RIO | O GLOBO | A carteirinha do plano de saúde não é garantia de atendimento nos hospitais da rede privada. De 2005 a 2010, aumentou em 103.524 as internações de pacientes de operadoras privadas nos leitos públicos do Sistema Único de Saúde (SUS). Foram 276.850 internações em 2010 (último dado disponível), alta de 59,7% frente a 2005. O dobro do crescimento do número de clientes de planos de saúde, que foi de 27,9% no mesmo período.
Os problemas que levam os pacientes ao SUS vão do mais simples ao mais complexo, de parto a câncer. Demora no atendimento, falta de vagas, recusa de cobertura são motivos que empurram os pacientes para rede pública. De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável pela cobrança dessa despesa às operadoras, o custo dessas internações somou mais de meio bilhão de reais em 2010: R$ 537 milhões.
No atendimento a gravidez, parto e pós-parto, o número de internações cresce ainda mais: de 34.324 mil em 2005 para 57.435 em 2010, alta de 67,3%. Foi no Hospital Geral de Bonsucesso que nasceu Rayane, hoje com 2 anos. A mãe, Flávia Gomes Albuquerque, cliente da Salutar Saúde, teve uma gravidez de risco e o parto foi antecipado. Rayane nasceu com 1,7 quilo e ficou 27 dias na UTI neonatal. A cobertura negada feriu duas obrigações da operadora. Houve promessa de carência zero quando Flávia saiu de um plano coletivo para individual e negação de atendimento por ser urgência. Ela ficou 14 dias internada no Hospital Geral de Bonsucesso:
— Tive envelhecimento da placenta, por isso precisava de ultrassonografias constantes, que começaram a ser negadas pelo plano.
Flávia buscou reparação na Justiça. No Juizado Especial Cível, conseguiu indenização de R$ 20 mil, mas a operadora recorreu. Segundo a Salutar Saúde, a empresa não negou atendimento. Alega que “não há registro de pedido de internação da beneficiária, de forma que por parte da Salutar não houve negativa para a internação.” A empresa reconhece a promessa de carência zero e afirma, por meio de nota, que todos os exames relativos à gravidez foram cobertos. A empresa está recorrendo.
João Vitor, de 10 anos, tem problema de garganta crônico. A mãe, a tradutora Wandrianne Dias, cansou da demora no atendimento da clínica no seu bairro, na Ilha do Governador. Geralmente tinha que esperar por mais de três horas. Resolveu levar o filho para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) perto de casa:
— Pediatra de plano some no fim de semana e na clínica mais próxima daqui, demora-se duas, três horas para ser atendido. Fui para a UPA.
O plano de Wandrianne é empresarial da Bradesco Saúde. Segundo a operadora, não há reclamação registrada desse problema. A empresa informa, por meio de nota, que, se a reclamação “tivesse ocorrido, a Bradesco Saúde prontamente teria buscado alternativa para a segurada”. Diz ainda que tem o menor índice de uso da rede do SUS e pede que os clientes informem sobre demora no atendimento para redimensionar a rede.
A defensora pública Alessandra Bentes diz que há carência no atendimento pediátrico no Rio:
— Não tem leito, não há vagas, de Copacabana a Santa Cruz. Estamos preocupados com isso, principalmente numa época de frio,quando os atendimentos a crianças aumentam.
‘Um exército de tarados pelo SUS’?
Segundo Bruno Sobral, diretor de Desenvolvimento Setorial da ANS, dois motivos explicam a alta no número de internações no SUS: o aumento de clientes de planos e mais eficiência na identificação desses usuários.
— Há também problemas de abrangência geográfica do plano. Muitas vezes, há acompanhamento de pré-natal público bem perto da residência e a paciente opta pelo SUS. A norma 259 (que regula o tempo máximo de atendimento) é um movimento no sentido de melhorar o acesso. As operadoras são severamente punidas se não cumprirem, inclusive parando de comercializar — afirma.
A doutora em saúde pública Ligia Bahia, professora da UFRJ, diz que o SUS tem funcionado como um resseguro para as operadoras:
— Eles (as operadoras) alegam que os clientes preferem o SUS. Há, então, um exército de tarados pelo SUS. O preço médio do plano é de R$ 154 mensais. Por ser uma média, é muito preocupante e mostra a qualidade dos planos. Em 2008, suplemento da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) mostrou que 60% dos planos são de quartos coletivos. O que mostra que os planos não são essa maravilha toda.
Complicações na gravidez levaram a pedagoga Adriana Valéria Ferreira do Nascimento a abortar no terceiro mês de gravidez. Com sangramento, foi ao hospital Nossa Senhora do Carmo, em Campo Grande, mas teve a internação negada.
— Até o médico ficou surpreso de não terem autorizado — contou a pedagoga, que seguiu então para o Hospital Estadual Rocha Faria, também em Campo Grande.
Ela entrou na Justiça e já ganhou em duas instâncias, mas a Assim recorreu novamente. Procurada, a operadora informou que “não comenta processos em andamento”.
— Quem iria a um hospital, faria um exame emergencial e, mesmo tendo plano de saúde, escolheria ir para um hospital público? — pergunta Adriana.
Joana Cruz, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diz que os planos de saúde ocupam o primeiro lugar nas reclamações há 11 anos seguidos. Segundo Joana, as empresas alegam que os clientes costumam recorrer aos serviços de referência do SUS, como no tratamento de câncer, mas entre os dez principais motivos de recusa de cobertura estão consultas e exames de sangue.
— Desde 2009, esse ranking se mantém. É extremamente preocupante, por serem procedimentos muito básicos, muito baratos.