O Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (GTSA/Abrasco) vem protagonizando desde o início de sua organização, em 2001, debates caros para a saúde pública brasileira nos marcos da Saúde Coletiva.
Diversos temas contemporâneos vêm exigindo reflexões deste grupo, alguns deles como os agrotóxicos, a biossegurança e o modelo de controle vetorial, especialmente do Aedes aegypti, razões para significante produção bibliográfica.
Nessa linha foram produzidos diversas notas técnicas e publicações, sendo que citamos a seguir algumas mais representativas. Em relação à Oxitec, frente a liberação comercial do mosquito transgênico de forma açodada, com diversos vieses metodológicos e lobistas, foram editadas duas notas técnicas: Nota Técnica da Abrasco frente à liberação comercial de mosquitos transgênicos pela CTNBio, de 15 de setembro de 2014, e Rati-retificação da Nota Técnica da Abrasco frente à liberação comercial de mosquitos transgênicos pela CTNBio, após interpelação administrativa da empresa Oxitec, de 11 de fevereiro de 2015.
Com relação ao tema do controle vetorial, frente ao contexto das epidemias de arboviroses e, em especial da microcefalia imputada ao Zika vírus, produzimos três notas técnicas assinadas por diversos GTs da Abrasco no ano de 2016. A primeira faz uma crítica profunda ao modelo de controle vetorial MOSQUITOCÊNTRICO, chamando a atenção por sua característica perigosa e perdulária, apontando para outras abordagens, que estão resumidas em 15 pontos para enfrentamento. A segunda foi contra a Lei nº 13.301/2016 que autoriza a utilização de pulverização de
biocidas por aeronaves para o controle do Aedes aepgyti. A terceira se constituiu numa defesa ao ataque do setor produtivo contra os pesquisadores que fazem a crítica ao uso de agrotóxicos na agricultura e no controle vetorial. Este ataque foi uma resposta do setor empresarial à Nota Técnica da Abrasco em que trata dos conflitos de interesse e do papel da ciência em favor da vida.
A Fiocruz tem sido parceira desta importante e permanente jornada científica, inclusive apoiando e financiando o D0ssiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Nessa trajetória, a Fiocruz, a Abrasco e o Inca têm sido atacados pelo setor empresarial dos venenos e houve necessidade de resposta contundente e pronta dessas
importantes instituições de saúde pública.
O Inca, com apoio do GTSA/Abrasco e de outras universidades, apoiou a criação de uma rede de pesquisadores no tema e tem se posicionado frente à questão da carcinogênese dos agrotóxicos, assim como a Fiocruz e o GTSA/Abrasco.
Outra questão que é muito cara à Saúde Coletiva é sua proteção contra a ação de lobbies de interesse mercadológico e com pouca ou nenhuma incidência sobre os interesses da sociedade. Neste sentido, chama a atenção o artigo do observatório europeu sobre esse tema. Deve-se enfatizar também que desde alguns anos o Movimento pela Reforma Sanitária debate a questão dos interesses escusos da Big Pharma sobre a saúde pública e deve considerar-se que a Fiocruz, como a maior instituição de pesquisa voltada para a saúde pPública do país, obviamente é alvo desses interesses e dos lobbies.
O GTSA/Abrasco, formado por pesquisadores engajados por uma ciência cidadã e coerente com a história de construção de uma Saúde Coletiva soberana no país, apresenta esta nota crítica frente ao patrocínio da Oxitec na realização da Feira Soluções para a Saúde – Zika, nos dias 8-10 de agosto de 2017, na cidade de Salvador, Bahia.
Além de estranharmos esse patrocínio oportunista da Oxitec, queremos fazer uma crítica propositiva ao conteúdo dos debates na programação da Feira, principalmente tendo em vista que foi anunciado pela presidente da Fiocruz a realização de semelhantes eventos em outras regiões do país. Assim, fazemos algumas críticas e sugestões:
É preciso que haja alinhamento entre os temas e questões discutidas nesses eventos com a participação da Fiocruz, tendo em vista sua missão institucional. Se o evento propõe-se a discutir soluções para as arboviroses não pode deixar de fora elementos que são centrais ao debate. É preocupante ver no programa a ausência de discussão/ aprofundamento de temas relacionados à tríplice epidemia, tais como o saneamento ambiental, a determinação social da saúde, o problema das intoxicações provocadas pela exposição a agentes químicos utilizados no controle vetorial (crítica ao modelo de controle químico) e a ausência de estudos de médio e longo prazo sobre o uso de mosquitos geneticamente modificados e afins.
O tema do saneamento foi programado apenas como um debate na “RODA DE CONVERSA 6: Vigilância em Saúde Ambiental e Saneamento no contexto da tríplice epidemia”, o que demostra que o saneamento ambiental não é priorizado como algo fundamental para o problema das arboviroses. Foi tratado como um subtema que
aconteceu de forma paralela aos debates centrais do evento.
O tema da determinação social não foi tratado ao longo do evento, surgindo apenas na “RODA DE CONVERSA 12: Direitos em tempos de Zika” um subtema com o título: “Os determinantes sociais, a epidemia de Zika vírus e as consequências para as mulheres negras”. A problematização dos impactos das edições genéticas e do uso do controle químico, bem como sua eficiência, não aconteceu em nenhum debate. Esses temas, ao não serem tratados nas mesas, nos simpósios e nas oficinas, nem tão pouco no discurso de abertura da presidente, deixam uma lacuna que faz perpetuar os equívocos no controle vetorial das arboviroses.
A descoberta do Culex como transmissor do Zika vírus foi apresentada em 2016 pela geneticista e entomologista da Fiocruz-PE, Constância Ayres e sua equipe. Esta importante constatação até hoje não foi internalizada e não ganhou a evidente centralidade no debate. Essa evidência, entretanto, é mais um fato que mostra a urgente necessidade de reorientar o modelo de controle vetorial para a Zika, tema do evento em questão e onde não foi considerado.
Pode-se constatar que temas de real importância e cruciais para a compreensão dos processos envolvidos na epidemia de Zika tratada no evento e para as tomadas de decisões relativas às ações de controle comandadas pelos órgãos públicos foram abordados em rodas de conversas, paralelas às discussões centrais do evento, especialmente as que interessam à indústria de biotecnologia.
Neste cenário, a Fiocruz também se insere, a nosso ver, de modo distorcido, criando uma clivagem entre importantes pesquisas e inovações. Esta feira dialogou diretamente com os serviços de saúde pública e com a vigilância em saúde do SUS e, por esta razão, tinha o dever de colocar a centralidade naquilo que tratou de modo paralelo.
O patrocínio da Oxitec é um sintoma de uma distorção institucional que deve merecer reflexão e correção na formatação e execução de outros eventos. Nosso respeito pela Fiocruz, parceira de tantas lutas, exige de nós uma sempre e permanente vigilância do açodamento de interesses escusos ao da saúde pública brasileira.
É fundamental que a Fiocruz tenha um posicionamento institucional em relação a alguns assuntos polêmicos como a questão dos agrotóxicos e organismos geneticamente modificados aplicados na agricultura e no controle vetorial, evitando posicionamentos de pesquisadores e/ou de gestores individuais que possam se sobrepor à missão institucional da maior fundação de pesquisa do país e da América Latina. É nosso desejo presenciar este debate no seio da Fiocruz, mas também desejamos que ele se faça aberto à sociedade, como sempre foi nossa proposta de luta
conjunta com as instituições de Saúde Coletiva que estão presentes no SUS, tal como a Fiocruz.
Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2017
Gabriel Schütz – professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva – IESC/UFRJ – e integrante da Coordenação do GTSA/Abrasco