O Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) lançou nesta terça-feira (31) o site do Projeto Ciência na Ditadura, trabalho iniciado há cerca de um ano, realizado por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e do próprio museu. O portal reúne lista de pesquisadores, professores e alunos de pós-graduação, que tiveram suas carreiras interrompidas ou prejudicadas pelo golpe de 1964. Das treze vítimas do regime citadas na matéria, seis foram membros titulares da Academia Brasileira de Ciências.
Em 22 de abril de 1974 a professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) Ana Rosa Kucinski Silva, de 32 anos, saiu para almoçar com o marido, o físico Wilson Silva, em um restaurante perto da Praça da República, em São Paulo. Nenhum dos dois voltariam a ser vistos. Ana chegou a ser demitida de seu emprego na USP por abandono do trabalho, pois nenhuma instância do regime reconhecia a verdade: foram presos por envolvimento com a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de extrema esquerda que lutava contra a ditadura. Só em 1993 viria à luz que foram levados da capital paulista para a chamada “Casa da Morte”, um centro de tortura montado em Petrópolis. O caso de Ana e Wilson é um dos mais emblemáticos da perseguição a pesquisadores no país pela ditadura. Nesta terça-feira, nos 51 anos do golpe de 64, o portal Ciência na Ditadura é lançado para resgatar a história das vítimas e mostrar os danos causados pela ditadura à vida acadêmica nacional.
– Tudo indica que a ordem vigente do governo era para não deixar ninguém da ALN vivo. Queriam liquidar todas as lideranças dos vários grupos políticos. Não só os que pegavam em armas, mas todos, sem exceção – conta o irmão de Ana, o escritor e jornalista Bernardo Kucinski. – O desaparecimento dela, e de tantos outros pesquisadores, causou um enorme prejuízo ao Brasil. Não podemos saber o que ela deixou de produzir por causa da ditadura, mas com certeza tinha muitas possibilidades pela frente. Era ainda muito nova. Penso nos filhos que ela poderia ter e não teve, nas pesquisas que ela poderia fazer e não fez.
Para o coordenador de História da Ciência do MAST, Alfredo Tolmasquim, responsável pelo portal, o regime promoveu uma fuga de cérebros do Brasil. – A repressão atingiu a todos. Não mirava só em quem tinha liderança política dentro das universidades, mas também quem tinha liderança acadêmica – conta Tolmasquim, que fez o trabalho ao longo de um ano, em parceria com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia.
Até o momento o Ciência na Ditadura contabiliza 471 cientistas, professores e alunos de pós-graduação que tiveram suas carreiras interrompidas ou prejudicadas pelo golpe de 1964. Todos ganharam verbetes, contado qual era sua área de pesquisa e que tipo de sanções receberam do regime. – De início até se poderia imaginar que a área de ciências sociais seria a mais atingida, mas não é verdade. A Faculdade de Medicina da USP foi dizimada – diz Tolmasquim. – Tivemos todo tipo de repressão, desde aposentadoria compulsória até prisão ou assassinatos e tortura, como o caso da Ana Rosa.
Havia ainda quem fosse barrado informalmente por institutos de pesquisa ou universidades. Por conta desta “cassação branca”, esses cientistas não conseguiam mais bolsas para pesquisas, ou passavam em concursos mas não eram contratados. Pelo fato de ser informal, este tipo de repressão é difícil de identificar ainda hoje. Tolmasquim espera que com o lançamento do portal, outras pessoas venham à frente contar suas histórias. – Muita gente tem uma. O historiador Maurício de Albuquerque, que era um genial pesquisador, foi aposentado compulsoriamente. Acabou dando aula em cursinho pré-vestibular. Outro foi o Guy de Holanda, também aposentado. Este nunca se recuperou. Entrou em depressão e teve um fim de vida muito triste – exemplifica.
Muitos deixaram o país e nem todos voltaram. Dentre eles estão cientistas como o casal Victor e Ruth Nussenzweig, que fugiram após Victor se tornar alvo de um inquérito militar. Foram contratados pela Universidade de Nova York, onde continuaram as pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina para a malária. Outros deixaram a vida acadêmica para sempre, como Oscar Niemeyer e os ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Niemeyer era da Universidade de Brasília e pediu demissão em 1965 em solidariedade a colegas alvo de perseguição política. FH, professor da USP, se exilou e quando voltou se dedicou à política. As perdas só não foram maiores por conta das faculdades particulares, que acabaram abrigando muitos dos professores aposentados compulsoriamente.
Tolmasquim tem interesse pessoal pelo assunto. Em 1966, sua mãe ficou presa por dois dias no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Sem atuação política, ela era professora do Instituto de Química da UFRJ. Foi levada por ter assinado um documento que reconhecia a direção eleita do Diretório Central dos Estudantes, um papel burocrático comum, irrelevante. – Descobri há pouco tempo. Acho que ela não contava até por um pouco de constrangimento, foi presa por uma questão banal. Mas tive uma tia e um tio que foram aposentados compulsoriamente.
Um dos cientistas mais renomados do Brasil, o Acadêmico Isaias Raw foi um dos professores vítimas de perseguição na Faculdade de Medicina da USP. Sem inclinações políticas, ele mesmo assim se tornou alvo. – A ditadura abriu caminho para que outros professores perseguissem quem se destacava. Como eu tinha muitos projetos para renovar o sistema educacional, me tornei um sujeito perigoso para eles. Fizeram de tudo para evitar que eu conseguisse uma cátedra.
Em 1964, o pesquisador foi cercado por uma patrulha às 23h, quando voltava do trabalho. Ficou preso por 13 dias, acusado de atividades subversivas pela comissão interna da universidade. Apesar disso, Raw assumiu como catedrático da Faculdade de Medicina e esteve entre os primeiros a mudar-se para o Instituto de Química da USP, iniciando a reforma universitária, em 1968. No ano seguinte seria aposentado compulsoriamente e precisou sair do país. Só voltaria dez anos depois, quando se ligou ao Instituto Butantã. – Não considero um tempo perdido para mim, mas as faculdades perderam um grupo de elite. Eliminaram muitas pessoas importantes para o país – salienta Raw.
Duas delas são próximas do neurocientista e diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, o Acadêmico Roberto Lent. Seu pai, Herman Lent, e seu padrinho, Haity Moussatché, estiveram fizeram parte de um grupo de 10 cientistas cassados do Instituto Oswaldo Cruz, em 1970. – Foi trágico do ponto de vista científico, porque os grupos de pesquisa foram todos desmantelados, os alunos foram dispersados, alguns professores que não foram cassados resolveram sair também. Foi um prejuízo muito grande para o país todo. Meu pai, é claro, lamentou ter que deixar o Brasil, mas foi obrigado a seguir a vida. Conseguiu prestígio na Venezuela, trabalhou numa instituição de renome em Nova York. Continuou suas pesquisas lá fora, então quem ganhou foram os Estados Unidos e a Venezuela.
Algumas vítimas do Regime
Roberto Salmeron. Físico, Acadêmico, coordenador geral dos Institutos Centrais de Ciências e Tecnologia da Universidade de Brasília (UNB), demitiu-se em outubro de 1965 em solidariedade aos colegas demitidos e em função do clima de perseguição política na universidade. Exilou-se em Genebra, onde trabalhou no European Organization for Nuclear Research (CERN), transferindo-se em 1968 para a Escola Politécnica de Paris.
Jayme Tionmo. Físico, Acadêmico, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), transferiu-se para Brasília para assumir o cargo de coordenador do Instituto Central de Física da UNB. Demitiu-se em outubro de 1965 em solidariedade aos colegas perseguidos. Em 1969 foi aposentado compulsoriamente. Seguiu para os Estados Unidos. Retornando ao Brasil, foi convidado a ser professor da PUC-Rio. Faleceu em 2011.
Luis Hildebrando Pereira da Silva. Médico parasitologista, Acadêmico, professor da USP, foi denunciado por atividades subversivas por uma comissão da universidade e demitido em abril de 1964. Foi trabalhar no Instituto Pasteur, na França. Retornou em 1968 para a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, mas foi aposentado em 1969. Voltou para Pasteur, onde trabalhou até a anistia, quando retornou ao Brasil. Faleceu em 2014.
Otto Gottlieb. Um dos maiores bioquímicos do pais, pioneiro no estudo de substâncias produzidas por plantas brasileiras. Sofreu perseguição política, que paralisou sua carreira nos anos da ditadura. Pesquisador da Fiocruz e Acadêmico, Gottlieb faleceu em 2011.
Depoimentos
– Bernardo Kucinski, jornalista e escritor. Ele era irmão de Ana Rosa Kucinski Silva, morta pelo regime em 1974: “Ela desapareceu aos 32 anos. Na época, eu estava na Inglaterra e meu pai me deu a noticia de que ela estava desaparecida. Voltei ao Brasil imediatamente e, um mês depois de buscas e de muita angústia, já não tinha mais esperanças de encontrá-la viva. Hoje, parece até que demorou mais tempo, mas sei que em um mês já estávamos sem esperança. A Ana e o marido, Wilson Silva, que era físico, foram presos em São Paulo e levados para o Rio. Alguns dias depois, eles devem ter sido mortos. Isso nós sabemos por meio de relatos de torturadores que carregam certa verossimilhança.
A minha irmã não morreu por ser cientista, mas sim pela luta que tinha dentro da Ação Libertadora Nacional (ALN). Na época de seu desaparecimento, a Ana pesquisava uma substância chamada molibdênio. Este tinha sido, inclusive, o seu tema de doutorado, que ela tinha completado um ou dois anos antes. Ela era uma estudante muito dedicada e o Instituto de Química da USP, onde estudou e depois deu aulas, sempre foi muito rigoroso. Alguns amigos dela foram presos, uns tantos foram soltos depois. No Instituto de Física, no qual eu mesmo estudei, sei que pelo menos meia dúzia de pessoas foram presas e mortas. Muitos cientistas foram torturados ou se viram obrigados a deixar as universidades. Foram quase duas centenas que, de um dia para o outro, sumiram das salas de aula e dos laboratórios. Muitos estudantes promissores foram mortos também. Os anos de 73, 74 e 75 foram os mais tenebrosos. A maioria das desaparições se dá nesse período. Nos anos anteriores, elas eram esporádicas”.
– Roberto Lent, médico, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Filho do Acadêmico Herman Lent, cientista do Instituto Oswaldo Cruz cassado em 1970: “O meu pai, Herman Lent, foi um dos dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz que foram cassados depois do AI-5. Foi um baque muito grande porque ele se sentiu violado em seu direito de trabalhar. Teve que parar bruscamente todas as pesquisas e ficou dois anos coordenando duas revistas da Academia Brasileira de Ciências, que era o máximo que ele podia fazer. A cassação dele foi totalmente arbitrária. O meu pai era socialista, mas não era ligado a partido nenhum. O ministro da Saúde, na época, não gostava de como esses cientistas se portavam na Fiocruz, então resolveu se vingar deles. Dois anos depois, meu pai achou melhor ir para a Venezuela, onde foi contratado pela Universidade de Mérida. Depois foi para o Museu de História Natural, em Nova York, nos Estados Unidos. Ele chegou a escrever o livro “O massacre de Manguinhos”, sobre a cassação dos pesquisadores. O meu padrinho, o Acadêmico Haity Moussatché (nascido na Turquia, mas naturalizado brasileiro), que era fisiologista, também foi um dos cientistas cassados na Fiocruz. Ele e meu pai eram amigos desde a infância, então ele era muito próximo da gente. Logo, a ditadura afetou mais de uma pessoa da minha família. Meu pai e minha mãe voltaram ao Brasil no final dos anos 70 e ele foi contratado pela Universidade Santa Úrsula. Algum tempo depois, a Fiocruz foi autorizada a reintegrar em seu quadro os cientistas que haviam sido cassados, mas meu pai não quis voltar. Ele achava que tinha uma dívida de gratidão com a Santa Úrsula, e lá ficou até o fim da vida, aos 93 anos. Ele morreu em 2004″.