Em matéria patrocinada publicada pela Folha de S.Paulo em 26/11/21, a Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), entidade que representa boa parte das empresas de planos privados de saúde, anunciou que o Brasil precisa ampliar o acesso da população a esses serviços. Essa campanha ocorre justamente no momento em que tramita na Câmara dos Deputados o PL 7.419/2006 (e mais 250 apensados) com o objetivo de alterar a Lei 9.656/1998, marco legal do setor de saúde suplementar.
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O mercado de planos de saúde acumulou vultosos lucros durante a pandemia1 e, agora, sob o argumento da necessidade de desafogar o SUS, representantes dos planos de saúde defendem reduzir a lista dos serviços e tratamentos que os clientes devem receber. A tentativa de diminuir coberturas já foi debatida e refutada em ao menos três momentos: na promulgação da Medida Provisória 2177-43, de 2001; e novamente, em 2016 e 2017, com a proposta dos chamados “planos populares” ou “acessíveis”. A Federação sustenta que a redução de coberturas é o caminho para ampliar o acesso à saúde suplementar – ainda que isso signifique seguir os caminhos dos Estados Unidos, cujo sistema de saúde é avaliado pelo Commonwealth Fund como um dos piores do mundo2. Aumentar o gasto e piorar a qualidade do serviço não é o que queremos para o Brasil.
Os sistemas de saúde globais foram colocados à prova com a pandemia de Covid-19. No Brasil, esse cenário evidenciou a imensa importância do sistema público. E mostrou também que é esse sistema que precisa ser melhorado com investimento público, aumento da qualidade e facilidade no acesso. É esse o caminho que aumentaria o acesso dos brasileiros aos serviços de saúde, e não o incentivo à concorrência do SUS com o mercado privado, que sempre operou com facilidades oncedidas pelo Estado e às custas do povo brasileiro.
Nos últimos anos, mesmo enfrentando o subfinanciamento e até mesmo desfinanciamento, o SUS demonstrou ser fundamental na definição de estratégia de testagem, vacinação e atendimento médico-hospitalar à população brasileira como um todo. Já do lado dos planos privados, as operadoras sequer montaram estratégias de testagem e acolhimento com isolamento e distanciamento para os seus consumidores3.
A afirmação da Fenasaúde de que a oferta de planos com cobertura restrita ajuda a desonerar o SUS não se verifica na prática e na evidência científica, que mostram o contrário: as empresas de planos privados têm uma relação predatória com o SUS. Mesmo com a obrigatoriedade de cobrir todas as doenças previstas pela OMS, a exclusão de coberturas ainda gera grandes desequilíbrios e desafios para a cobrança dos valores devidos pelas operadoras a título de ressarcimento ao SUS.
Além disso, a oferta de planos privados de saúde conta com renúncia fiscal por meio de dedução do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas. Com mais gastos das famílias e empresas destinados a esse mercado, maior será o montante de incentivo fiscal às operadoras e menor será a fonte para o investimento público em saúde.
Não faz sentido reformular o marco legal que regula os planos privados de saúde na direção de gerar mais lucros para as empresas e menor qualidade de serviços aos cidadãos. Apesar da Covid-19, consumidores de planos privados de saúde mantiveram seus pagamentos, em particular famílias trabalhadoras de renda média e baixa, garantindo o lucro das empresas.
E, ao contrário do que afirmam os representantes do empresariado, uma pesquisa Datafolha de 2019 aponta que a grande preocupação dos usuários é a falta de transparência no cálculo dos reajustes, nas carências e nas negativas de cobertura. A redução de coberturas proposta pela Fenasaúde vai contra as demandas dos clientes e remonta ao período anterior à regulação, marcado pela negativa sistemática de serviços por parte das operadoras, em um contexto de segmentação de coberturas e fatores restritivos severos ao acesso, inclusive pela exclusão de tratamento de determinadas doenças.
Por isso, uma eventual alteração na lei deve se dar na direção de garantir o acesso aos serviços contratados, seja por meio da manutenção das coberturas assistenciais, seja pela limitação de copagamentos (como franquia e coparticipação), regulação de reajustes e mecanismos que mitiguem a expulsão de idosos que contribuíram com pagamentos por anos e anos. Deve observar, também, a garantia da transparência e da participação social na governança regulatória, inclusive com a inclusão da participação de outras representações da sociedade civil, particularmente representantes de usuários, no Conselho de Saúde Suplementar, a fim de que sua atuação tenha mais consonância com a da própria ANS, com a Câmara de Saúde Suplementar e com o Conselho Nacional de Saúde.
Sendo assim, as entidades que assinam este manifesto pedem aos membros da Comissão Especial de Planos de Saúde da Câmara dos Deputados que atentem para a importância do debate e se recusem a aprovar qualquer proposta que diminua a cobertura ou retroceda na regulação dos planos privados de saúde. A saúde é um bem de relevância pública e o debate sobre seu marco regulatório deve ter como norte a defesa do interesse público.
São Paulo, 1º de dezembro de 2021.
Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Abres – Associação Brasileira de Economia da Saúde
Assetans – Associação dos Servidores e Demais Trabalhadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar
Cebes – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
1 – Em fevereiro de 2021, a Revista Forbes anunciou o nome das pessoas que haviam ascendido à categoria dos bilionários no ano anterior: lá estavam, justamente, empresários dos planos privados de saúde, donos de hospitais e laboratórios.
2 – O mercado de planos privados de saúde no Brasil é o segundo maior do mundo, ficando atrás apenas do norte-americano. Ao mesmo tempo em que os EUA apresentam o maior gasto com saúde em relação ao PIB, têm piores indicadores de acesso a médicos, qualidade de atendimento, eficiência administrativa, equidade, além de indicadores negativos, como de mortalidade infantil e expectativa de vida ao nascer, que evidenciam seus problemas.
3 – Os poucos exames de testagem que grandes operadoras de planos privados de saúde aceitaram pagar ficaram restritos a situações tão específicas que foram insuficientes para a função de detecção e controle da pandemia.