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Nilcéa Freire: inspiração para todas nós! – Artigo de Estela Aquino

Nilcéa Freire assina a ata de nomeação de Estela Aquino no CNDM, em 2008 – Foto: Arquivo pessoal

Fiquei muito triste com a morte da Nilcéa Freire em 28 de dezembro de 2019.

Sua trajetória política e pessoal é de muito valor e ela nos fará muita falta. Especialmente nesse momento político em que estamos vivendo, marcado por retrocessos e perdas de direitos.

Relembrar um pouco da sua história permite compreender sua importância para as mulheres brasileiras e para a luta pela equidade de gênero no país.

Carioca, nasceu em 14 de setembro de 1952, no então Distrito Federal, e fez parte de uma geração de mulheres que, assim como eu, experimentou muitas mudanças de comportamento. Entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), um prestigiado curso médico, no qual até pouco tempo antes havia uma forte predominância masculina. Nessa mesma universidade, uma das melhores do Estado, fez Residência Médica e, em 1980, ainda muito jovem, ingressou como docente do Departamento de Patologia e Laboratório.

Sua trajetória não se limitou à atuação acadêmica e a militância política foi uma marca desde muito cedo, tendo ingressado, em 1972, no Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando este se encontrava na ilegalidade, durante o período mais duro da ditadura militar. Permaneceu no exílio no México de 1975 a 1977, só concluindo a graduação no seu retorno ao Brasil. No final da década de 1970, Nilcéa investia na sua formação, ao mesmo tempo em que nasceram seus dois filhos: Marcos e Pedro.

Já como docente da UERJ, além de atividades de pesquisa e ensino, Nilcéa participou de vários conselhos como representante de seus colegas, foi assessora da sub-reitoria de pós-graduação e pesquisa, diretora de planejamento e orçamento, vice-reitora, até vencer as eleições para o cargo de reitora. Foi a primeira mulher a ser empossada como Reitora da UERJ e mesmo de uma universidade pública no estado do Rio de Janeiro.

Durante a sua gestão como Reitora, presidiu o Conselho Estadual de Educação e implementou um projeto pioneiro de cotas para estudantes de escolas públicas e afrodescendentes na sua Universidade.

Nilcéa foi uma grande Ministra das mulheres, nomeada pelo presidente Lula, no seu primeiro governo. Permaneceu a frente da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com status de ministério, durante os dois mandatos de Lula, de 2004 a 2011.  Como Ministra, atuou em muitas frentes, tendo transversalizado a ação da SPM nos vários Ministérios. Algumas atuações mais relevantes merecem ser aqui destacadas.

Logo ao início da sua gestão como Ministra, conduziu a realização, em Brasília, da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a presença de quase duas mil delegadas, oriundas de todo o país, e mais de setecentas observadoras e convidadas. As recomendações deste evento histórico resultaram no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), que orientou inúmeras ações.

Em 2005, Nilcéa encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e às comissões de Direitos Humanos e de Seguridade Social e Família, um relatório sobre mortalidade materna e aborto, conferindo visibilidade à prática e propondo a flexibilização da legislação restritiva, que só permitia sua realização nas gestações decorrentes de estupro ou ameaçavam a vida das gestantes (posteriormente o STF passou a admiti-lo nos casos de anencefalia fetal). Em seguida, apresentou com a Jandira Fegalli um projeto de lei para legalização do aborto, o que suscitou o apoio dos movimentos feministas, mas uma forte reação de grupos conservadores e religiosos.

Um marco do período foi a aprovação, em 7 de agosto de 2006, da Lei Maria da Penha, para coibir e prevenir a violência doméstica, e a ampliação do serviço “disque-denúncia mulher” e de delegacias e varas especiais das mulheres para a sua efetiva aplicação.

Durante o tempo em que foi Ministra, o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), que havia sido criado na década de 1980 e era ligado ao Ministério da Justiça, foi incorporado à SPM e ampliado, passando a ter maioria da representação da sociedade civil. Fui empossada, em 2008, como conselheira titular do CNDM, representando a ABRASCO, e pude acompanhar de perto sua atuação, por dois mandatos.

Na ocasião em que meu nome foi indicado, eu estava atravessando uma fase de muitas demandas profissionais e familiares e pensei em recusar. Na primeira reunião do pleno, percebi a riqueza daquele fórum composto por 40 mulheres, do Acre ao Rio Grande do Sul, representativas de um largo espectro do movimento feminista (mulheres do campo, da mata e da floresta, trabalhadoras domésticas, mulheres indígenas, negras e quilombolas, empresárias, advogadas e trabalhadoras do ensino, representantes de instâncias de mulheres em confederações de trabalhadores, mulheres lésbicas, entre outras).

Enquanto foi Ministra, Nilcéa presidiu e fortaleceu essa instância de controle social, composta por dezesseis representantes do governo e vinte e quatro dos mais diferentes segmentos da sociedade civil. O CNDM reunia-se ordinariamente e foi um permanente canal de comunicação na implementação da agenda construída e atualizada, nas duas conferências de políticas para as mulheres, que ocorreram durante sua gestão.

Nilcéa também implementou várias iniciativas para alcançar mais equidade de gênero na ciência. Em 2004, uma parceria entre a SPM, o Ministério de Ciência e Tecnologia e o Ministério da Educação originou o programa Mulher e Ciência, com o objetivo de estimular a produção científica e a participação das mulheres nas ciências e nas carreiras acadêmicas. Este Programa teve muitas ações exitosas, instituindo editais para o apoio a pesquisas científicas e o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero (para estudantes de ensino médio, graduação e pós-graduação). Em 2006, foi realizado o I Encontro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisa Pensando Gênero e Ciências -, reunindo cerca de 400 núcleos acadêmicos que atuavam neste tema. Tive oportunidade de participar da primeira mesa sobre Gênero e ciências no contexto nacional, na qual apresentei os desafios da grande área de Ciências da Saúde e particularmente da Saúde Coletiva. Neste evento, a partir da discussão em grupos de trabalho, foi aprovada a recomendação de que a licença maternidade fosse concedida às bolsistas do sistema CAPES e CNPq, o que, posteriormente, foi encaminhado pela ministra, à direção dos dois órgãos. Ambos paulatinamente implementaram o direito por meio de resoluções internas, até a sua regulamentação no Parlamento sob a forma de lei.

Além de ter testemunhado, na condição de conselheira do CNDM, a longa e profícua gestão da Ministra Nilcéa Freire, tive a honra de ser sua amiga, contemporânea no movimento de residentes e no movimento docente na UERJ. Partilhei de encontros sociais onde rimos muito e seu otimismo é inesquecível. Por isso, presto minha homenagem a ela e minha solidariedade à sua família.

Salve querida Nilcéa! Sua vida será sempre uma inspiração para todas nós!

* Estela Aquino é integrante e fundadora do Grupo Temático Gênero e Saúde da Abrasco e professora titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Foi Conselheira Titular do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) entre 2008-2014.

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