Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo
O novo coronavírus é repentino, devastador e universal. Já houve crises sanitárias mais letais, mas a maioria permaneceu territorialmente circunscrita, e registram-se aquelas disseminadas, porém, quase sempre, com menores taxas de mortalidade.
A surpreendente ameaça à saúde vem sendo respondida com medidas também inusitadas. Estratégias de distanciamento social se conjugaram com a reorganização de recursos assistenciais.
Países como a Austrália, Irlanda, Espanha, Reino Unido procuraram reunir de forma coordenada insumos estratégicos. Barreiras de natureza jurídica foram rompidas pela celebração de acordos para uso comum de estabelecimentos privados durante a pandemia.
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A maior parte dos termos de cessão de uso prevê o pagamento de valores compatíveis com a manutenção dos hospitais, deduzindo o lucro. É vantajoso para ambas as partes porque evita a ociosidade decorrente das recomendações de adiamento de exames e internações eletivas e permite a necessária expansão de leitos por preços justos. O uso compartilhado de leitos, acrescido com a montagem de hospitais de campanha, conforma uma escala adequada para a magnitude da pandemia.
Para o Brasil, onde a participação do setor privado é superior à de países com alta renda, o gerenciamento da capacidade instalada existente é vital para impedir discriminação de acesso para a maioria da população. Temos uma inversão entre a oferta de leitos e as necessidades de internação. O SUS conta com apenas 53% do total de leitos de terapia intensiva. Antes dos casos de Covid-19 já era um calvário conseguir tratamento para pacientes graves na rede pública. Sem medidas para diminuir a desigualdade preexistente para o uso de procedimentos de suporte à vida, a veloz disseminação da doença poderá acentuar iniquidades, inclusive entre quem tem plano privado de saúde.
Parte significativa dos clientes da saúde suplementar está vinculada a redes assistenciais de baixa complexidade tecnológica. A displicência com a inovação de determinadas empresas conformou um setor que manifesta desprezo pelos desfechos assistenciais e apela para o aumento de subsídios governamentais ao menor sinal de perda de receitas.
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Agora, quando está comprovado que a experiencia de profissionais de saúde e disponibilidade de equipamentos faz toda a diferença, seus porta-vozes parecem desatinados. Chegaram a demandar, quando a curva epidêmica ascende, o retorno de pacientes eletivos. Ou seja, o perigo do contato de doentes infectados com pessoas com comorbidades seria inferior ao de balanços financeiros negativos.
A comparação dos resultados do tratamento de pacientes evidencia que leitos vazios devem ser ocupados pelos acometidos pela Covid-19. A experiência de Nova York é traumática. A pandemia nos EUA, apesar do elevado gasto com saúde e sofisticados hospitais, mas com clivagens definidas pela capacidade de pagamento, deixou um rastro duplamente trágico: número de mortes elevadas e diferenciais desfavoráveis para latino-americanos e negros.
A gestão única de leitos —com tempo definido, baseada na combinação de critérios de gravidade dos casos, proximidade geográfica e garantias previstas nos contratos dos planos—, é factível e assegura a priorização das necessidades dos doentes. Compatibilizar direito à saúde com os de propriedade é uma tarefa urgente e exigente de sincera disposição para o diálogo; se bem executada, salvará vidas e nos tornará menos desiguais.
*Ligia Bahia é líder do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Saúde da Abrasco. O artigo de opinião foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18/4.