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“Hoje, no Brasil, só defende o hospital psiquiátrico quem faz gordo negócio com ele”

O cenário da Saúde Mental está alarmante. Essa é a opinião de Rosana Onocko-Campos, professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp); onde coordena a comissão de pós-graduação; o programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental e Coletiva e o grupo de pesquisa Saúde Coletiva e saúde mental: Interfaces. Rosana também é membro da diretoria da Abrasco e editora associada da área de Saúde Mental da Revista Ciência & Saúde Coletiva.

Os problemas, para a pesquisadora, juntam a precarização como um todo do Sistema Único de Saúde (SUS) com as questões inerentes para à Saúde Mental: a não implementação correta da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); a resistência da oferta de leitos nos hospitais gerais e o abandono da reformulação do ensino de psiquiatria. O contraoponto positivo está na mudança do caráter das residências: “O único sopro de ar fresco parecem ser as residências multiprofissionais, recentemente expandidas”.

Para ela, somente com o abandono do modelo dos manicômios – ainda em vigência em diversos locais e em instituições públicas e privadas – e com a oferta de reais opções de atenção, em destaque para o tratamento comunitário, pode oferecer o alento tão desejado e necessário aos portadores de transtornos mentais.  Confira a entrevista.

Abrasco: Já se vão quase 30 anos do encontro de Bauru, que marcou o cenário da saúde mental no Brasil. Como você avalia a compreensão da sociedade a respeito do fim do modelo de internação?

Rosana Onocko-Campos: O Brasil vive um momento conservador, cujas causas não caberia aqui tentar analisar sociologicamente, mas momentos políticos são momentos, valores éticos tem uma permanência maior. Milhares de usuários têm dado seu depoimento sobre a desumanidade dos manicômios, a falta de respeito aos direitos pessoais e a coerção ao tratamento imposto e não negociado.

Internacionalmente, há fartas evidencias que apoiam o modelo comunitário de tratamento, já ninguém sustenta um modelo centrado na internação: ele é indesejável do ponto de vista dos direitos, mas também do reestabelecimento (recovery). Além do que, é ineficiente do ponto de vista do seu financiamento e da viabilidade do sistema de saúde como um todo.

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Abrasco: Os opositores insistem em bater na tecla da redução de leitos para a Saúde Mental, ignorando o papel dos Centros de Apoio Psicossocial (CAPS). Como mostrar à sociedade a necessidade de inserir as pessoas que necessitam da assistência fora do modelo do manicômio?

Rosana Onocko-Campos: A eliminação do manicômio não deveria ser sinônimo de eliminação de leitos, somente da eliminação de leitos em hospitais psiquiátricos monovalentes, que a rigor nem mereceriam ser chamados de hospitais, pois não possuem nenhuma das tecnologias que justificariam uma assistência hospitalar (exames laboratoriais, monitoramento clínico estreito, etc.)

Devemos reconhecer que o número de CAPS III – com leitos – persiste insuficiente no país, e também há falta de leitos em hospitais gerais, que poderiam saldar essa carência. Mas isso só deveria nos fazer reclamar das autoridades maiores esforços e estímulos para a abertura de novos serviços, assim como capacitação para o correto funcionamento dos mesmos, e não a volta do modelo manicomial. Hoje, no Brasil, só defende o hospital psiquiátrico quem faz gordo negócio com ele. As pessoas reclamam para ter acesso, é isso é legítimo, pois sabemos que ainda há muita a realizar.

Temos resultados de pesquisas que mostram que onde o número de CAPS III é adequado as pessoas e suas famílias acham a rede de Saúde mental continente, e preferem o cuidado integral à crise no CAPS do que no Hospital. É uma pena o Ministério da Saúde do Brasil ter desistido deles.

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Abrasco: O bom funcionamento dos CAPS se dá dentro de um projeto de SUS, que sabemos ser vilipendiado por quem deveria cuidá-lo como tarefa constitucional. Como você avalia o atual momento dos CAPS?

Rosana Onocko-Campos: Tivemos um movimento de expansão importante entre 2003 e 2010. Houve importante inversão do financiamento: passou a se gastar mais dinheiro com os serviços comunitários do que com os hospitalares na Saúde Mental.  Mas o momento atual é preocupante.

Equipes fragilizadas, alta rotatividade de pessoal (pela crescente precarização do trabalho em saúde que atinge o SUS como um todo), interrupção de subsídios a dispositivos importantes para a sustentação clínica como a supervisão clínico-institucional, falta de educação permanente, tudo atenta contra a sustentação de uma proposta que é centrada no trabalho intensivo, altamente qualificado e integrado de equipes multiprofissionais.

A desistência de reformar a formação de psiquiatras também atenta contra a sustentação da proposta. O único sopro de ar fresco parecem ser as residências multiprofissionais, recentemente expandidas.

Abrasco: Por que continuar lutando pelo e festejando o 18 de maio?

Rosana Onocko-Campos: Porque ele marca um momento de virada no posicionamento clínico, ético e político dos interessados na saúde mental. Fundamentalmente usuários, trabalhadores e familiares.

Os desafios continuam imensos: precisamos melhorar o acesso ao tratamento, a qualidade do acompanhamento e manter viva a esperança de que seremos capazes de garantir um tratamento que propicie a retomada de uma vida com sentido (o que os usuários anglo-saxões chamaram de recovery) que, necessariamente, será diferente para cada um. Precisamos combater o estigma.

No Brasil ainda temos que resolver a persistência de uma desigualdade social extrema, de um usufruto restrito de direitos, de uma tentativa de prescrever a vida que os pobres devem ter. Isso é claro na questão das drogas: Pro que o consumo do crack pelos pobres tem de ser combatido, mas nossos políticos podem carregar cocaína em seus helicópteros sem consequências? Mas estou convicta de que a luta pela Reforma Psiquiátrica se inscreve nos grandes movimentos republicanos do Brasil do século XX que ainda desejamos sustentar no século XXI.

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