Uma ocultação que precisa acabar, uma verdade que ainda precisa vir à tona. Passados mais de 40 anos de um dos períodos mais obscuros da história brasileira, o do Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar até o ano de 1985, a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e a Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) realizam na próxima quinta-feira, 31, o debate “Percursos da memória e da história da saúde pública em São Paulo – das fraudes do Instituto Médico Legal (IML) à (Des) Memória Pública”.
Pela primeira vez será apresentado à comunidade acadêmica da Saúde Coletiva o relatório da que destaca, entre outras apurações, a fraude de 51 laudos de óbito forjados do Instituto Médico-Legal do estado paulista.
“Foram militantes e opositores do governo militar que foram torturados até à morte nas durante as atividades da Operação Bandeirantes (OBAN) e do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e, para justificar suas mortes, tiveram seus laudos falsificados, nos quais foram atestados homicídios por conta de tiroteios simulados”, explica Carlos Botazzo, coordenador do evento e docente do Departamento de Prática de Saúde Pública da FSP/USP.
O documento foi apresentado no encerramento oficial da Comissão, em fevereiro de 2014, em sessão solene na Alesp, e incluído como anexo ao relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue em dezembro do mesmo ano.
A área da saúde sofreu diretamente com a perseguição e a manipulação impetrada pelos militares, tanto no caso da perseguição aos cientistas da Fundação Oswaldo Cruz, que entrou para a história como o “Massacre de Manguinhos”; em aposentadorias compulsórias e forçadas de professores, como no caso da professora Elza Berquó e tantos outros docentes da USP, e na morte de estudantes que ingressaram para a luta armada. Uma placa em memória aos que lutaram pelos ideais da saúde e da liberdade será instalada no jardim da Faculdade.
O evento servirá ainda para o lançamento do Núcleo de Memória e História da Saúde Pública, composto por docentes da FSP/USP, como também da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, e contará com a presença de Adriano Diogo (deputado estadual do PT em São Paulo); Elzira Vilela, (médica e à época militante do movimento estudantil); André Mota (professor da FM/USP); e Maria Cristina da Costa Marques (professora da FSP/USP), entre outros.
Paralelo histórico: No atual momento no qual a sociedade volta a discutir os limites, as virtudes e as fragilidades da democracia, Botazzo destaca ser fundamental o resgate do passado para a compreensão do presente e para as escolhas futuras do Brasil como nação. “Infelizmente, o país ainda não foi ao encontro do seu passado, não trouxe esses cadáveres e eventos à luz do dia, não colocou os arquivos das Forças Armadas para fora dos mesmos porões em que torturaram jovens e adultos”, ressaltou o professor, que imputa ao período também as nocivas práticas de delação e acusações que se tornaram prática nas universidades à época.
“Temos listas completas de pesquisadores e professores que foram apontados por colegas, que sofreram acusações. Isso aconteceu de modo cruento e não tivemos oportunidade de trabalhar a justiça de transição, como tantas outras sociedades latino-americanas e africanas fizeram. Se tivéssemos feito esse caminho da devida forma, teríamos estancado essa violência política que assistimos agora; não viveríamos a perseguição sistemática feita à população pobre, preta e periférica de nossas cidades, que tem sofrido um verdadeiro genocídio, representado pela morte de tantos amarildos”, vaticina Botazzo, relembrando o caso Amarildo Silva, morador da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, quando, em 2013, foi conduzido pela Polícia Militar do Estado do Rio para dar um depoimento para, em seguida, ser dado como desaparecido. Passados dois anos, apenas 12 dos 25 policiais envolvidos nos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual foram condenados.