Uma vertente das ciências, dominante em alguns campos de pesquisa, pretende explicar os problemas do mundo numa perspectiva simplificadora e pragmática, produzindo soluções práticas, padronizadas, rápidas, fáceis e… equivocadas. Outra vertente, cada vez mais relevante em campos científicos contemporâneos, busca compreender a complexidade e singularidade dos problemas da natureza, da sociedade, da história, da vida e da saúde. Nessa perspectiva, para lidar com problemas complexos, deve-se procurar soluções pertinentes, prudentes e… complexas.
+ Covid-19: diálogo sobre epidemiologia, desenvolvimento científico e determinantes sociais
Uma pandemia é um evento singular, emergente e complexo, tal como furacões, tsunamis, guerras, supernovas e outros fenômenos do mundo e da vida. Alguns nomeiam tais fenômenos como eventos críticos, outros como catástrofes, outros preferem a designação de objetos complexos.
Para melhor compreender essa família de acontecimentos peculiares, consideremos uma analogia entre uma pandemia e um furacão. A rigor, medidas (com variado grau de precisão) de pressão barométrica, pluviometria, velocidade dos ventos, variação da temperatura, sozinhas não são capazes de definir o que é um furacão. Porém, integradas a outros itens de exame e análise, tudo isso unificado numa totalidade singular, permite o reconhecimento desse complexo fenômeno chamado furacão. Talvez seja por isso que cientistas do clima costumam batizar esses eventos singulares com nomes de pessoas (até há pouco, somente nomes femininos).
De modo análogo, pandemias, como esta que, no momento, assola o mundo inteiro, não se reduzem à emergência de um novo patógeno no bioma terrestre, o SARS-Cov-2; nem aos sinais e sintomas inicialmente desconhecidos de uma nova entidade mórbida batizada de covid-19; nem a curvas epidêmicas e indicadores epidemiológicos; nem ao processo amplo de disseminação e contágio; nem às crises econômicas e políticas decorrentes da pandemia ou a ela associadas; nem à “infodemia” de fake news, mitos e mentiras; nem ao pânico que tudo isso provoca. No limite, implica todos esses fenômenos e processos, em sua plena complexidade, articulados a outros elementos de compreensão, que não se reduzem a medições, descrições, efeitos, correlações e narrativas. Essa totalidade singular, específica e peculiar é reconhecida e designada como pandemia. Não por acaso, tal como furacões, também pandemias costumavam ganhar nomes humanos e animais para seu registro na história: peste negra, mal francês, gripe espanhola, gripe asiática, câncer gay, gripe aviária, gripe suína. Agora usam siglas e códigos (HIV/AIDS, H1N1, SARs, MERs, Covid-19) com a intenção declarada de prevenir xenofobia e preconceitos.
Como abordar a pandemia covid-19, respeitando sua complexidade, totalidade e singularidade? Para entender a pandemia e seus impactos, reais e imaginários, numa perspectiva realista e contextualizada, devemos buscar referências conceituais e metodológicas contrapostas às ciências tradicionais, tal como estabelecidas no hemisfério Norte. Nesse registro de insubmissão intelectual, o pensador argentino Juan Samaja, caso raro de filósofo com formação em saúde, propôs uma “epidemiologia miltoniana”, capaz de lidar com fenômenos complexos considerados como totalidades, sobre as quais as ciências devem produzir uma compreensão sintética. Para o sábio baiano Milton Santos, eventos dessa natureza conformam uma nova família de objetos científicos, definidos não por componentes e princípios funcionais, mas por múltiplas faces e planos de emergência.
Nessa perspectiva, a pandemia da covid-19 pode ser compreendida como um objeto complexo, com sete dimensões, articuladas por interfaces hierárquicas: alterações moleculares e celulares que replicam o vírus, lesões metabólicas e tissulares que afetam órgãos e sistemas corporais; quadros sintomáticos que se concretizam em “casos clínicos”; populações afetadas pela epidemia (doentes e óbitos); ecossistemas agredidos e degradados pela ação humana; sociedades, economias e redes políticas rompidas ou ameaçadas; esferas simbólicas e culturais, num clima de medo e pânico.
Na interface biomolecular-clínica, no nível subindividual, o patógeno SARS-CoV-2 atua causando patologia, contágio, doença e eventualmente falência de órgãos e sistemas, mediante processos de infecção e reação do organismo. Aqui, o modo de intervenção consiste na indução ou animação do sistema imunológico dos corpos individuais (ou no nível coletivo, com as vacinas, por exemplo).
Na interface clínica-epidemiológica, onde ocorre a enfermidade covid-19 e eventualmente a morte, modos de intervenção compreendem tratamentos visando à cura dos sujeitos ou redução de letalidade e sequelas da doença. Na interface epidemiológica-ecossocial, onde cursa a pandemia da covid-19, determinantes sociais transformam casos infectados e infectantes em grupos de risco e de vulnerabilidade, requerendo amplas e efetivas medidas de vigilância epidemiológica para redução da incidência e controle da transmissibilidade.
Na interface ecossocial-tecnológica, a pandemia se transmuda em sistemas de epidemias alimentados por cadeias e ondas de contágio, estressando a capacidade da sociedade em produzir conhecimentos e novas tecnologias. Na interface tecnológica-econômica, é indispensável reduzir desigualdades e iniquidades, eliminando discriminações inaceitáveis no acesso aos cuidados de saúde, bem como a adesão às medidas de isolamento físico/social. Frente à pandemia e à recessão econômica dela derivada, essa interface exige a adoção de medidas econômicas emergenciais que assegurem a proteção social.
A interface econômica-política pressupõe relações de credibilidade entre as autoridades sanitárias e políticas e a população, sendo imprescindível assegurar qualidade, transparência e acesso às informações em saúde para a construção de estratégias e a tomada de decisão no combate à pandemia. Finalmente, na interface política-simbólica, intensa produção informacional e narrativa se dissemina e alimenta um imaginário social cheio de ansiedade e medos, no que se denominou de infodemia, desencadeando estratégias de mobilização e engajamento de sujeitos, grupos e massas.
A infecção por SARS-CoV-2, evento contingente, produz uma determinada patologia (ou defeito, desordem, lesão ou anormalidade) capaz de provocar danos ou falhas em um órgão-alvo, num sistema corporal. O patógeno SARS-CoV-2 pode ser reconhecido como causa de uma nova síndrome respiratória aguda, biologicamente identificada e clinicamente classificada, designada como doença: covid-19. O aumento acelerado de infectados e casos clínicos, assintomáticos ou não, a circulação do vírus numa determinada população, ou numa sociedade, a transmissão em redes sociais, a concentração demográfica ou a agregação de sujeitos, podem representar fatores de risco ou ameaça ambiental para doenças transmissíveis, como é o caso da covid-19. Fatores geopolíticos, relações econômicas, vetores migratórios são capazes de transformar um surto epidêmico numa pandemia, ao tempo em que ondas de informações falsas e decisões políticas equivocadas podem resultar em redução da capacidade social de controle do contágio. É importante notar que todos esses eventos ocorrem ao mesmo tempo, em distintos planos de ocorrência e interfaces da pandemia.
O enfrentamento de problema tão complexo, amplo e múltiplo como esta pandemia, evento crítico de enorme gravidade, requer liderança competente e grande capacidade de articulação, viabilizando em todos os níveis de governança uma sintonia fina para implementação de normas sensatas, políticas efetivas e gestão competente de recursos, pessoas e processos.
Nesse momento, quando mais se necessita de transparência e credibilidade, valores fundamentais das ciências, a saúde coletiva se apresenta como a principal produtora de sentidos sobre a pandemia de covid-19, tendo a epidemiologia como campo disciplinar prioritário. Afinal de contas, quem entende de epidemias e pandemias são epidemiologistas, e quem domina saberes e práticas necessários para lidar com crises sanitárias são sanitaristas. Essa constatação tem produzido, como efeito imediato, uma peculiar disputa com outros campos de conhecimento, em dois sentidos: por um lado, entre pesquisadores e produtores de discurso técnico do campo médico, muitos se declaram epidemiologistas, mesmo quando abertamente demonstram reduzida ou enviesada compreensão do raciocínio epidemiológico; por outro lado, pesquisadores de campos científicos e tecnológicos estruturados nas diversas lógicas de quantificação, como a física, a economia, a estatística, a computação e o que, agora na moda, chamam de “ciências de dados”, agem como se nunca houvesse existido campos disciplinares específicos, constituídos a partir do estudo das epidemias e dos problemas de saúde nas sociedades, que historicamente se desenvolveram tendo como eixo metodológico abordagens numéricas da distribuição de doenças e fenômenos de saúde em populações, ambientes e sociedades.
A pandemia de covid-19, em todo o mundo, sem dúvida representa rica oportunidade para uma necessária aliança intertransdisciplinar, articulando ciências, tecnologias e saberes práticos, capaz de viabilizar de modo efetivo soluções integradoras, pertinentes e cuidadosas frente aos graves problemas que emergem nas diversas faces e interfaces desse evento crítico. Na conjuntura brasileira, com um Governo federal incompetente, autoritário e genocida, gerando caos, confusão e desespero, observa-se um cenário de renhida luta política e intensa disputa retórica, o que, de certo modo, traz ao primeiro plano as dimensões político-econômica e simbólico-ideológica da crise da pandemia. Por isso, particularmente neste sofrido Brasil, precisamos de amplo diálogo e cooperação entre as diferentes disciplinas e campos das ciências e os setores de políticas públicas, a serem considerados na produção de conhecimento sobre objetos complexos do campo da saúde, gerando novas e promissoras estratégias de cuidado, controle, mitigação e superação da maior crise sanitária dos tempos recentes.
Naomar de Almeida Filho é vice-presidente da Abrasco, catedrático do Instituto de Estudos Avançados da USP e Professor Titular de Epidemiologia do ISC/UFBA. Ex-reitor da UFBA e da UFSB. Pesquisador 1-A do CNPq. Artigo originalmente publicado no jornal El País, em 17 de junho.