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Marcelo Firpo: “Coracionem a vigilância sanitária”

Entre tantas veredas e descaminhos dos marcos regulatórios cientificistas, tecer e traçar país afora novos olhares e parcerias com os conhecimentos tradicionais e vulnerabilizados, reconhecendo suas potências e diluindo as fronteiras entre economia, política, cultura, sociedade e natureza. Este foi o recado de Marcelo Firpo na conferência “Perspectivas de Novos Caminhos Para a Regulação Sanitária”, realizada em 27 de novembro, terceiro e último dia do Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária – 8º Simbravisa.

Com formação graduada em Engenharia de Produção e em Psicologia e doutorado em Medicina Social, Firpo falou à plateia do Simpósio a partir de uma perspectiva interdisciplinar, apoiada em metodologias colaborativas e diálogos interculturais que discutam e promovam o conceito de justiça social e que estejam comprometidos com o exercício do direito à saúde, à dignidade e aos direitos territoriais nas cidades, campos, florestas e águas e atravessando campos semânticos como promoção da saúde, saúde do trabalhador, saúde e ambiente e as vigilâncias. Tal perspectiva é a base do conhecimento trabalhado pelo Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/ENSP/Fiocruz), oficializado em 2018 e cuja coordenação é encabeçada pelo pesquisador.

Ana Souto foi a mediadora da conferência, tendo apresentado o convidado destacando a importância de sua comunicação à luz da proposta metodológica do 8º Simbravisa. “A conferência de encerramento busca aqui apresentar novos caminhos para a Vigilância Sanitária, não pretendendo de forma alguma impô-los ou afirma-los como verdade única, mas sim abrir o pensamento para possíveis dentro da proposta de nosso simpósio, que abriu com os descaminhos e veredas e chega agora à outros olhares sobre o tema”.

Ao apresentar suas credenciais e seu caminho formativo, o pesquisador, lotado no Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (CESTEH/ENSP/Fiocruz), ressaltou que um dos principais objetivos que hoje orientam o seu trabalho é a busca de uma promoção emancipatória da saúde, articulando diferentes dimensões de justiça  –  social, ambiental, sanitária e cognitiva – a partir de três campos do conhecimento: a saúde coletiva, a ecologia política e as abordagens pós-coloniais, em especial as epistemologias do Sul, conceito desenvolvido pelo português Boaventura Souza Santos e irradiado a partir do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, ao qual Firpo é pesquisador associado.

“Ao falar dessas epistemologias apontamos os limites da ciência. Não como negação, mas dessa ciência como pretensão de conhecimento único, exclusivo e superior que nega, aniquila, despreza e invisibiliza outros esquemas de conhecimento” disse Firpo, reforçando que o conflito capital X trabalho continua vigente no século XXI, mas que é necessário ampliar o olhar incorporar outros movimentos, como a luta contra o racismo, a homofobia, o machismo e outras violências ontológicas.

A erupção dessa diversidade de atores é, segundo o pesquisador, parte do processo de crises que marcam a chegada do século XXI, com o descrédito das utopias liberal e socialista e a expansão das distopias como crise civilizatória. Tais distopias são alargadas com o processo neoliberal segundo a crítica de Franz Hinkelemmart, para quem compete ao capitalismo neoliberal transformar seres humanos como coisas e mercadorias, dinheiro e capital como sujeitos sociais. “Estamos vivendo experimentações de transição com o crescimento das contradições perigosas”.

Esse tempo de transição é marcado pela ampliação dos processos entrópicos e fragilização dos processos sintrópicos ou negentrópicos, como apontado por autores como Georgesku-Roegen, e alargado pelas forças do mercado e da própria esquerda quando apontam como caminho o desenvolvimentismo, consumismo e neoextravismo. Quando ambas apostam ou não questionam o agronegócio, as megaminerações, e programas de infraestruturas ampliam-se os conflitos ambientais, as disputas territoriais e, consequentemente, os movimentos por justiça ambiental.

Ao final, o pesquisador apresentou duas possíveis trilhas de superação para a vigilância sanitária dentro do atual contexto. Ao debater o papel das ações de regulação, Firpo retomou Boaventura ao afirmar que esse autor destaca a tensão regulação X emancipação também como produto da modernidade e do próprio embate entre os princípios da lucratividade, competição e eficiência do mercado com a força das comunidades e seus princípios de solidariedade, dignidade e reciprocidade. Cabe à VISA, na visão do conferencista, promover um  tipo de regulação com práticas mais ousadas de participação social; não de consumidores ou beneficiários, mas cidadãos e sujeitos com voz ativa, vinculadas a lutas sociais emancipatórias.

Outra trilha é uma real aproximação com o conhecimento tradicional fruto das práticas de raizeiras, benzedeiras, rezadeiras, dos pajés indígenas, das parteiras tradicionais, dos curadores quilombolas. Tal posicionamento exige essas outras perspectivas sobre o conhecimento, principalmente o estabelecimento de um desafio ético, teórico e metodológico: “É preciso coracionar a academia. Coracionem a vigilância sanitária; deem sentido e vida à regulação e à atuação das políticas públicas, aproximem-se dos movimentos e lutas emancipatórias do planeta. É só isso. Mas, para tal, é necessário o esforço de pensar e se colocar no lugar do outro”.

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