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Além do arcabouço legal e da conformação jurídica dos sistemas de saúde e das políticas públicas, quais as outras dimensões em que Saúde Coletiva e Direito se encontram e quais efeitos produzem nas formas da atenção e na efetivação da justiça social? Essas foram algumas das questões que atravessaram a mesa redonda Injustiça, Direitos Humanos e Saúde Coletiva: Novas perspectivas conceituais para o cuidado, realizada em 10 de outubro, no 7º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (7ºCBCSHS).

O auditório do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (ISC/UFMT) ficou lotado de estudantes, profissionais e docentes, que ouviram atentos às falas de José Ricardo Ayres, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (DMP/USP), Bethania Assy, professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FD/Uerj) e Maria Clara Marques Dias, professora do Programa de Pós-Graduação em Bioética (PPGBIOS/UFRJ/Fiocruz). A coordenação foi de Felipe Asensi, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj).

Pelo campo da Saúde, Ayres articulou a ideia do cuidado junto aos processos de emancipação e de tecnologia, promovendo diálogo com o tema do 7º CBCSHS. “Precisamos pensar o trabalho da saúde como um processo emancipador, de construção de uma cidadania articulada junto à noção de direitos. No entanto, o que temos hoje é um cenário diferente. Mesmo com os avanços da nossa comunidade técnica, em boa parte dado pelo uso das novas tecnologias, vemos a ampliação do cuidado e da emancipação capturados pelas ideias e práticas do consumo”.

Ayres destacou que parte dessa crítica compõe o debate inerente do campo da Saúde Coletiva, fazendo referências às primeiras produções de Sergio Arouca e Anamaria Tambellini que defendiam uma leitura preventivista não importada que “liberta a vida para que ela pergunte à ciência sobre a experiência”.

Após o debate conceitual sobre a perspectiva que o cuidado tem na sua própria trajetória e nos embates que este conceito mobiliza no campo do marxismo, o professor ressaltou a importância de usar o cuidado como uma chave para repensar o trabalho em saúde na perspectiva interpessoal e de ampliação do que nominou de “espaço público da saúde”. “Temos de repensar métodos e conteúdos, debater os sentidos normativos que imprimimos em nossas ações, afinando aos objetivos que queremos alcançar. Isso implica pensar o reconhecimento de uma maneira muito além do reconhecimento institucional, de pensar o espaço público da saúde. Ele se dá de várias formas, até na interação dos meios digitais em tempo real. Há a perda do contato do olho no olho, mas também há uma dimensão positiva, criando novos espaços públicos. São questões políticas e técnicas que temos de responder e pensar como construir criativamente o trabalho e a interação na saúde”.

Direito e bioética para repensar a gênese da injustiça: Professora do Direito e com um forte trabalho em conexão com a Saúde Coletiva, Bethânia Assy apresentou sua perspectiva de trabalho doutoral na qual investiga o que conceitua como uma epistemologia do sujeito na injustiça social. Suas ideias partem da ideia que os processos de subjetivação na sociedade contemporânea tem em suas motivações a concepção de justiça como uma experiência concreta da injustiça social. “Acredito que no Direito e na Medicina a vulnerabilidade dos sujeitos é mais clara e nos faz pensar como resistem e quais estratégias têm os sujeitos vulnerabilizados”, disse a docente.

Bethânia foi clara ao demarcar que é impossível entender como a injustiça se opera pela negação do direito à saúde demarcando as estratificações por classe, gênero e raça. “São elementos que precisam estar no centro das nossas observações, e não apaga-los”, explicou antes de enumerar os elementos que conformam a injustiça como experiência concreta.

O primeiro elemento é entender a injustiça como uma temporalidade, que tem forte peso do agora e do presente e com forte carga de urgência. Essa afirmação, segundo Bethânia, confronta a racionalidade emoldurada pelas teorias do direito que defendem um tempo descolado da realidade, conformada por um tempo próprio. “É preciso igualar esses tempos, o que é central nos debates sobre reparação, que é um tipo regular de processo ou procedimento no Direito à serviço de sucessivas garantias”.

Outro elemento é localizar o local da injustiça acontece, não apenas como referência geográfica, mas o espaço nos quais conclui sentidos. “É o próprio fenômeno da injustiça que concretiza as vulnerabilidades, carregando em si as condições do evento. Nesse sentido, há de se pensar uma gramática procedimental no fazer Direito e no fazer Saúde que incorpore novos sentidos de justiça e potencialize a materialidade de distintas existências.

Compreender as narrativas da injustiça, com suas indizibilidades e outras zonas de sentido difuso, bem como dar voz às injustiças que não querem nem se podem calar. “O evento reivindica experiência. É importante substituir análises frias para sublinhar a força historiográfica dos relatos e doas testemunhos. Ouvir e dar voz nos demanda responsabilidade pelo outros. Então encerro com uma pergunta para que cada profissional se faça: o que nos interpela quando somos convocados a fazer justiça e a cuidar?”.

Maria Clara Dias, professora do PPGBIOS, discorreu sobre a perspectivas dos funcionamentos no Direito, apresentando como diversas correntes do pensamento jurídico entendem quais categorias sociais têm ou não a primazia pelo direito e como uma perspectiva dos funcionamentos busca qualificar a noção de justiça pelas singularidades, numa perspectiva moral e política mais inclusiva. “Nas concepções vigentes, a maioria é de fato excluída dos processos de justiça, o que não pode mais ser admissível nos dias de hoje. Temos de atribuir singularidades aos novos indivíduos, otimizar a onda de liberdade exercida por esses indivíduos, sejam racionais ou não racionais, como os animais e o meio ambiente”, destacou.

Ao apresentar autores do direito e da bioética no debate dos planos de justiça concedido às corporações, aos indivíduos racionais, Maria Clara quis mostrar que as categorias detentoras do objeto da justiça, aqueles que se valem de seus benefícios e são autoridades em suas próprias vidas, são construídas historicamente. “O que essa perspectiva traz é a visão de que não há uma hierarquia entre indivíduos, mas sim uma valorização do funcionamento vital de cada entidade, seja pessoa, instituição, animal, meio ambiente. É uma visão de prática que tem como instrumento principal a escuta atenta às maneiras como as próprias pessoas compreendem seus funcionamentos, saindo do altar da racionalidade e expandindo o conhecimento”, explicou Maria Clara, completando a ideia de que essa perspectiva amplia as políticas de reparação e de reconhecimento de direitos. “Isso permite aos indivíduos a projetar demandas específicas que não estão projetadas nos códigos, gerando políticas diferenciadas”.

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