No final do mês de janeiro fomos surpreendidas pela publicação da Resolução Nº 2 de Janeiro de 2022, cujo conteúdo normatiza a avaliação psicossocial, por psicólogas e psicólogos. Ao tomar ciência de sua publicação, causaram estranheza o seu conteúdo e as concepções nela expressas.
A metodologia adotada na construção desta Resolução merece reflexão inicial, especialmente o caráter restrito de circulação das informações no seu processo de elaboração e a ausência de participação de setores que, cotidianamente, estão envolvidos com aspectos teóricos e práticos sobre os quais a Resolução legislou. Destaca-se, sobretudo, que não houve participação de entidades atuantes no campo da Saúde do Trabalhador, nem ampla consulta pública à categoria.
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No conteúdo geral, há alinhamento a uma visão individualizante da relação trabalho – saúde, que nos leva a uma visão retrógrada, ainda anterior ao que tem sido analisado como ‘saúde ocupacional’ na trajetória das disciplinas do campo da saúde desde o início do século XX até hoje. A Resolução 02/2022 do CFP adota caráter de abrangência bem limitado, vinculando-a às Normas Regulamentadoras do Trabalho (NR), que regulam as relações de trabalho e saúde apenas para trabalhadores e trabalhadoras formalmente inseridos no mercado de trabalho.
É possível supor que a Resolução atenda reivindicações da categoria que busca ampliar a atuação na saúde e segurança no trabalho. Ocorre que a Resolução mostra-se restritiva quanto às técnicas e abordagens possíveis, reforçando os modelos tradicionais e limitados e tendendo à individualização dos processos e à cultura da culpabilização. Registra-se que, até mesmo nas NRs vigentes, temos indicações mais avançadas.
O conteúdo da resolução desprestigia as intervenções coletivas, as experiências dos grupos e, fundamentalmente, desconsidera a grande importância da participação dos trabalhadores e trabalhadoras nas avaliações dos ambientes, dos processos de trabalho e das dinâmicas psicossociais.
Com foco na avaliação psicossocial, não busca ampliar a possibilidade de atuação dos psicólogos e psicólogas no âmbito da prevenção e participação dos/as trabalhadores/as previstas em várias normas regulamentadoras, como a NR-1, NR-5 e NR-17, apenas para citar algumas. Nestas, a organização do trabalho tem sua importância reconhecida na prevenção de acidentes e doenças, bem como na avaliação de incidentes e acidentes. A NR-5 prevê a participação dos trabalhadores, via a CIPA, nas avaliações de riscos ambientais. A NR-17 estabelece que as metodologias de investigação devem ser escolhidas pelos profissionais autonomamente.
Se levadas em consideração estas Normas, pode-se vislumbrar intervenções profissionais relacionadas ao reconhecimento das causas dos agravos à saúde dos trabalhadores e seus determinantes complexos, dos riscos no trabalho, dos modos de prevenção e promoção à saúde com a efetiva participação dos/as trabalhadores/as. A Resolução coloca o foco nas avaliações individuais dos trabalhadores, sem referência a este patrimônio já consolidado, deixando a menção ao ambiente e aos processos de trabalho como menções vazias, sem estabelecer nenhuma relação entre promoção, prevenção, riscos e efeitos sobre grupos e indivíduos.
O artigo 1º § 2º estabelece que a avaliação psicossocial será realizada em exames admissionais, periódicos, de retorno ao trabalho, de mudança de função e demissionais, sendo que tais exames são, tradicionalmente, da competência de profissionais médicos. Fica subentendida a submissão da atuação dos psicólogos aos médicos no artigo 9º, quando estabelece que o documento que resultar da avaliação psicossocial será um laudo psicológico que será entregue ao requerente. Há
uma omissão quanto ao direito do trabalhador em receber o documento e permite subentender que o requerente será o médico do trabalho, que realiza os exames admissional, periódicos, etc., fortalecendo a concepção de Serviços de Medicina do Trabalho e os atos médicos.
No Art. 3 lê-se que a avaliação psicossocial deverá ser individual. Apenas complementarmente menciona a necessidade de incluir informações direta ou indiretamente coletadas sobre o trabalho, ambiente e gestão.
O Art. 4º ao estabelecer os itens a serem observados, em todas as etapas, no que se refere aos aspectos que podem influenciar o processo de avaliação psicossocial, privilegia os aspectos individuais em detrimento do caráter coletivo da atividade de trabalho. No Art. 6º encontra-se que a psicóloga e o psicólogo devem decidir quais aspectos individuais e coletivos do trabalho, ambiente e gestão serão avaliados, porém, reforça a hegemonia da lógica individualizante em detrimento de uma lógica situada e coletiva.
Tendo como referência central a concepção de avaliação psicológica e suas normas, sem considerar claramente outras vias no campo da saúde do trabalhador, indica, no Art. 7º, a consulta à Resolução CFP nº 09, de 2018. No Art. 9º apresenta considerações acerca do laudo psicológico, ainda na lógica da atuação em avaliação e suas etapas. Considerações pertinentes ao campo da saúde do trabalhador não estão presentes, fazendo com que as menções à avaliação do ambiente e das condições de trabalho fiquem sem sustentação.
É importante ainda apontar que há erros importantes no texto, por exemplo quando se refere às normas de saúde e segurança no trabalho como vinculadas ao Ministério da Economia. Desde 28 de julho de 2021 a sua vinculação passou ao (recriado) Ministério do Trabalho e Previdência Social.
Na motivação e endereçamento da Resolução cabe questionar por que o CFP deve se posicionar especificamente em relação às Normas Regulamentadoras do Trabalho. A ação da psicóloga e do psicólogo com relação à saúde e segurança no trabalho, relacionadas a avaliações que podem ser nomeadas de ‘psicossociais’ e ações de redução de riscos psicossociais, ultrapassa largamente os limites das NRs.
Campos de intervenção que estão fora das avaliações em exames admissionais, periódicos, de retorno ao trabalho, de mudança de função e demissionais, e que estão no escopo de atuação da psicologia, como o da Qualidade de Vida (no trabalho), treinamento e desenvolvimento, dentre outros, que, numa perspectiva que considere a complexidade do trabalho, devem levar em consideração os riscos psicossociais e seus efeitos não são mencionados. Uma Resolução fortemente individualizante pode produzir limitações graves à atuação nestes campos, que funcionam predominantemente na lógica da promoção da saúde e da abordagem coletiva.
A resolução do CFP não favorece a ampliação da atuação preventiva pelos psicólogos e psicólogas no âmbito do trabalho, pois vincula e submete a avaliação psicossocial às NRs. Deste modo, depreende-se que a resolução restringe a atuação profissional quando a avaliação psicossocial não estiver relacionada à NR. Ademais, estabelece que a não observância da presente norma constitui falta ético-disciplinar, o que poderá inibir a adoção de outras metodologias de análise do trabalho.
Assim, espera-se que o CFP assuma um posicionamento em prol da saúde do trabalhador e da trabalhadora rompendo com a premissa do modelo biomédico e da aplicação restrita das normas de Higiene e Segurança do Trabalho, e que promova a incorporação de múltiplos saberes e um olhar interdisciplinar para as questões saúde/trabalho. O posicionamento do CFP deverá se alinhar com a afirmação da importância da análise coletiva da relação trabalhador/a – trabalho, incorporando, além da interdisciplinaridade, o conhecimento do trabalhador e da trabalhadora, construído a partir da sua experiência.
Este documento tem a finalidade de explicitar pontos da Resolução que podem trazer prejuízos significativos para a atuação profissional de psicólogas e psicólogos, seja restringindo seu campo de atuação, seja vinculando as práticas profissionais às abordagens restritas, algumas já superadas inclusive na legislação atual vigente. Nesse sentido, defendemos a imediata revogação da Resolução CFP-02-2022. Compreendemos que trata-se de um tema importante, atual, pertinente que deve ser legislado pelo CFP. Nesse sentido, defendemos que a elaboração de uma normativa sobre o assunto seja definida com base em processos amplos e participativos, envolvendo TODOS os setores que atuam no campo de saúde-trabalho, incluindo a saúde do trabalhador e da trabalhadora.
Aguardamos o acolhimento ao nosso pleito.
Nota encaminhada em 18/02/2022
Subscrevem essa nota:
Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT) Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)
GT3 Saúde Mental e Trabalho da Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras
Grupos de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP): GT Modos de Vida e Trabalho
GT Políticas da Subjetividade
GT Trabalho e Processos Organizativos na Contemporaneidade
GT Trabalho e Saúde
GT Trabalho, Subjetividade e Práticas Clínicas.