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Ciência versus política, técnica versus filosofia. Estas foram algumas das aparentes controvérsias surgidas na audiência pública realizada pelo parlamento alemão sobre o Glifosato, realizada em 28 de setembro, em Berlim. No entanto, uma avaliação mais profunda aponta que a contradição fundamental é apenas uma: de um lado, o agronegócio produtor de mercadorias agrícolas, que vê nos agrotóxicos apenas uma forma de aumentar produção, sobretudo mecanizada; do outro, a agroecologia, que afirma na teoria e na prática que é possível produzir alimentos em quantidade e qualidade suficientes para nutrir a crescente população mundial.

Ao contrário do Brasil, onde o registro para uso de agrotóxicos, uma vez concedido, vale para sempre, na Europa os registros possuem prazo de validade. E em 30 de agosto de 2015 se encerraria a validade do registro do Glifosato, o agrotóxicos mais usado no mundo, conhecido pela marca comercial Round Up, da Monsanto, ou pelo nome popular de Mata-Mato.

A extensão do registro ocorreria sem maiores “contratempos”, não fosse a publicação de um relatório do IARC, a agência de câncer da Organização Mundial da Saúde, aumentando a classificação do Glifosato para “provavelmente cancerígeno”. Este fato gerou grande imediata reação da indústria, que rapidamente tentou desqualificar o estudo do IARC, mas não impediu que o tema entrasse em pauta. No mesmo sentido, a agência de avaliação de risco alemão (BfR), elaborou rapidamente um adendo ao relatório do IARC, procurando desqualificar o estudo.

Neste contexto, foi convocada uma audiência pública para esta última segunda-feira, dia 28, no Deutscher Bundestag, o Parlamento Alemão. O objetivo era ouvir especialistas e debater com os parlamentares as consequências da continuidade ou proibição do uso do glifosato na Europa, em geral, e especificamente na Alemanha.

Uma das convidadas foi a toxicologista brasileira Karen Friedrich. Karen é pesquisadora da Fiocruz e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), mas o convite se deu sobretudo por conta de seu trabalho no Dossiê Abrasco: Um Alerta sobre impactos dos Agrotóxicos na Saúde. Karen também é integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação (GTSA/Abrasco).

Veja na íntegra o discurso de Karen Friedrich no Parlamento Alemão

Além dela, estiverem presentes Eberhard Greiser, professor emérito de epidemiologia da Universidade de Bremen; Peter Clausing, da PAN (Rede de Ação sobre Pesticidas); Heike Moldenhauer , da BUND (organização alemã ligada aos Amigos da Terra); o bioestatístico Christopher Portier, do IARC; Ivan Rusyn, da A&M University/Texas; e Bernhard Krüsken, da Associação de Agricultores Alemã (DBV).

O Prof. Dr. Helmut Greim da Universidade de Munique, convidado como pesquisador independente, é autor de estudos financiados pela Monsanto. Durante a audiência, revelou ter recebido €3000,00 para elaborar o artigo, que concluiu que o glifosato não representa riscos a saúde.

A maior parte da perguntas, no entanto, foi dirigida ao presidente da BrF, Andreas Hensel. Os argumentos utilizados para defender o glifosato foram principalmente o fato desta substância ser supostamente a mais estudada do que outros possíveis substitutos. Foi apontado também que as doses aplicadas nos estudos que mostram a toxicidade da substância é maior do aquela a que a população é exposta.

Neste sentido, foram citados diversos problemas no relatório do BfR. Além de não considerarem estudos epidemiológicos, que trazem dados mais próximos da realidade em relação a estudos de laboratório, foram incluídos estudos financiados pela indústria, aos quais não se tem acesso ao dados.

A brasileira Karen Friedrich rebateu argumentos ultrapassados, como a menção ao princípio de Paracelsus, que no século XV afirmou que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose. “A literatura científica tem apontado o potencial genotóxico e de desregulação endócrina do glifosato que não obedecem a uma lógica linear entre a dose e o efeito.”, afirmou Karen. Ela ainda salientou que, além de tudo, o glifosato não é agronomicamente mais eficaz: “Diversas espécies de plantas não desejáveis tem manifestado resistência a esse herbicida. Por isso, a indústria vem pressionando pela aprovação de produtos comerciais formulados com outros herbicidas.”, disse a toxicologista. Reforçando este argumento, ela lembrou que a quantidade de agrotóxicos usada no Brasil praticamente dobrou nos últimos anos, ao passo que a produtividade da agricultura não acompanhou esse movimento.

Ela finalizou o debate com uma recomendação clara: “A produção agrícola de alimentos deve ser baseada em sistemas naturais, ou como chamamos no Brasil, agroecológicos. Existem evidências científicas robustas que demonstram o potencial do glifosato em causar efeitos sobre a saúde humana graves e irreversíveis, e com base na indicação legal de adoção do principio da precaução, o glifosato reúne condições para ter seu uso proibido na Europa.”, conclui Karen.

Defensores do glifosato tentaram desvincular decisões supostamente técnicas daquelas políticas. Chegou-se a afirmar que a aplicação do princípio da precaução seria algo filosófico, e portanto, afastado da “técnica objetiva”. Entretanto, a escolha da BfR em utilizar estudos financiados por empresas em sua revisão, e de desconsiderar estudos epidemiológicos revela claramente que esta separação não corresponde à realidade.

A decisão da Comissão Europeia sobre a renovação da licença do glifosato ainda deve demorar alguns meses. Os efeitos de uma possível restrição ao seu uso seriam importantíssimos no Brasil, já que grande parte da soja, milho e algodão transgênicos produzidos em solo nacional chega ao velho continente recheado de venenos.

A sociedade civil alemã também esteve presente. Médicos contra os glifosato protestaram em frente ao parlamento antes da audiência, e abaixo-assinados virtuais têm circulado pedindo o fim dos venenos.

Os problemas gerados pelo mercado de alimentos globalizado são sentidos de forma diferente por cada país. Ao Brasil, local escolhido para ser o celeiro do agronegócio, e portanto, o depósito tóxico do mundo, resta seguir a luta contra este modelo, e torcer para que restrições externas ajudem nosso país a deixar o posto de maior consumidor de agrotóxicos do mundo.

Acesse as respostas escritas por Karen Friedrich às perguntas dos deputados (inglês).

*Alan Tygel é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Informática da UFRJ, pesquisando na área de metodologias participativas de desenvolvimento de software, tecnologias de informação para movimentos sociais e membro da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida

Publicada originalmente no Boletim do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Rio de Janeiro (MST/RJ)

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