Antes mesmo de o mundo ser atingido pela pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu entre os dez desafios para esta década o acesso a medicamentos. A iniciativa foi baseada na constatação de que cerca de um terço da população mundial carece deste acesso e que o gasto com fármacos representa um dos maiores custos para os sistemas de saúde e também para aqueles que pagam de seus próprios bolsos.
Agravado pela pandemia causada pelo coronavírus e a Declaração de Emergência em Saúde Pública, considero que entre os principais desafios para assegurar o acesso a medicamentos no Brasil está a questão do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), seu financiamento e do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, além de sermos capazes de compatibilizar as cadeias de produção farmoquímica, farmacêutica, os medicamentos biológicos e as terapias de futuro (a medicina de precisão, terapia gênica e celular). Tais desafios ensejam como resultados a internalização da capacidade tecnológica no Brasil, mediante fortes investimentos, diretrizes a curto, médio e longo prazos estruturadas para abranger os setores público e privado. Acredito que assim será possível trabalhar de maneira harmônica no desenvolvimento e produção de medicamentos e tecnologias de saúde prioritárias para o Brasil e de acordo com nossa carga de doenças.
Dentre algumas propostas que vêm sendo geradas no âmbito global, destacamos a reunião de ministros da Saúde do G-20, a Assembleia das Nações Unidas e a Assembleia Mundial da Saúde. Com as resoluções aprovadas nesses foros, ações voluntárias de solidariedade global vêm sendo decididas e implementadas, em especial na OMS, cabendo relevância ao ACT Accelerator e ao Grupo de Acesso à Tecnologia da Covid-19 (C-TAP, na sigla em inglês), que pretendem, além de abordar as tecnologias relacionadas com a doença como bens públicos globais, promover o acesso equitativo mundial.
Entretanto, consideramos que são necessárias diretrizes e políticas nacionais claras que privilegiem a saúde, os direitos humanos e a vida. De interesse especial é a necessidade prioritária de investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação, enfrentando as políticas recessivas. A Emenda Constitucional 95/2016, que limita por 20 anos os gastos públicos, é incompatível com nossas diretrizes de acesso universal e superação das desigualdades. Temos que enfrentar e vencer o confronto eternamente presente entre saúde e comércio e a barreira que representa a propriedade intelectual, que se expressa na prática com os preços elevados e inacessíveis dos produtos novos e monopólicos. Temos que ter a ousadia de utilizar todos os espaços que a atual legislação e regulação internacional já permitem. Mas, ao mesmo tempo, temos também que ousar propor alternativas que nos permitam avançar e recuperar o papel pioneiro que o Brasil ocupou no passado nas questões relacionadas com direitos humanos e acesso universal.
O elenco de problemas já identificados — e que dificultam o acesso a medicamentos e tecnologias — se agrava com a emergência declarada pela pandemia. Encontram-se em tramitação no Congresso Nacional propostas de alterações legislativas para superar os entraves que a propriedade intelectual pode vir a ter com relação a quaisquer tecnologias que possam ser de utilização no enfrentamento da Covid-19.
Precisamos urgentemente buscar soluções, parcerias e propostas que respondam aos desafios do futuro e que consigam equilibrar oferta e demanda com uma visão de saúde pública, despida de interesses comerciais ou de mercado, a exemplo da Fiocruz, que vem honrando sua história e cumprindo seu papel na linha de frente e coesamente no enfrentamento da pandemia.
Jorge Bermudez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e foi diretor-executivo da Unitaid e membro do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos. O artigo foi originalmente publicado no jornal O Globo, em 6/7/2020.