O jornal paranaense A Gazeta do Povo, publicou nesta quinta-feira 5 de junho, artigo do sociólogo Felipe Dittrich Ferreira, intitulado Elementos indispensáveis para uma política efetiva de saúde preventiva, onde a Associação Brasileira de Saúde Coletiva é citada. Confira o artigo na íntegra:
Passamos por uma grave crise no campo da saúde pública: há forte demanda por mais hospitais, por remédios mais acessíveis, assim como por médicos em maior quantidade, principalmente em regiões afastadas dos grandes centros. Não apenas o sistema público de saúde é atingido por essa crise. Também os planos privados já não funcionam a contento: mensalidades caras e cláusulas abusivas tornam difícil, mesmo para a classe média, arcar com gastos relacionados à saúde. Soluções para a crise têm sido propostas: aumentar a participação da União no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), retirar impostos de medicamentos, investir na indústria de medicamentos genéricos, atrair profissionais da saúde para o setor público mediante a criação de uma carreira federal, ampliar vagas em cursos de Medicina e Enfermagem, regular os planos de saúde com maior rigor, entre outras medidas. São ideias boas que devem ser tiradas do papel com urgência.
Ao mesmo tempo, precisamos dar maior atenção à origem das doenças. Um grande esforço tem sido feito no Brasil, nesse sentido, com relação às crianças: nos últimos 20 anos, em função de medidas preventivas relacionadas à higiene e à nutrição, houve forte redução da mortalidade infantil. Também são dignas de nota iniciativas contrárias ao tabagismo. Segundo estimativas, o número de fumantes teria caído 28% nos últimos 8 anos. Ainda assim, o cigarro permanece impondo um enorme custo à sociedade. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), 200 mil pessoas morrem por ano no Brasil por conta do tabagismo. Para compreender esse número espantoso, é preciso ter em vista que o hábito de fumar é responsável por 25% das mortes causadas por doença coronariana, 45% das mortes por infarto agudo do miocárdio na faixa etária abaixo de 65 anos, 85% das mortes causadas por bronquite crônica e enfisema pulmonar, 90% dos casos de câncer no pulmão, 25% das doenças vasculares e 30% das mortes decorrentes de outros tipos de câncer (de boca, laringe, faringe, esôfago, estômago, pâncreas, fígado, rim, bexiga, colo de útero, além de leucemia). É incompreensível, diante desse quadro, que o governo federal tenha demorado mais de dois anos para regulamentar a lei antifumo nacional, que proíbe fumar em ambientes fechados de acesso público e põe fim à propaganda tabagista. Estima-se que o SUS tenha gasto, apenas no ano passado, R$ 1 bilhão com internações decorrentes do uso de cigarro. Fosse mais firme o combate ao tabagismo, menor seria o gasto com o tratamento das diversas doenças mencionadas acima.
Ao lado do cigarro, há ameaças emergentes à saúde pública: alimentos ultraprocessados, por exemplo, ricos em sódio, açúcar, gordura e aditivos sintéticos, têm contribuído significativamente para a disseminação de problemas graves, com destaque à obesidade, à diabetes e à hipertensão. Políticas públicas nesse campo ainda são tímidas. O governo federal tem negociado com a indústria de alimentos metas voluntárias para redução dos níveis de sódio, por exemplo. As metas acertadas, no entanto, estão quase aquém dos níveis já praticados pela indústria, como notaram entidades de defesa do consumidor. A nutricionista Maria Laura Louzada, em recente entrevista à Gazeta do Povo, chamou atenção ao fato de que mesmo produtos com “alegações de saúde” (light, diet, premium) apresentam níveis de açúcar e gordura muito superiores aos encontrados em alimentos in natura e preparações culinárias. Alegações de saúde, portanto, confundem o consumidor. Também causam danos estratégias de marketing que levam o consumidor a equiparar produtos artificiais a naturais. Sucos de caixinha, por exemplo, além de apresentarem níveis excessivos de açúcar e de aditivos, muitas vezes não contêm o teor mínimo de polpa ou suco de fruta exigido por lei, como relevou recentemente o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Em nome da saúde pública, seria necessário submeter a indústria a padrões de qualidade nutricional mais rigorosos. Não seria absurdo cogitar-se, inclusive, completa proibição à fabricação de produtos particularmente nocivos.
Ainda no campo da alimentação, precisaríamos levar mais a sério os riscos à saúde associados ao uso de agrotóxicos. O Brasil, atualmente, utiliza 20% do agrotóxico produzido no mundo, incluindo substâncias proibidas em outros países. Estima-se que o brasileiro consuma, em média, por ano, mais de cinco litros de substâncias que podem “contaminar o leite materno, causar distúrbios hormonais, câncer de mama e de próstata, entre outros males”, como observou Marina Silva em artigo publicado em fevereiro na Folha de São Paulo. Poder-se-ia esperar do governo federal, nesse contexto, ações firmes para restringir o uso de venenos agrícolas. No entanto, tem ocorrido justamente o contrário: sob pressão de grandes produtores, o governo baixou um decreto, em 2013, regulamentando uma lei oriunda de medida provisória, que autorizou o registro temporário de agrotóxicos no país em casos de emergência fitossanitária ou zoossanitária, sem avaliação prévia das agências com responsabilidade sobre a saúde e sobre o meio ambiente (Lei 12.873/13; Dec. 8133/13). Em vão protestaram a Fundação Oswaldo Cruz, o Inca e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Agrotóxicos nunca avaliados pelos órgãos competentes no que concerne a potenciais impactos sobre a saúde e sobre o meio ambiente têm sido utilizados no Brasil de forma inteiramente irresponsável.
Ampliando o foco, seria preciso falar, ainda, sobre a importância de investimentos em saneamento básico para prevenção de doenças de veiculação hídrica. Há municípios no Brasil, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, que servem água encanada, porém, não tratada. Muitos outros não dispõem de rede coletora para esgoto. Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, feita pelo IBGE em 2008, “mesmo na Região Sudeste, onde 95,1% dos municípios possuíam coleta de esgoto, menos da metade desses (48,4%) o trataram”. Conforme ressalta o IBGE, “para se obter condições sanitárias adequadas, não basta que o esgoto seja adequadamente coletado por meio de uma rede geral. É necessário que também seja tratado, caso contrário, recursos hídricos ficarão poluídos e haverá proliferação de doenças, como a diarreia, devido à contaminação da água por coliformes fecais, causando prejuízo à saúde da população e o aumento da mortalidade infantil”. Por essa razão afirma-se que investimentos em saneamento básico tendem a gerar significativa economia em gastos com saúde. Para avançar num setor, portanto, é preciso avançar no outro. Não existe saúde sem saneamento.
É necessário falar, ainda, sobre o extraordinário papel desempenhado por agentes comunitários de saúde e por agentes de combate às endemias. Sem referência direta ao trabalho desses profissionais, é impossível compreender, por exemplo, a redução da mortalidade infantil ao longo dos últimos 20 anos. Agentes comunitários têm cumprido papel relevante no monitoramento de doentes crônicos, na atenção a portadores de necessidades especiais, na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, no planejamento reprodutivo, entre muitas outras atividades. Valorizar esses profissionais, inclusive do ponto de vista salarial, é dever de todos os governos.
Para defendermos a saúde pública, precisamos, em resumo, dar mais atenção à origem das doenças, assim como a mecanismos de saúde preventiva – dispositivos legais, campanhas educativas, construção de infraestrutura, qualificação e remuneração de profissionais, entre outros pontos. Logo perceberemos que muitas ameaças à saúde podem ser facilmente evitadas, desde que coloquemos a saúde realmente em primeiro lugar.