Nota da ABRASCO sobre a Portaria SCTIE/MS nº 13, de 19 de abril de 2021
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) recebeu com extrema preocupação a notícia da publicação da Portaria SCTIE/MS nº 13, de 19 de abril de 2021, a qual “Torna pública a decisão de incorporar o implante subdérmico de etonogestrel, condicionada à criação de programa específico, na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”.
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Trata-se da incorporação no SUS do implante subdérmico com etonogestrel, um método contraceptivo reversível de longa duração (LARC), hormonal, com atuação de três anos para grupos específicos de mulheres “em idade fértil”. A portaria resulta de uma Consulta Pública n.01/2021 aberta à sociedade em janeiro de 2021 pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), do Ministério da Saúde, para inclusão do implante subdérmico com etonorgestrel para mulheres adultas entre 18 e 49 anos no SUS. O relatório inicial da CONITEC, disponível na ocasião da consulta pública, não recomendou tal aprovação devido ao impacto orçamentário, considerando a população ampla de mulheres entre 18 e 49 anos aptas a se candidatarem ao contraceptivo. Não obstante, no documento da empresa que subsidiou o pedido à CONITEC, há a menção aos grupos prioritários de mulheres para tal dispositivo – “populações em situação de vulnerabilidade: mulheres que vivem com HIV, usuárias de drogas, mulheres que vivem em regiões afastadas de grandes centros urbanos, comunidades carentes, imigrantes ou inseridas no sistema prisional, mulheres com deficiência intelectual” (p.41)1 .
Essa foi a segunda tentativa de solicitação à CONITEC da incorporação de métodos LARC no SUS, desta vez, feita pelo laboratório farmacêutico Schering-Plough Indústria Farmacêutica Ltda./MSD. A primeira solicitação ocorreu em 2015, feita pela FEBRASGO, para incorporação do sistema intra-uterino com levonorgestrel (SIU LNG) e do implante subdérmico com etonorgestrel para oferta a mulheres adolescentes entre 15 a 19 anos, tendo sido ressaltado também naquela ocasião um público preferencial designado como “populações especiais” ou “grupos vulneráveis” como beneficiários destas tecnologias.2 O primeiro pleito não obteve êxito, diferentemente do que ocorreu agora em 2021.
Alguns elementos são necessários para uma ampla discussão na sociedade brasileira a respeito do tema, em seus grupos organizados na sociedade civil, instâncias de controle social, universidades, serviços de saúde, etc. Uma das principais causas de gravidez não planejada é a necessidade não atendida de anticoncepção. Tanto a falta de métodos contraceptivos como a existência de poucas opções e o uso incorreto propiciam a gravidez não planejada. Não há dúvidas de que o método escolhido, a frequência e o tipo de uso ao longo do tempo podem reduzir este risco. O acesso a todos os métodos modernos disponíveis de planejamento reprodutivo faz parte da consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Todavia, esta portaria não incorpora este método contraceptivo hormonal de longa duração universalmente a todas as mulheres usuárias do SUS que assim o desejarem. A ampla oferta de diferentes métodos contraceptivos no planejamento reprodutivo do SUS é salutar e desejável, porém não foi o que ocorreu. Essa oferta é direcionada seletivamente aos chamados “grupos vulneráveis” de mulheres, “condicionada à criação de programa específico, na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”. Sob a tese de “ampliação de direitos”, o expediente trazido pela portaria representa controle reprodutivo dirigido a determinados grupos de mulheres, excluídas e estigmatizadas socialmente. Há ainda um aspecto subliminar não menos importante que nos causou bastante apreensão: a portaria não menciona, como o relatório de recomendação da CONITEC, “mulheres adultas em idade reprodutiva entre 18 e 49 anos”, mas cita “mulheres em idade fértil” o que pode redundar na extensão deste entendimento também ao público feminino adolescente, abaixo de 18 anos, bastante estigmatizado por sua gravidez nesta fase da vida.3
O planejamento reprodutivo no SUS precisa, antes de tudo, respeitar a integridade corporal, a autonomia e autodeterminação reprodutiva das mulheres, em qualquer idade e de qualquer classe social, raça/etnia. Necessitamos de consensos éticos e políticos para não reforçarmos desigualdades sociais, sob o pretexto de “ampliação de direitos”. As ações de saúde sexual e reprodutiva precisam incluir educação em sexualidade e gênero, a prevenção da violência sexual, a atenção à saúde integral das mulheres, apoio social para aquelas que necessitam. Qualquer método contraceptivo hormonal produz em nossos corpos efeitos colaterais consideráveis (sangramentos uterinos, amenorreia, dores de cabeça, ganho de peso, dentre outros) demandando acompanhamento clínico constante e cuidados em saúde às mulheres usuárias. O acesso à retirada do método não foi previsto e a portaria tem como alvo mulheres vulneráveis justamente com problemas de acesso aos serviços e informações.
A portaria fere, frontalmente, a universalização do acesso aos métodos anticonceptivos, além de reificar discriminações e violar direitos. Não podemos equacionar uma questão tão séria como a gravidez imprevista4 simplesmente implantando um dispositivo contraceptivo em determinados grupos de mulheres cuja reprodução não é socialmente desejada. Elas precisam de ampla proteção do Estado, e não de serem simplesmente impedidas de se reproduzir. Todas as mulheres devem ter direito à escolha do método contraceptivo que melhor atenda às suas necessidades, cabendo ao SUS garantir a oferta universal dos métodos disponíveis, com orientação e acompanhamento adequados.
Rio de Janeiro, 29 de abril de 2021
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO
Referências Bibliográficas:
1. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Consulta Pública n.01, 2021. Dossiê da empresa MSD. Disponível em: http://conitec.gov.br/images/Consultas/Dossie/2021/20210111_Dossie_Implanon_MSD_CP 01.pdf
2. Brandao, ER. Métodos contraceptivos reversíveis de longa duração no Sistema Único de Saúde: o debate sobre a (in)disciplina da mulher. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2019, vol.24, n.3, p.875-879.
3. Brandão, ER; Cabral, CS. Juventude, gênero e justiça reprodutiva: iniquidades em saúde no planejamento reprodutivo no Sistema Único de Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, julho 2021, no prelo.
4. Theme-Filha, M., Baldisserotto, M.L., Fraga, A.C.S.A. et al. Factors associated with unintended pregnancy in Brazil: cross-sectional results from the Birth in Brazil National Survey, 2011/2012. Reprod Health 13, 118 (2016). https://doi.org/10.1186/s12978-016-0227-8.