Continua aberta a temporada das cobranças das doações de empresas de planos privados de saúde nas últimas eleições. O volume de recursos repassados em 2014 foi cinco vezes maior do que em 2010. Mas os valores repassados não são medidores adequados de mudanças que favorecem os negócios de empresários da saúde. A seleção dos destinatários das doações não é um ato de troca simples. A propensão à concordância prévia com a ampliação do mercado de planos privados certamente é um critério que orienta a escolha dos beneficiários de doações. Dentro das regras legais, a rota do dinheiro pode ser traçada para reeleger declarados defensores dos interesses privados, direcionar-se aos mais influentes ou à busca de novos aliados. O apoio financeiro dos planos auxiliou na eleição da presidente da República, três governadores, três senadores, quase 30 deputados federais e 25 estaduais. O jogo tem final incerto, outros 70 candidatos apoiados não foram eleitos. Contudo, o saldo dos investimentos na base política comprometida com a privatização parece ser muito positivo.
O deputado Eduardo Cunha, do PMDB, presidente da Câmara e um dos beneficiados por doações dos planos, vem se notabilizando, entre outras atividades, por apresentar e aprovar normas que favorecem os negócios privados na saúde. A última delas, a proposta de emenda constitucional 451, obrigando todos os empregadores, de trabalhadores urbanos e rurais, a fornecerem planos privados de saúde, se refere à criação de um extenso mercado por decreto estatal. Desta vez, a proposta de alterar mais uma vez o texto sobre saúde da Constituição não veio embrulhada em medidas provisórias X-tudo, mas o feitio assertivo-autoritário, completamente desrespeitoso com os objetivos do SUS, é o mesmo das alterações antecedentes. Discordâncias sobre o SUS, em particular a respeito de sua efetivação, não são o mesmo que a imposição de doutrinas e políticas de saúde, não apresentadas aos contribuintes ou aos eleitores durante o processo eleitoral e comprovadamente fracassadas.
Nenhum candidato, especialmente os que concorreram aos cargos majoritários, disse que ia acabar ou esvaziar a saúde pública. O SUS não tem e não terá lobby, fundamenta-se no voto de cada um. Os que poderiam se apresentar para o debate sobre o mais direito para uns que para outros, como centrais sindicais, entidades médicas e de profissionais de saúde e associações de moradores, estão ocupados com outros assuntos. O ajuste fiscal, Petrobras, salários, falência de cooperativas, tabelas de remuneração, transporte, moradia e negociações coletivas incluindo planos privados, deixam pouco espaço para a saúde pública. O silêncio, na realidade as dificuldades dos trabalhadores para participar de decisões, é interpretado como consentimento. Fica valendo o imediatismo, o ou isso ou aquilo, que um plano de saúde barato, com coberturas virtuais na mão, é muito melhor do que um SUS voando. O fato de o acesso aos serviços de saúde e medicamentos ter sido ampliado, de sermos o único país de renda média que garante o direito universal à saúde ou não conta ou é visto como fenômeno natural, como se sempre tivesse sido assim. A história da privatização e estatização do seguro privado de acidentes do trabalho em função de problemas de acesso e fraudes também é propositalmente ignorada.
Governos democraticamente eleitos, mas que receberam doações de empresários da saúde, ficam acuados por financistas. Os recursos públicos destinados a atender demandas dos mais necessitados e sub-representados (noves fora as contas na Suíça) passam a ser destinados para financiar indiretamente a privatização. Os benefícios da mercantilização são difundidos por uma falsa racionalidade que, no fundo, não passa de propaganda enganosa sobre as dificuldades das instituições públicas. No Brasil, grandes empresas de planos de saúde orientaram a maior parte de suas doações para candidatos do PT. Empresários da saúde de países anglo-saxões, com setor privado importante, canalizaram recursos para partidos conservadores. Nos EUA, as seguradoras optaram, em 2012, pelo apoio aos republicanos (68% a 75% do total de recursos doados), enquanto que a maior parte dos médicos, que são importantes financiadores de campanhas, apoiou os democratas. Na Austrália, no mesmo período, Paul Ramsay, acionista majoritário e controlador da Ramsay Health Care, doou vultuosos recursos para o Partido Liberal.
Regimes fiscais e tributários desfavoráveis para as políticas desmercantilizantes associados com alianças, baseadas em compromissos de ampliar a privatização da saúde, desestabilizam a democracia. Empresas e empresários da saúde não foram eleitos, não possuem credenciais para decidir o presente e o futuro de pessoas que necessitam de cuidados, seres humanos frágeis, doentes, não são competidores, precisam atenção adequada de um Estado que arrecada e deve gastar com políticas de bem-estar social. Inúmeros escandalinhos promovidos por um empresariamento corrupto e impenitente, tais como planos de saúde dos Correios, órteses e próteses, demonstram que se lixar para o sofrimento das pessoas não é um valor aceito pela população. Na saúde, quase nada é unívoco. No entanto, não existe torcida para que o SUS dê errado. Os constrangimentos ao sistema universal de saúde não se originam na decisão da maioria dos eleitores, têm sido impostos pelos lobbies e por governantes e burocratas que passam a adotar o cálculo privado na gestão pública.
Ligia Bahia é abrasquiana e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro