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Grupo de acesso – artigo de Ligia Bahia

Vilma Reis

Foto: Abrasco

Confira o artigo da professora Ligia Bahia, membro do Conselho Diretivo da Abrasco, publicado no jornal O Globo de 16 de fevereiro. O texto aborda o capital estrangeiro da saúde (veja mais aqui) e o Projeto de Emenda Constitucional do Orçamento Impositivo que alterou a metodologia de financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS, reduzindo consideravelmente o montante de recursos federais destinado à saúde pública (veja mais aqui).

Saúde é indissociável da precaução, em termos individuais e coletivos. O raciocínio clínico baseia-se na presunção de diagnósticos alternativos e conhecimento sobre opções terapêuticas adequadas às singularidades dos pacientes. Estudos e intervenções populacionais devem explicitar limitações quanto ao alcance de resultados e recomendações. Profissionais de saúde prepotentes costumam cometer erros graves. A arrogância é contraindicada em todas as ações de saúde. Quando manifesta por médicos, enfermeiros, psicólogos, que não ouvem com toda atenção as queixas, expectativas dos pacientes e sugestões de seus colegas de trabalho, pode causar erros fatais ou sequelas. Mesmo na ficção a presunção tem limites. House, o médico personagem de Hugh Laurie, é irascível e cético. Seus brilhantes diagnósticos são dialogados com uma equipe de médicos e estudantes. Técnicos e políticos que evitam controvérsias em torno de propostas sobre o sistema de saúde tendem a se equivocar sobre decisões sobre as relações entre o patrimônio comum, os impostos pagos pela população e os padrões de acesso e utilização de serviços de saúde de qualidade.

As duas políticas de saúde postas em prática logo no início do segundo mandato de Dilma mudaram preceitos constitucionais do SUS sem debate. A primeira permite a participação de empresas e capital estrangeiro na saúde, até em organizações filantrópicas, sem menção às tradicionais salvaguardas das normas de internacionalização de atividades. A segunda enxerta na Constituição que criou o SUS uma regra de fixação de percentuais de recursos federais que o deixará à míngua. A sinergia entre essas alterações legais intensificará o racionamento do acesso ao SUS e exigirá do governo o desempenho de tarefas de avalista das transações, destituídas de objetivos sanitários, entre empresários nacionais e fundos internacionais. Sequer foram lembradas restrições à formação de oligopólios e monopólios, incongruências entre a natureza não lucrativa de instituições filantrópica e exigências de direcionamento de investimentos em áreas geográficas sem equipamentos assistenciais ou populações mais vulneráveis.

Mais uma vez perdeu-se a oportunidade de confrontar diferentes perspectivas sobre as respostas que o Brasil dará aos problemas de saúde e envelhecimento. Os sanitaristas, que contribuíram decisivamente para que o país tivesse uma política de saúde fundamentada em sólidas bases técnicas e na democratização da atenção à saúde, foram excluídos do processo de mudanças na Constituição. É claro que a legislação deve ser atualizada, as normas sobre a saúde não são peças de museu. Marcos públicos para estabelecer regras para a convivência entre doentes, não doentes, crianças, jovens e velhos com os meios para assegurar direitos sociais são dinâmicos. Especialistas em saúde pública não são melhores do que ninguém, devem ser ouvidos porque existe investimento público para formar profissionais capacitados para analisar e intervir para melhorar a situação de saúde. Deixá-los de fora de redefinições sobre políticas de saúde é um forte indicador de inversão da lógica de ampliação do acesso da população pela da ocupação de cargos.

Na saúde, desde os anos 1980, postos estratégicos, vinculados à execução de atividades exigentes de experiência na condução de políticas de saúde específicas, foram preenchidos por pessoas reconhecidas por excelência profissional. Recentemente, cargos de direção do Ministério da Saúde entraram na barganha geral da distribuição aos partidos aliados. Além disso, a destinação dos cargos passou a responder não somente a necessidades de afirmação da tendência partidária que no momento pretende hegemonizar a saúde, mas também imposições para impedir fagocitar quadros de outras correntes. O afrouxamento dos critérios de compromisso com os direitos à saúde e técnico-científicos para a escolha de dirigentes e a crescente e cumulativa demanda por cargos pressiona os órgãos públicos a contratar consultores. Parte dos consultores contratados ad hoc tem como missão suprir deficiências técnicas e científicas dos ocupantes dos cargos de confiança e outra parcela, conformada por militantes técnicos, constitui uma espécie de grupo de acesso a cargos. O fenômeno não é novo. Contudo, na primeira versão, os consultores eram considerados instrumentos de uma política explicitamente orientada pela convicção sobre o gigantismo do Estado. Na atual, é o contrário, os contratados ad hoc integram uma força-tarefa favorável à intervenção estatal.

Diferentemente do caso das escolas de samba, não existe rebaixamento. Gestores tornam-se consultores e vice-versa, e participam conjuntamente dos movimentos de apoio a candidaturas proporcionais e majoritárias, bem como das estratégias de uso de cargos para alavancar carreiras políticas. A prioridade de determinados gestores-consultores, entre os quais especialistas em saúde pública, é ascender a cargos mais altos nas próximas eleições. Sanitaristas clássicos são críticos, reconhecem a existência de interesses contraditórios em relação à saúde e buscam expandir as políticas públicas, não havendo sido poucos os que mobilizaram apoio social ou pediram demissão por discordarem de medidas anti-SUS. Os neosanitaristas são pragmáticos e se caracterizam por apresentar explicações minimalistas sobre políticas privatizantes e superlativas a respeito do presente do SUS e de seus próprios feitos. O Ministro da Saúde é um sanitarista. No seu currículo de sanitarista clássico estão registradas a ampliação efetiva da oferta de serviços públicos nas cidades em que atuou como gestor, e duras críticas a seu antecessor, colega de partido, por não resistir às posições fundamentalistas sobre a saúde de integrantes de bancadas religiosas. Poucos dias atrás, porém, demonstrou desapreço pela sua história ao afirmar que as entidades de saúde pública que manifestaram discordâncias com políticas de seu mandato, e reivindicaram concursos e carreiras públicas e diminuição do número de cargos de confiança e profissionalização da gestão, “não têm capacidade analítica”.

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