*Lígia Bahia
Depois do destaque conferido ao NHS (National Health System) na abertura dos Jogos Olímpicos em Londres, ficou impossível sustentar que a saúde é igual em qualquer parte do mundo.
Para brasileiros receptivos e de mente aberta, a exibição da importância civilizatória de um sistema de saúde inteiramente baseado no financiamento e prestação de serviços públicos abalou convicções e suscitou imensa curiosidade. Os menos familiarizados com o tema, mas acostumados a atribuir valores positivos ao sistema privado e negativos ao público, assistiram a uma monumental demonstração de que a inversão desses sinais altera o produto. Mas a duradoura e abrangente política de saúde inglesa não comoveu nossos conterrâneos ciosos de suas reputações moderadas.
A democratização da informação atrapalhou o ordenamento das ideias, mas não os demoveu. Com o vencimento do prazo de validade do atestado de isomorfia dos sistemas de saúde, mediante o uso de crônicas pessoais de atendimento no exterior, houve apenas mudança no jeito de expressar as analogias entre o SUS e o NHS. Substituiu-se o pareamento de problemas similares, relativos aos sistemas públicos, tais como filas e a qualidade dos serviços, pela impossibilidade de correspondência. O reconhecimento das diferenças sintetizado, na Inglaterra, por um dos comentaristas das emissoras brasileiras – "Esse é o SUS deles, só que aqui dá certo" – recorda a inviabilidade das políticas universais em um país injusto, populoso e continental.
As cenas do NHS, construído em meio aos escombros da II Guerra Mundial, um cenário completamente diferente da suposta bonança que teria permitido a passagem da barbárie à solidariedade, vistas sob o filtro da máxima alteridade não disseram nada para os desapaixonados e razoáveis brasileiros.
O que passou pela cabeça das autoridades governamentais lá presentes não veio a público. Apesar de o SUS, tal como aprovado pela Constituição de 1988, ser inspirado no NHS, possivelmente o envolvimento com a responsabilidade de sediar as próximas Olimpíadas não permitiu que a lembrança das escolas de samba se esticasse à saúde.
Em solo pátrio, os problemas de saúde não saem da agenda pública. A resposta à insatisfação dos brasileiros com seu sistema de saúde é a reiteração do moderado compromisso da presidente da República de "completar o SUS". A meia frase é consentânea com as recomendações para a adoção de sistemas universais em todos os países e tem o mérito de se opor ao ceticismo e ao imobilismo. Contudo, a declaração de compromisso intransigente não é a solução para o SUS. Sem estabelecer os fundamentos do compromisso, as poses políticas moderadas desaceleram todas as arrancadas rumo ao SUS completo.
A obsessão do momento é preencher lacunas do SUS com médicos – principal problema de saúde apontado por pesquisas de opinião. A intenção é boa e avança por sobre as atrasadas promessas de compra de equipamentos e construção de prédios, sem previsão de recursos para custeá-los. No entanto, colorir espaços em branco em jogos de passatempo não é similar à tarefa de resolver lacunas de profissionais de saúde em vazios sanitários. A sequência mais adequada para completar o SUS é iniciar pela identificação das diferenças entre imagens semelhantes.
Comparando-se o SUS com o NHS verifica-se imediatamente que: o governo do Reino Unido não põe seu selo em propaganda de refrigerante, protege seus habitantes do consumo de medicamentos que causam reações adversas, não se vale da troca de cargos de confiança de órgãos públicos para consolidar alianças político-partidárias e se responsabiliza por 85% dos gastos com saúde. Portanto, só com o esclarecimento de qual SUS será completado se encontrará a saída do labirinto.
O problema do SUS não se resolve apenas nos limites institucionais do Ministério da Saúde. Não dá para desconsiderar o poder de atração e concentração de recursos, inclusive médicos, consequente ao tamanho e poder político do setor privado, e os problemas de atendimento que ocorrem nesses clusters tecnológicos.
A última novidade em termos de racionamento assistencial de clientes de planos de saúde caros é o engarrafamento na saída e entrada das unidades intermediárias de hospitais. Para ir para um quarto, um médico com câncer de intestino, vinculado a um plano de saúde caro e assistido pelo melhor hospital privado-filantrópico do Rio Grande do Sul, chegou a propor pagar por fora pela internação em condições mais dignas e nem assim conseguiu vaga. Havia leitos disponíveis, mas estavam reservados para procedimentos com retornos financeiros mais elevados como cirurgias bariátricas, entre outros. Com mais brasileiros cobertos por planos de saúde, o incremento na formação de médicos não suprirá necessariamente o SUS. Consequentemente, o uso competitivo dos recursos existentes é um aspecto central do sistema de saúde brasileiro.
O SUS não é um NHS fracassado. Para dar certo depende, tal como ocorreu em todas as reformas dos sistemas universais, da revogação do atual padrão predatório de investimento e utilização dos serviços.
Em 2013, a renúncia fiscal para financiar o setor privado irá consumir 20% do total do orçamento da União para a saúde, e os senadores e seus dependentes passarão a acumular cerca de cem mil reais em três anos para custear suas despesas assistenciais.
O aumento da distância entre quem legisla, quem executa as leis e quem paga impostos é uma extremada política contra o SUS. Compromissos moderados justificam-se pela prevenção de tensões e conflitos que ponham a democracia em risco.
Como, no Brasil, o centro político tornou-se a zona de conforto para a maioria das coalizões partidárias, não é necessário demarcar posições e torná-las públicas. Assim, as restrições ao SUS são concedidas sem que ninguém precise sair do armário.
Os ingleses entenderam perfeitamente bem o valor da associação da saúde com esportes e cidadania.
O patrocínio de empresas privadas hospitalares e de planos de saúde a atletas e eventos esportivos brasileiros, bem como a gritante ostentação de suas marcas no desfile e estacionamento de ambulâncias em estádios, não são gestos imparciais, inocentes, benevolentes e muito menos sóbrios.
O médico com câncer quis pagar. Não conseguiu. Os leitos do hospital estavam reservados a procedimentos mais rentáveis
* Lígia Bahia, vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Artigo publicado no Jornal O Globo, no dia 03 de setembro de 2012. 1