POSICIONAMENTO ABRASCO 

Nota de repúdio à nova caderneta da gestante

Associação Brasileira de Saúde Coletiva

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva vem a público repudiar todo processo de concepção e divulgação da nova caderneta da gestante. Em relação ao conteúdo, esta recupera e fortalece práticas comprovadamente danosas a mulheres e seus bebês. Em relação à divulgação, cujo lançamento se deu dia 04 de maio, o coordenador da Atenção Básica do Ministério da Saúde, defendeu práticas banidas pela OMS,¹ revelando desrespeito aos direitos reprodutivos, ignorância em relação às evidências científicas e demonstrando, de fato, como se constroem as violências obstétricas.

No Brasil, o SUS² tem buscado reordenar a rede de atenção ao parto e nascimento, romper com o modelo médico centrado, reduzir intervenções desnecessárias e abusivas, incorporar enfermeiras obstetras ao cuidado e apoiar a implantação de Centros de Parto Normal.³ Seu objetivo maior é reduzir morbimortalidade materna e perinatal e transformar o parto e nascimento em um evento o mais normal possível, sob a condução da pessoa que vai parir. Essa política, ainda em fortalecimento, não é reconhecida pelo atual Ministério da Saúde.    

Dando seguimento ao desmantelamento das políticas de saúde sexual e reprodutiva pelo Governo Federal, após a publicação da Portaria GM/MS Nº 715, de 4 de abril de 2022 que cria a Rede de Atenção Materna e Infantil – RAMI, surge a nova caderneta da gestante. Esta reafirma, a postura autoritária do Ministério da Saúde em relação ao cuidado obstétrico. É elaborada de forma monocrática, sem discussão com representantes de estados e municípios e com movimento de mulheres/feminista, desconhecendo estudos e evidências científicas no campo da saúde reprodutiva e perinatal. Um documento que permite a retomada de práticas ultrapassadas e desrespeita pactuações vigentes até então.

A caderneta deve ser oferecida a todas as pessoas que estão gestantes no início do pré-natal e funciona também como orientação a profissionais, em especial, da Atenção Básica.

O texto altera acordos, omite direitos adquiridos sem justificativas técnicas ou cientificas. Por exemplo: ao citar o direito a acompanhante no parto (Lei Federal nº 11.108/2005), não informa que este/a deve ser escolhido pela pessoa gestante. Exclui plano de parto e acompanhamento por doulas, dentre outras estratégias de cuidado que não interessam à velha política materno-infantil do atual Ministério da Saúde.

Ao utilizar o discurso de “cultura da paz nas maternidades”, minimiza as situações de descasos, negligências e maus tratos vivenciadas cotidianamente nas maternidades, denominadas violências obstétricas.4 Estas atingem de forma acentuada pessoas negras, pobres e periféricas e que acabam se transformando em destino para umas e norma para outros/as. Negar a violência obstétrica é, sem dúvida, retroceder na luta por respeito, dignidade e qualidade da assistência a mulheres e recém nascidos e contribui com a prevalência de indicadores de morbimortalidade elevados. 

O texto segue, e de forma velada, introduz a possível necessidade de episiotomia,1 uma prática desnecessária e que vem sendo excluída como procedimento de rotina desde os anos de 1990. E no mesmo sentido, reacende o fantasma do “soro” com ocitocina e do parto doloroso.

Ao introduzir a possibilidade de cesariana a pedido, ultrapassa uma barreira ética ao ignorar os riscos já exaustivamente demonstrados para gestantes e seus bebês. De forma simplista, transfere para a mulher uma decisão, muitas vezes, baseada em experiências de partos mal assistidos e violentos. Além disso, abre portas para a “cesariana com laqueadura”, passando por cima de protocolos e muitas vezes, realizadas em condições insatisfatórias. 5,6,7

E por fim, de maneira irresponsável e sem reflexão sobre retorno da fertilidade pós-parto, coloca a amamentação como método contraceptivo.

A nova cartilha da gestante é um instrumento de orientação pré-natal e de preparação para o parto e pós-parto danoso, tanto em relação às usuárias como às equipes de atenção à saúde. Ao repassar aos profissionais a possibilidade de escolha por práticas não cientificamente comprovadas, acaba por legitimá-las diante de gestantes, puérperas e seus recém-nascidos.  Sem contar o custo desnecessário de substituir um documento ainda recente, fruto de consensos por outro cheio de ambuiguidades e com recursos do SUS já tão expropriado.

É importante que além de organizações da sociedade civil, movimentos feministas e de associações científicas, estados e municípios também assumam uma posição em relação a essa caderneta da gestante!

Referências
1. World Health Organization (WHO). Recommendations on Intrapartum Care for a Positive Childbirth Experience. Geneva: WHO; 2018.
2. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS-a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 24 jun
3. Leal et al. Redução das iniquidades sociais no acesso às tecnologias apropriadas ao parto na Rede Cegonha. Ciênc. saúde coletiva 26 Mar 2021. https://www.scielo.br/j/csc/a/n8nR78PnmfFQssDDgTggTjz/?lang=pt
4. Marques SB. Violência obstétrica no Brasil: um conceito em construção para a garantia do direito integral à saúde das mulhereshttps://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/index.php/cadernos/article/view/585
5. Leal et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30 Sup:S17-S47, 2014.
6. Esteves-Pereira AP et al. Caesarean Delivery and Postpartum Maternal Mortality: A Population-Based Case Control Study in Brazil. PLOS ONE | DOI:10.1371/journal.pone.0153396 April 13, 2016.
7. Domingues et al. Processo de decisão pelo tipo de parto no Brasil: da preferência inicial das mulheres à via de parto final. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30 Sup:S101-S116, 2014.

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