidade à emergência do vírus da zika e à crise econômica. Desde 2015, Brasil teve 351 mortes de fetos, bebês e crianças associadas ao vírus da zika, mostrou último boletim da pasta, com dados coletados até 14 de abril de 2018. Você concorda com o diagnóstico do governo?

Cesar – Recentemente, o MS relatou um aumento real na mortalidade infantil em 2016 e 2017, que não seria explicado pela epidemia de zika. Causas de morte como a diarreia estão mostrando um aumento, e colegas do MS estão convocando um grupo de especialistas, do qual eu faço parte, para investigar os motivos do aumento.

Abrasco – Os cortes nos investimentos sociais e no Sistema Único de Saúde poderiam ser fatores para o aumento da mortalidade?

Cesar – Sem dúvida alguma, a pobreza cresceu recentemente, o que foi refletido na evolução do índice de Gini para concentração de renda, o qual apresenta um aumento após muitos anos seguidos de redução. O subfinanciamento do SUS é cada vez mais crítico, particularmente agora com a contenção dos gastos públicos. Em todo o mundo, gastos de saúde crescem mais rapidamente do que a inflação, devido à incorporação de novas tecnologias. A situação do SUS tende a piorar ainda mais se não forem tomadas medidas urgentes para a recomposição de seu orçamento.

Abrasco – É possível dizer que estudos epidemiológicos mostram a correlação entre diminuição do salário mínimo e o crescimento da mortalidade infantil, e entre destruição das políticas de assistência social e o aumento da mortalidade infantil?

Cesar – É interessante lembrar que durante a década de 1970, com as perdas no valor do salário mínimo durante a ditadura militar, foi realizado um estudo clássico por Walter Leser mostrando o aumento na mortalidade infantil que coincidiu com a desvalorização do salário mínimo. Sem dúvida, o valor do salário mínimo e dos benefícios sociais (como o Bolsa Família) influenciam a saúde e a mortalidade. Creio que ainda é cedo para identificar exatamente quais os fatores responsáveis pelo aumento na mortalidade infantil, mas as pioras observadas para alguns dos determinantes sociais certamente têm um papel importante. Preciso salientar que, assim como a mortalidade infantil, há evidências de aumento recente na mortalidade materna. Além dos determinantes sociais, é importante mostrar aqui a questão da ilegalidade do aborto, do excesso de cesarianas desnecessárias, e da má qualidade do atendimento durante a gestação e o parto.

MORTALIDADE INFANTIL – OPINIÃO DE CELIA LANDMANN SZWARCWALD

Para Celia Landmann Szwarcwald, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, devido ao acentuado ritmo de queda da mortalidade infantil até 2015, a magnitude da taxa nacional nesse ano, estimada em 13,5 por 1000 nascidos vivos, se equiparava às observadas em países de mesma renda per capita, fato que não ocorria até meados dos anos 2000, quando a taxa de mortalidade infantil no Brasil era superior à esperada de acordo com o PIB per capita: – “É uma lástima o retrocesso na taxa de mortalidade infantil observado em 2016, depois de termos superado importantes desafios. Como observado anteriormente, o aumento em 2016 na proporção de óbitos infantis sem definição da causa básica e nos óbitos infantis por diarreia refletem a piora no acesso à assistência médica, consequências prováveis dos cortes no SUS e em programas sociais”, alerta Landmann. Confira a íntegra da entrevista Abrasco com Celia Landmann.

Abrasco – O Ministério da Saúde atribui a alta mortalidade o aumento na mortalidade infantil à emergência do vírus da zika e à crise econômica. Você concorda com o diagnóstico do governo?

Celia Landmann – De fato, a análise da taxa de mortalidade infantil (TMI) no período 2010-2016 mostra decréscimo progressivo, de 16,0 para 13,5 por 1000 nascidos vivos (NV), de 2010 a 2015, e aumento no ano de 2016, para 13,9 por 1000 NV. O acréscimo na TMI caracteriza-se pela diminuição do número de nascidos vivos em 2016, atribuída, provavelmente, à proporção de mulheres que evitaram a gravidez logo após a epidemia de zika; e pelo aumento no número de óbitos infantis no período pós-neonatal, no número de óbitos infantis por diarreias, e no número de óbitos sem definição da causa básica, enquanto os óbitos por anomalias congênitas continuam em diminuição. Percebe-se, assim, que os aumentos, apesar de pontuais, ocorreram para categorias específicas, todas associadas à piora nas condições de vida e no acesso à assistência médica, refletido no aumento do percentual de óbitos por causas mal definidas. Embora não tenhamos dados de mortalidade posteriores ao ano de 2016 para afirmar que existe uma reversão na tendência da TMI, os aumentos pontuais em causas específicas são sinais claros da crise socioeconômica, e dos cortes de recursos nos programas sociais e no SUS.

Abrasco – No período 2000-2010, a Região Nordeste apresentou a maior taxa de redução da mortalidade infantil, de 5,9% ao ano, seguida da Norte (4,2%), o que contribuiu para a diminuição da desigualdade regional. A maior queda nas regiões com pior nível socioeconômico reflete a ampliação da atenção primária em saúde?

Celia Landmann – A mortalidade no primeiro ano de vida, indicador reconhecido pela sua sensibilidade às condições de vida e de saúde, mostrou importante decréscimo no período 2000-2015, de 26,1 a 13,5 por 1000 NV. A taxa de decréscimo de 4,5% ao ano na totalidade do Brasil, reflete, sem dúvida, os avanços alcançados em termos da expansão do acesso à assistência médica. No mesmo período, a região Nordeste foi a que apresentou a maior taxa de redução, seguida da Norte, contribuindo para a diminuição da desigualdade regional na mortalidade infantil, que se prolongava há várias décadas. A maior redução da mortalidade infantil nas regiões brasileiras de pior nível socioeconômico reflete, sem dúvida, os benefícios relacionados à ampliação da atenção primária em saúde, que possibilitou o maior acesso da população aos serviços básicos de saúde, importantes para a saúde da criança e da mulher antes, durante e após a gravidez.

Abrasco – Qual o papel, na sua opinião, da universalização das imunizações na redução da mortalidade infantil?

Celia Landmann – Reconhecida amplamente como uma das medidas preventivas de maior custo-benefício, as ações de imunizações foram experiências de êxito no Brasil. A universalização das imunizações teve papel importante na redução da mortalidade infantil. Em relação ao sarampo, não houve registro de óbito infantil por esta doença desde 1999, e quanto ao tétano neonatal, o número de óbitos sofreu uma substancial redução, de 141, em 1990, para apenas 1, em 2015.

Abrasco – Permanece o desafio de reduzir a taxa de mortalidade neonatal, sobretudo o componente precoce, o que mostra a importância dos fatores ligados à atenção à gestação, ao parto e ao nascimento?

Celia Landmann – Sim, existe ainda um grande espaço para a diminuição da mortalidade infantil, com grandes problemas a enfrentar em relação à mortalidade neonatal. Os dados de mortalidade mostram um decréscimo bem mais acentuado na mortalidade pós-neonatal no período 2000-2015 do que no componente neonatal, com grande concentração de mortes no período neonatal precoce. Esse padrão de comportamento temporal da mortalidade infantil, que se concentra no período neonatal precoce e apresenta ritmo menor de decréscimo quanto mais próximo do parto, evidencia a importância dos fatores ligados à gestação, ao parto e ao pós-parto, em geral preveníveis por meio de assistência à saúde de qualidade. Ainda que as coberturas do atendimento pré-natal e ao parto hospitalar sejam elevadas, esforços adicionais dirigidos a melhorar o acesso à assistência ao parto com qualidade e a ampliar a integração entre as ações desenvolvidas na atenção primária e os serviços de atenção ao parto são fundamentais para a redução da mortalidade neonatal no país. A peregrinação em busca de assistência hospitalar para o parto, a ausência de profissional capacitado para o acompanhamento do trabalho de parto, e o atraso na realização do parto indicam falhas na linha de cuidado da gestante e desarticulação entre os níveis de atenção ambulatorial e hospitalar, reforçando a necessidade de uma gestão integrada das redes de atenção à saúde para potencializar as capacidades municipais em atender, com qualidade, à gestação, ao parto e ao nascimento.

Não se pode deixar de destacar, igualmente, a importância do monitoramento da taxa de mortalidade perinatal, considerada como um desfecho de saúde chave para interpretação do impacto dos cuidados de saúde materno-infantil. No Brasil, como em outros países, a análise das estatísticas de óbitos ocorridos no período perinatal enfrenta dificuldades adicionais, uma vez que as definições de natimorto e de nascido vivo nem sempre são obedecidas, e milhares de recém-nascidos não são registrados como tendo nascido. Em 2015, o número informado de natimortos com peso superior a 2500 g foi de 8280 óbitos, mais de 60% destes com 37 semanas ou mais de gestação, indicando que muitos dos óbitos que ocorrem logo após o parto podem estar sendo classificados, incorretamente, como óbitos fetais.

Abrasco – Nos anos 1990, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e a Estratégia da Saúde da Família viabilizaram a interiorização de equipes de saúde da família e a ampliação do acesso aos serviços de Atenção Básica à Saúde, contribuindo expressivamente para o aumento da cobertura da atenção à saúde reprodutiva e infantil. Pesquisas mostraram que, a cada 10% de aumento da cobertura da Estratégia Saúde da Família, havia redução em 4,6% da mortalidade infantil. Os cortes nos investimentos sociais e no Sistema Único de Saúde poderiam ser fatores para o aumento da mortalidade?

Celia Landmann – Certamente. Devido ao acentuado ritmo de queda da mortalidade infantil até 2015, a magnitude da taxa nacional nesse ano, estimada em 13,5 por 1000 nascidos vivos, se equiparava às observadas em países de mesma renda per capita, fato que não ocorria até meados dos anos 2000, quando a TMI no Brasil era superior à esperada de acordo com o PIB per capita. É uma lástima o retrocesso na TMI observado em 2016, depois de termos superado importantes desafios. Como observado anteriormente, o aumento em 2016 na proporção de óbitos infantis sem definição da causa básica e nos óbitos infantis por diarreia refletem a piora no acesso à assistência médica, consequências prováveis dos cortes no SUS e em programas sociais.

Abrasco – A Estratégia Saúde da Família (ESF) teve seu início em 1994, quando era denominada Programa Saúde da Família (PSF), inspirado nos princípios da Atenção Primária à Saúde (APS) formulados na Conferência de Alma Ata. Sua criação foi uma etapa importante na consolidação do SUS e está definida como central na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Muitos estudos têm avaliado os efeitos da ESF sobre a saúde da população brasileira e consistentemente mostrado efeitos positivos. Municípios com alta cobertura de ESF têm maior utilização de serviços de saúde primários e melhorias mais aceleradas nos indicadores de saúde, como: redução da mortalidade infantil (principalmente pósneonatal) e de crianças menores de cinco anos e em especial por algumas causas especificas como diarreias e infecções respiratórias; redução das hospitalizações por causas evitáveis pela atenção primária e redução da mortalidade por causas cardiovasculares e cerebrovasculares. Gostaria de acrescentar outras informações sobre estes indicativos e a nossa atual taxa de mortalidade infantil?

Celia Landmann – Além de todos esses benefícios, cito ainda a diminuição acentuada da desigualdade regional da mortalidade infantil. No Brasil, o enfoque às desigualdades em nível regional mostrou-se especialmente importante para promover ações e programas que diminuíssem o hiato socioeconômico. No final dos anos 90, o Programa de Saúde da Família foi implementado como política nacional de atenção primária, priorizando os municípios com os piores níveis socioeconômicos localizados no Norte e Nordeste, mostrando impactos importantes na redução da histórica lacuna regional nas taxas de mortalidade infantil, no declínio em hospitalizações desnecessárias, e redução significativa na taxa de mortalidade de menores de cinco anos devido a causas mal definidas e óbitos sem assistência médica.

Igualmente, o desenvolvimento de programas com forte potencial de atuação na redução da mortalidade infantil impôs a necessidade de avaliar os processos de implantação e execução das intervenções e os seus resultados sobre a saúde da população. Pactos internacionais como o alcance das metas do milênio trouxeram, por sua vez, o desafio de melhorar amplamente as condições de saúde materno-infantil, gerando o problema de construção de indicadores de saúde que pudessem avaliar o alcance das metas. Em consequência, houve o aumento da cobertura das informações de óbitos e nascidos vivos e a diminuição da proporção de óbitos sem definição da causa básica, abrindo possibilidades de traçar o perfil de mortalidade em todas as regiões do Brasil utilizando os sistemas de informações vitais do Ministério da saúde.

MORTALIDADE INFANTIL – OPINIÃO DE PAULO FRIAS

Ainda sobre mortalidade infantil, a Abrasco ouviu Paulo Germano de Frias, do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira no Grupo de estudos de Avaliação e Gestão em Saúde. Para Frias o aumento da taxa de mortalidade infantil no Brasil foi observado em 20 das 27 unidades da federação e em todas as regiões do país exceto a região sul, enquanto a elevação da taxa pós-neonatal atingiu 24 estados e todas as regiões, não poupando nem a região sul.

A hipótese levantada pelo Ministério da Saúde é plausível e os achados são um alerta em particular por retratarem o ano de 2016 período em que a crise econômica era evidente, mas ainda sem os efeitos explícitos da emenda constitucional 95, que instituiu restrições orçamentárias importantes. A partir do 2o semestre de 2015, quando foi evidenciada a emergência da Infecção pelo Zika vírus o número de gestações e nascimentos reduziram, mas as taxas de mortalidade neonatal e pós-neonatal aumentaram em especial a última.

A situação requer monitoramento adequado dos nascimentos e mortes infantis e ampliação dos investimentos em políticas sociais que comprovadamente impactem nas condições de vida da população em particular às relacionadas à saúde reprodutiva e à assistência às crianças. Para que o monitoramento da situação seja efetivo é necessário manter os investimentos nos sistemas de informações sobre eventos vitais, em especial nos lugares onde a assistência à saúde é mais precária e em consequência a chance de subenumeração dos óbitos é maior. O Brasil tem uma tradição de pesquisas de busca ativa de óbitos infantis em áreas com precariedade de dados vitais desde os anos 2000, o que possibilitou a melhoria das informações vitais e a detecção de situações como a apontada pelo Ministério da Saúde.

Abrasco –  No período 2000-2010, a Região Nordeste apresentou a maior taxa de redução da mortalidade infantil, de 5,9% ao ano, seguida da Norte (4,2%), o que contribuiu para a diminuição da desigualdade regional. A maior queda nas regiões com pior nível socioeconômico reflete a ampliação da atenção primária em saúde?

Paulo Frias  – A rede de causalidade das mortes infantis é extensa e complexa envolvendo questões relacionadas a renda, acesso a água e esgotamento sanitário, educação, em especial das mulheres e cuidadores, além de serviços de saúde disponíveis em tempo oportuno. As conquistas sociais nos anos 2000 expressa pela transferência de renda por meio do Bolsa família, investimento no acesso a água, em especial em regiões historicamente castigadas pela seca, a exemplo do programa de cisternas na região semiárida nordestina, a ampliação da escolaridade da população e a redução da fecundidade se somaram a ampliação da atenção primária contribuindo para reduzir a desigualdade regional.

Ao programa de Agentes Comunitários de Saúde lançado nos primeiros anos da década de 1990 agregou-se a estratégia de saúde da família, que em 2010 contava com 238.000 agentes comunitários de saúde, 31.000 equipes de saúde da família e 19.000 equipes de saúde bucal distribuídos em todo território nacional. Este contingente de profissionais atuando junto às comunidades mais necessitadas do país, exatamente aquelas que mais poderiam se beneficiar das ações de saúde, pela situação de vulnerabilidade, foram decisivas para a redução expressiva nas desigualdades no perfil de adoecimento e mortes infantis. O enfrentamento da pobreza a partir de políticas públicas compensatórias, mesmo que não tenham mudado substancialmente a estrutura social, foram decisivas na redução das desigualdades regionais.

Abrasco – Qual o papel, na sua opinião, da universalização das imunizações na redução da mortalidade infantil?

Paulo Frias  – O Programa Nacional de Imunização (PNI) associado a vigilância epidemiológica contribuíram de forma expressiva na redução da mortalidade e morbidade das doenças imunopreveníveis, nos seus mais de 40 anos de existência ininterruptos. O PNI é um dos pilares da saúde pública brasileira, reconhecido internacionalmente, pela sua abrangência, estrutura organizacional complexa que envolve da produção e aquisição de imunobiológicos a sua distribuição para alcançar públicos diversos de recém-nascidos a idosos em todos os cantos de um país continental. Operacionalizado na extensa rede de atenção básica do país, disponibiliza vacinas do calendário básico enquanto que os Centros de Referência de Imunobilógicos Especiais (CRIE) asseguram outros indicados para situações específicas.
A erradicação da varíola, a interrupção da transmissão da poliomielite são exemplos incontestáveis do êxito do programa. Mesmo o sarampo, que hoje volta a ameaçar a população brasileira, foi recentemente considerado eliminado no país. Para a ampliação do êxito alcançado pelo programa é imprescindível garantir a sustentabilidade e o aperfeiçoamento da estrutura que dá suporte, em especial, a atenção básica.

Abrasco – Permanece o desafio de reduzir a taxa de mortalidade neonatal, sobretudo o componente precoce, o que mostra a importância dos fatores ligados à atenção à gestação, ao parto e ao nascimento?

Paulo Frias  – A elevada magnitude da mortalidade neonatal no Brasil está aquém do potencial do país refletindo históricas desigualdades regionais e socioeconômicas, mas sobretudo condições desfavoráveis da atenção à saúde da gestante e do recém-nascido. O principal componente da mortalidade infantil é o neonatal precoce com grande parte acontecendo nas primeiras 24 horas indicando uma relação estreita com a atenção a gestação, ao parto e ao nascimento.

As principais causas de óbitos são a prematuridade, a malformação congênita, a asfixia intra-parto, as infecções perinatais e as relacionadas aos fatores maternos, com uma proporção considerável de mortes preveníveis por ações dos serviços de saúde. Mais de 98% dos partos no Brasil ocorrem em hospitais e mais de 80% assistidos por médicos e mesmo assim os resultados são insatisfatórios quando comparados a outros países. Estudos relatam intensa medicalização do parto e nascimento com manutenção de taxas elevadas de morbi-mortalidade materna e perinatal, possivelmente relacionadas à baixa qualidade da assistência e utilização de práticas obsoletas e iatrogênicas, que podem repercutir sobre os resultados perinatais. O excesso de cesarianas no Brasil é uma das expressões da situação, com mais de 50% dos nascimentos ocorrendo por meio de cirurgias.

Esforços direcionados à humanização e melhoria da qualidade do pré-natal, parto e nascimento têm sido desenvolvidos sem, entretanto, obter amplitude suficiente para impactar de forma mais efetiva nos indicadores de da saúde materna e neonatal. Mais recentemente a instituição do Rede Cegonha vem induzindo práticas e conduzindo a reestruturação da atenção à gestante e ao recém-nascido, com articulação entre as ações do pré-natal na rede básica e a assistência ao parto, no âmbito hospitalar.

Abrasco –  Nos anos 1990, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e a Estratégia da Saúde da Família viabilizaram a interiorização de equipes de saúde da família e a ampliação do acesso aos serviços de Atenção Básica à Saúde, contribuindo expressivamente para o aumento da cobertura da atenção à saúde reprodutiva e infantil. Pesquisas mostraram que, a cada 10% de aumento da cobertura da Estratégia Saúde da Família, havia redução em 4,6% da mortalidade infantil. Os cortes nos investimentos sociais e no Sistema Único de Saúde poderiam ser fatores para o aumento da mortalidade?

Paulo Frias  – O Sistema Único de Saúde (SUS) padece de subfinanciamento crônico para cumprir os seus princípios éticos e diretrizes. O avanço do sistema na direção da universalidade, equidade e integralidade passa necessariamente pela sua sustentabilidade. Os cortes orçamentários causados pela emenda constitucional 95 comprometem substancialmente a sustentabilidade da atenção básica, do trabalho das equipes de saúde da família e de todo sistema de saúde. Manter-se funcionando, ampliar sua abrangência e aperfeiçoar sua atuação são condições imprescindíveis para garantia mínima dos direitos sexuais e reprodutivos e assistenciais das mulheres, homens e seus filhos.
Estudo conduzido por Rasella et al (2018) publicado no Plos Medicine sobre microssimulação do impacto do corte de verbas na saúde infantil no Brasil no período de 2017 a 2030, considerando as repercussões dos cortes no Bolsa Família, que beneficia mais de 20% da população brasileira e a Estratégia de Saúde da Família, mais de 60% da população estima que seria possível evitar em torno de 19 mil mortes infantis e 124 mil hospitalizações decorrentes de doenças preveníveis, como diarreia e desnutrição se mantidos os programas no patamar atual.

Abrasco – A Estratégia Saúde da Família (ESF) teve seu início em 1994, quando era denominada Programa Saúde da Família (PSF), inspirado nos princípios da Atenção Primária à Saúde (APS) formulados na Conferência de Alma Ata. Sua criação foi uma etapa importante na consolidação do SUS e está definida como central na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Muitos estudos têm avaliado os efeitos da ESF sobre a saúde da população brasileira e consistentemente mostrado efeitos positivos. Municípios com alta cobertura de ESF têm maior utilização de serviços de saúde primários e melhorias mais aceleradas nos indicadores de saúde, como: redução da mortalidade infantil (principalmente pósneonatal) e de crianças menores de cinco anos e em especial por algumas causas especificas como diarreias e infecções respiratórias; redução das hospitalizações por causas evitáveis pela atenção primária e redução da mortalidade por causas cardiovasculares e cerebrovasculares. Gostaria de acrescentar outras informações sobre estes indicativos e a nossa atual taxa de mortalidade infantil?

Paulo Frias  – Muitos foram os avanços nas condições de vida e de saúde das mulheres e crianças brasileiras nas últimas décadas em especial após a criação do SUS, ainda que insuficientes. Para continuar avançando impõe-se o fortalecimento das políticas públicas intersetoriais que possibilitem não só a redução da morbimortalidade de crianças, mas políticas que favoreçam a redução das desigualdades regionais e entre grupos, privilegiando aquelas em situação de desvantagem e mais vulneráveis, em particular as que permanecem invisíveis, como os indígenas, quilombolas, em situação de rua, entre outras.

Mais que garantir a sobrevivência das crianças, as políticas públicas precisam viabilizar o desenvolvimento pleno de cada uma considerando as suas potencialidades e a diversidade das múltiplas infâncias brasileiras. Caminhos alvissareiros poderiam ser alcançados se o SUS fosse adequadamente financiado e a implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) lançada em 2015, fruto de uma construção coletiva de profissionais do SUS dos três âmbitos federados, entidades de classe e sociedade civil fosse efetivada em plenitude com as crianças consideradas sujeitos de direito como preconiza o estatuto da criança e do adolescente.

MORTALIDADE MATERNA 

Sobre os mais recentes números que mostram o aumento da mortalidade materna no Brasil, a Abrasco conversou com as abrasquianas Maria do Carmo Leal e Sandra Valongueiro. Leal é docente do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz. Sandra Valongueiro é médica sanitarista e demógrafa, docente do Programa de Pós-graduação em saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco.

MORTALIDADE MATERNA OPINIÃO DE MARIA DO CARMO LEAL

Maria do Carmo Leal, conhecida por colegas e alunos como Duca, coordenou a pesquisa Nascer nas Prisões, cujos dados foram utilizados na argumentação a favor do habeas corpus coletivo para que as grávidas e mulheres que têm filhos até 12 anos fiquem em prisão domiciliar. Vitória importante dos direitos humanos. Antes disso, Duca coordenou a pesquisa nacional sobre “Nascer no Brasil”, cujos resultados vêm sendo trabalhados por diversos setores, seu grupo inclusive, para fazer do parto uma experiência positiva, sob o controle das próprias mulheres. Em entrevista sobre a mortalidade materna no Brasil, Duca frisa que o desfinanciamento do SUS pode colaborar e provavelmente está colaborando para a situação que estamos vivendo agora: – “Falta de insumos, medicamentos, profissionais desestimulados com a falta de condições mínimas para trabalhar, aliado ao aumento da pobreza das classes populares, todos juntos podem contribuir para o atraso (por falta de dinheiro) na chegada à maternidade e, uma vez dentro dos serviços de saúde pode se defrontar com dificuldades ou insuficiências para dar a resposta adequada. A MM é maior em mulheres negras, as mais vulneráveis socialmente e essa é outra coisa inadmissível, que tenhamos discriminação expressa nos nossos indicadores de saúde. É triste estarmos assistindo o aumento da mortalidade materna, infantil, de queda nas coberturas de imunização e epidemias. Não podemos aceitar que depois de tantas conquistas, estejamos caminhando para trás”, alerta Duca. Confira a entrevista Abrasco com Maria do Carmo Leal.

Abrasco – Qual a situação da notificação da mortalidade materna no Brasil?

Maria do Carmo – O Brasil é um país com elevada taxa de Mortalidade Materna (MM), de 62/1000.000 nascidos vivos e que no ano de 2017 aumentou para 64/100.000 nv, aumento esse que foi maior no Norte e Nordeste, segundo o Ministério da Saúde. A redução da Mortalidade Materna foi um dos piores indicadores que o Brasil apresentou quando prestou contas às Nações Unidas, em 2015, sobre o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio. Na verdade, entre 1990 e 2015 o Brasil reduziu a MM em 43%, mas o compromisso era de redução de 2/3, ou seja, 66%. Muito embora é preciso destacar que nesse intervalo de tempo a cobertura da atenção pré-natal e da assistência ao parto hospitalar tornaram-se universais, abrangendo praticamente todas as mulheres (98 a 99%). Também ampliou paulatinamente a investigação de óbitos ocorridos em mulheres em idade fértil, buscando reduzir a subnotificação dos óbitos maternos. Ou seja, provavelmente a taxa de MM em 1990 era maior do que a que o país apresentava e a que é informada hoje está muito próxima da real taxa de MM.

Abrasco – Um país que altos números de óbito materno é um país com alta desvalorização e falta de cuidado com a mulher?

Maria do Carmo – Eu acho que podemos afirmar isso, com base na comparação do desempenho do país em anos mais recentes frente a mortalidade na infância e a outras melhorias sociais. É impressionante termos uma taxa de MM 10 vezes maior que os países europeus, com uma cobertura pré-natal tão elevada e com uma rede de serviços de atenção hospitalar tão espalhada pelo pais. Oportunidade estão sendo perdidas para identificar mulheres de risco durante o pré-natal e dar a elas um tratamento especial, como recomendado. Podemos dizer também, porque vimos isto na pesquisa Nascer no Brasil, que há ainda uma baixa qualidade na atenção ao parto para as mulheres de baixo risco, que representa a maioria, e que também morrem por causas maternas. Somando a tudo isso, precisa ocorrer uma descriminalização do aborto, causa de morte que está aumentando, pois era a quinta causa em ordem de importância e agora já é a terceira. Para baixar a Mortalidade Materna é necessário que os serviços de saúde atendam com atenção e qualidade durante a gestação, parto e puerpério e a população, de um modo geral, dê o devido valor à mulher e respeitem sua autonomia reprodutiva, eliminando o aborto inseguro.

Abrasco – Hipertensão, hemorragias, infecções e aborto: evitáveis, causas diretas, causas que se bem tratadas num pré-natal adequado e/ou com uma boa atenção no parto, as mulheres não morreriam?

Maria do Carmo – Essas são causas de morte chamadas de diretas e que têm menor expressão nos países desenvolvidos porque são evitáveis por uma boa assistência ao pré-natal e parto. Quando se identifica alguns desses problemas durante o pré-natal pode-se tratar e o risco passa a ser controlado de perto, com um acompanhamento mais cuidadoso. Mas outras causas ocorrem no momento do trabalho de parto e parto e o segredo é ter condição para resolve-las imediatamente, sem perda de tempo. Há urgência nessa atenção que demanda procedimentos mais complexos e disponibilidade de recursos de apoio como bolsas de sangue, UTI para adultos, presença de profissionais qualificados, anestesistas, cirurgiões, etc. Se a unidade não dispõe disso, a transferência se faz necessário e a identificação precoce e transporte oportuno pode salvar a vida dessa mulheres.

Abrasco – O SUS, como principal fonte de acesso a saúde de mulheres negras no Brasil, quando sob ataque: pode impactar a mortalidade materna dessas mulheres negras?

Maria do Carmo – Por tudo que já foi comentado se pode perceber que o desfinanciamento do SUS pode colaborar e provavelmente está colaborando para a situação que estamos vivendo agora. Falta de insumos, medicamentos, profissionais desestimulados com a falta de condições mínimas para trabalhar, aliado ao aumento da pobreza das classes populares, todos juntos podem contribuir para o atraso (por falta de dinheiro) na chegada à maternidade e, uma vez dentro dos serviços de saúde pode se defrontar com dificuldades ou insuficiências para dar a resposta adequada. A MM é maior em mulheres negras, as mais vulneráveis socialmente e essa é outra coisa inadmissível, que tenhamos discriminação expressa nos nossos indicadores de saúde. É triste estarmos assistindo o aumento da mortalidade materna, infantil, de queda nas coberturas de imunização e epidemias. Não podemos aceitar que depois de tantas conquistas, estejamos caminhando para trás.

MORTALIDADE MATERNA – OPINIÃO DE SANDRA VALONGUEIRO

“A desumanização, no sentido de considerar o outro como menos humano, e o desrespeito vem adoecendo e matando mulheres no Brasil” disse Sandra Valongueiro durante a entrevista. A médica especialista em Saúde Materna da Universidade Federal de Pernambuco, também chamou atenção para o Caso Alyne Pimentel morta em 2002. Negra, 28 anos, moradora de Belfort Roxo, na Baixa Fluminense (RJ), casada, mãe de uma menina de 5 anos e grávida de 27 semanas, Alyne procurou uma casa de saúde particular com vômitos e fortes dores abdominais. Foram-lhe prescritos remédios para náuseas, vitamina B12 e infecção vaginal. Dois dias depois piorou, voltou à casa de saúde, fez ultra-sonografia. O feto estava morto. Os médicos induziram o parto. Mas só fizeram a cirurgia para retirar a placenta 14 horas depois. Alyne teve hemorragia, vomitou sangue, a pressão arterial caiu. Decidiram transferi-la para o Hospital Geral de Nova Iguaçu. Aí, entrou em coma e faleceu. O caso foi o primeiro denunciado ao Comitê para a Eliminação de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, da Organização das Nações Unidas.

Abrasco – A desumanização do atendimento e o desrespeito matam mulheres hoje no Brasil?

Sandra – A desumanização, no sentido de considerar o outro como menos humano, e o desrespeito vem adoecendo e matando mulheres no Brasil, resultado das múltiplas faces da violência a que estão submetidas. Estruturadas nas desigualdades de gênero, classe e raça/cor, a vida de mulheres e meninas experimentam cotidianamente violações do direito à vida, à infância, à saúde e a uma maternidade segura. Nessa perspectiva, pode-se pontuar a persistente naturalização da violência doméstica/e sexista e a violência institucional/e obstétrica, expressas na precariedade no acesso a informações sobre sexualidade e contracepção, na dificuldade de acesso, acolhimento e escuta nos serviços de saúde, no excesso de intervenções sobre seus corpos, medicalização do parto e nascimento e criminalização do aborto. Além do desconhecendo que mulheres são diferentes, têm trajetórias de vida, necessidades e desejos distintos, sejam essas periféricas, negras, indígenas ou trans.

Abrasco – A falta de protagonismo da mulher na condução do processo do seu parto é uma causa da mortalidade materna?

Sandra – O parto e o nascimento deixaram de ser uma vivência para se tornar um evento, um procedimento hospitalar com hora para iniciar e acabar. Esta mudança retirou das mulheres seu protagonismo, fazendo com que as mesmas se sintam “doentes” em potencial a serem tratadas. Protagonismo este que deveria ser exercido desde o momento de decidir ter ou não ter filhos, o que, com certeza, reduziria a alta proporção de gravidezes não pretendidas no Brasil e todas as consequências para a saúde e vidas das mulheres. Falando do lugar do Comitê Estadual de Mortalidade Materna de Pernambuco (CEMM-PE), é evidente como a fragmentação da rede de atenção obstétrica é responsável pela grande maioria das mortes maternas evitáveis. Um pré-natal é mais normativo que resolutivo, sem garantia do vínculo com as maternidades e sem compromisso com o fortalecimento das mulheres como sujeitas de sua gravidez e parto. Após distintas barreiras do acesso à assistência ao parto e aborto, mulheres se deparam com superlotação de leitos e, em geral, à “cascata de intervenções”, sem espaço de fala e com muitas delas ainda sem acompanhantes, embora seja Lei desde 2005. Situações nas quais são “empurradas” a se comportarem como pacientes e não como mulheres capazes de protagonizar seu parto, sendo às vezes a serem responsabilizadas pelos desfechos negativos. Veja este relato de uma profissional entrevistada durante uma investigação de óbito materno: “a paciente não ajudou durante o trabalho de parto, acabou indo para cesárea e complicou com hemorragia. Fizemos o possível”… Embora, nacionalmente, esforços venham sendo feitos, visita às maternidades públicas e conveniadas da Região Metropolitana do Recife realizadas pelo CEMM-PE em maio deste ano, mostraram muitas mulheres recolhidas ao seu papel de paciente e com viés de gratidão. Neste outro relato de uma jovem de 21 anos, sobre seu segundo filho: “parir na primeira maternidade que a gente procura é uma benção, tenho nada para reclamar, não!” O não protagonismo das mulheres bloqueia, inclusive, as possibilidades de, em casos de maus tratos e violência institucional elas denunciem à Ouvidoria e ou Ministério Público local. Neste contexto, o não protagonismo da mulher durante a gravidez, parto e pós-parto, poderia ser caracterizado como um determinante distal da mortalidade materna (autonomia social e/ou empoderamento).

Abrasco – A morte materna no Brasil, porém, atinge a todas as mulheres, independente de raça e classe social?

Sandra  – Os resultados de uma gravidez e parto estão relacionados com as condições de vida das mulheres e com a qualidade da assistência obstétrica que juntas influenciam as chances de sobrevivência. No Brasil, estimativas mais recentes mostram estabilidade da Razão de Mortalidade Materna (RMM) em torno de 62/100.000 nascidos vivos para 2015. São mortes evitáveis que tem classe, raça/cor e idade. Estudos revelam maior risco entre as mulheres negras, mulheres residentes em regiões menos desenvolvidas, como o Norte e o Nordeste do país (RMM no Maranhão acima de 100/100.000 nascidos vivos e Santa Catarina, 40/100.000 nascidos) e entre as mulheres acima de 35 anos , estas por estarem expostas a uma maior paridade e comorbidades. . Em Pernambuco, 77% dos óbitos maternos em 2016 foram entre mulheres negras. Ou seja, a morte materna evitável atinge de forma desigual as mulheres vulneráveis, expostas ao modelo de atenção médico-centrado, permeado por racismo institucional, e que está engatinhando em assumir as evidências científicas como estratégia de acolhimento e cuidado.

Abrasco – Atualmente no Brasil, qual a sua avaliação sobre os profissionais que preenchem as declarações dos óbitos maternos? Existe o registro correto da nomenclatura de morte materna?

Sandra  – A informação sobre morte materna depende da qualidade dos sistemas de informação (sub-registro, quando o óbito não é notificado ao SIM) e do compromisso dos médicos com o preenchimento da Declaração do Óbito (DO) (subinformação, quando o óbito é declarado com uma causa não materna). A declaração da da causa materna depende da distância entre a ocorrência do óbito e o parto ou aborto, seja esta distância no tempo ou no espaço. Por exemplo, uma mulher morre após 15 dias de internamento numa UTI, por complicação um aborto infectado, a causa básica pode erroneamente ser declarada como Pneumonia, sem qualquer referência ao aborto. Ou, uma mulher é internada em um hospital local com pré-eclampsia grave é transferida para um hospital de referência, passa por uma cesárea, faz diálise e morre logo após. A causa do óbito pode erroneamente ser declarada com Insuficiência Renal Aguda, sem menção ao parto ou doença que iniciou a sequência de complicações que levou àquele óbito. Neste sentido, a qualificação dos dados sobre morte materna é fundamental para monitorar seus níveis e propor medidas de intervenção.

No Brasil, a qualificação dessas informações, na maioria dos estados, foi por muito tempo de responsabilidade exclusiva dos Comitês de Mortalidade Materna, fossem esses, estaduais e/ou municipais. A necessidade de indicadores padronizados para monitoramento da mortalidade materna e infantil em resposta aos Objetivos do Milênio (1990-2015) impulsionou o Ministério da Saúde (MS) a qualificar informações sobre óbitos de mulheres em idade fértil e maternos, óbitos infantis e fetais e nascidos vivos (este último, o denominador desses indicadores). Por meio da Portaria MS 1.119 de 2008, estruturou-se um sistema de Vigilância de Óbitos de Mulheres em Idade Fértil e Maternos, definindo instrumentos, fluxos e prazos para que óbitos maternos sejam investigados, discutidos e incluídos no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) que tem melhorado a qualidade dessa informação. Outra estratégia que tem permitido monitoramento das informações sobre mortalidade materna em tempo real é o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna.

Segundo avaliações recentes do MS, houve incremento de 28% entre a notificação do óbito ao SIM e a classificação obtida após a investigação, porém abaixo de um padrão estabelecido de 34%. O monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) exige que essa qualificação seja mantida, considerando a diversidade regional e com foco nos estados/regiões com mais dificuldades. No entanto, é difícil avaliar quanto desse incremento está relacionado à melhoria do preenchimento correto da Declaração de Óbito pelos médicos. Esra é sem dúvida, uma boa pergunta de pesquisa… Por outro lado, muitas das atividades de investigação e discussão dos óbitos maternos que eram centradas nos Comitês de Mortalidade Materna ao passaram a ser realizadas pelos Grupos Técnicos da Vigilância do Óbito, meio que desarticularam alguns desses Comitês, colocando o desafio de redesenhar suas funções, que em minha opinião, deve ser de controle social.

Abrasco – Por ser uma morte evitável e totalmente relacionada com a condição de ser mulher, a morte em decorrência da gestação, parto ou pós-parto é, responsabilidade do Estado?

Sandra – A morte materna representa uma violação dos direitos reprodutivos e humanos das mulheres. A condição de não doença da gravidez, a possibilidade de acesso e manejo adequado de tecnologia em saúde, a possibilidade de controle da reprodução e interrupção da gravidez indesejada (embora não seja no Brasil) e a existência de conhecimento e evidências científicas disponíveis sobre atenção obstétrica, dentre outras, consolidam a condição de evitabilidade dessas mortes.

No Brasil, em 2016, 98,3% dos partos e nascimentos foram hospitalares, supostamente sob a responsabilidade dos serviços e profissionais de saúde, destes, a maioria SUS. Ou seja, as mulheres e suas famílias ao buscarem os serviços de saúde como formas mais seguros de parir, confiam no Estado como instância de garantia de direitos à saúde, à vida e à maternidade segura.

Por isso, este Estado deve ser responsabilizado pela ocorrência de morbidades graves e mortes maternas evitáveis. A cobrança dessa responsabilidade, no entanto, vem sendo feita timidamente por diversas razões, dentre essas, a não compreensão da condição de evitabilidade da morte materna, o já citado viés de gratidão, o medo de retaliação, principalmente em cidades pequenas, desconhecimento de como proceder e mesmo por descrédito nas instituições de direitos humanos no Brasil.

Existem diversos tratados, convenções e protocolos internacionais assinados pelo Brasil que podem ser acionados para que os governos sejam chamados a ofertarem acesso não discriminatório à saúde sexual e reprodutiva, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).

Mesmo nesse contexto, em novembro de 2007, Centro de Organizações Não-Governamentais pelos Direitos Reprodutivos e a Advocacia Cidadã encaminham uma denúncia de morte materna evitável ao CEDAW. Alyne Pimentel tinha 28 anos, era negra e residente no Rio de Janeiro. Em 2011, a CEDAW identificou falhas no sistema público de saúde que violaram os direitos humanos de Alyne Pimentel à vida, à saúde e ao acesso igualitário a serviços de saúde materna (Alyne v. Brazil) . A morte de Alyne foi emblemática do modelo de atenção ao parto no sistema de saúde brasileiro, que por sua vez refletem situações conflitantes de discriminação baseada em gênero e raça/cor nessa sociedade. As recomendações ao Governo brasileiro foram em nível individual (reparações adequadas à mãe de Alyne Pimentel) e gerais (“garantir o direito das mulheres à maternidade segura e acesso econômico a cuidados obstétricos de emergência, dentre outras”). Este caso demonstra as dificuldades e também a importância de usar o referencial de direitos humanos em saúde para enfrentar o descaso e violência institucional que adoece e mata, responsabilizando o Estado com o cuidado e fortalecimento das mulheres, tornando-as protagonistas e não pacientes.

Nós, que compomos o controle social do CEMM-PE, firmamos em 2003 um protocolo de atuação conjunta com Ministério Público de Pernambuco MP-PE, que embora não consiga responder às nossas necessidades, se mantém como parceiro da vigilância da morbimortalidade materna no Estado. Garantir a saúde sexual e reprodutiva e reduzir morbimortalidade é uma responsabilidade dos Governos e deve ser monitorada pela sociedade civil.

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