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Pés de barro – artigo de Ligia Bahia

Vilma Reis

Foto Vilma Reis

O jornal O Globo publicou nesta segunda-feira 13 de abril, artigo da professora Ligia bahia – membro do Conselho da Abrasco, que trata dos planos de saúde ‘Parte substancial do que é pago pelos indivíduos, famílias e empresas empregadoras públicas e privadas fica no meio do caminho, não reverte para a melhoria do atendimento. As acusações de desperdício, mau uso de recursos, corrupção, antes apenas direcionadas ao SUS, estenderam-se às organizações privadas que se apresentavam como o apanágio do empreendedorismo ético’ esclarece a professora em parte do texto. O ano de 2014 teve no topo de reclamações ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor a assistência à saúde.Foi o terceiro ano consecutivo que os planos de saúde lideraram a lista de reclamações do consumidor.

Confira abaixo o texto na íntegra:

Em tempos de vacas magras e instabilidade política, ficam nítidas as diferenças entre saúde pública e as práticas assistenciais mercantis. As promessas de eficiência, modernidade e boa gestão do setor privado não foram cumpridas. O descontrole financeiro, o endividamento e a má qualidade assistencial da rede de serviços de uma das maiores empresas de planos de saúde podem ser avaliados como simples azar do jogo ou esgotamento das possibilidades de expansão artificial dos negócios. As vísceras de empresas-entidades médicas, empresas-amigas e dependentes de favores e normas governamentais não são bonitas de se ver. Revelam a ineficiência decorrente dos altos custos de estruturas administrativas caras, obsoletas, e das trajetórias sinuosas, represadas ou mesmo inapropriadas dos fundos de recursos para a saúde.

Parte substancial do que é pago pelos indivíduos, famílias e empresas empregadoras públicas e privadas fica no meio do caminho, não reverte para a melhoria do atendimento. As acusações de desperdício, mau uso de recursos, corrupção, antes apenas direcionadas ao SUS, estenderam-se às organizações privadas que se apresentavam como o apanágio do empreendedorismo ético.

As promessas não cumpridas de entrega de atenção à saúde mediante compra de planos privados tendem a se intensificar. O ajuste fiscal não restringirá apenas os orçamentos públicos. Os impactos combinados da desvalorização do real e redução ou estagnação da massa salarial resultam na elevação de preços de atividades dependentes de insumos importados (essenciais para a saúde) e dificuldades para pagar aumentos das mensalidades dos planos. Entretanto, as decisões sobre as políticas de saúde seguem orientadas pelas miragens, a mais sedutora sendo a perfeita divisão da saúde por segmentos sociais, na qual o governo subsidia os gastos privados dos ricos e remediados, mas só se mete nos negócios quando chamado e se responsabiliza apenas por quem não pode pagar. Os cortes indiscriminados, inclusive a redução de despesas diretas com saúde, pressupõem que a maior parte da população será capaz de se virar para comprar cuidados à saúde por preços que acompanharão a queda da inflação e a possibilidade de oferecer serviços totalmente básicos, na realidade baratos, aos pobres.

Na Europa, devido aos sistemas universais de saúde consolidados, a crise de 2008 afetou os gastos privados com saúde, mas não as despesas totais. Os cortes não foram lineares, entendeu-se que a preservação das políticas de saúde é essencial. O Brasil está pegando outro rumo, o da confusão proposital sobre aludidos efeitos deletérios sobre a competitividade das políticas públicas. Em 2016 serão destinados 13,2% da receita corrente líquida da União para a saúde, menos recursos do que em 2000, quando os gastos representaram 14%. Saúde pública não significa má qualidade e baixa remuneração dos profissionais. Na pesquisa sobre atitudes sociais realizada em 2014 no Reino Unido, apenas 16% responderam preferir prestadores privados aos públicos. Um médico generalista do sistema público inglês recebe por mês entre R$ 21.000 e R$ 31.500.

Competição e privatização não são termos intercambiáveis. É possível existir privatização sem competição. A insatisfação crescente dos brasileiros com saúde — 89% em março — expressa queixas generalizadas em relação ao SUS e ao setor privado. Preços calibrados pelo atendimento a ricos e pobres, e não pela gravidade, intensidade do trabalho e resultados, impõem barreiras ao acesso e um padrão caubói de disputa por mercados. Os hospitais e os médicos cobram do SUS, das empresas de planos e diretamente dos pacientes valores completamente diferenciados para o mesmo procedimento, independentemente da qualidade. Todos concordam que a equivalência de um doente grave que não tem condição de pagar despesas enormes com tratamentos caros e prolongados a uma cigarra que não poupou no verão é espúria. No entanto, o macabro mandamento “venda lenços em momentos nos quais muitos choram” continua sendo adaptado para a saúde, em versões atenuadas.

Indivíduos-empresários e entidades médicas que apoiam empresas e empresários julgam fazer o melhor pela população e querem obter remunerações autoavaliadas como adequadas pelo esforço. Os governos também se comprometeram com a priorização da saúde. O que não fica claro é se os benfeitores e as instituições governamentais estão levando em consideração as consequências amplamente estudadas das crises econômicas sobre a saúde. A desproteção social e a precarização do trabalho estão correlacionadas com aumentos dos casos de doenças crônicas, entre as quais perturbações psíquicas e violências. A intensificação das apostas nas soluções particulares, individualistas e rentáveis e o encapsulamento do futuro por um modelo de governabilidade que amesquinha o SUS impedem que o conhecimento acumulado pela saúde pública oriente a elaboração de estratégias originais e verdadeiramente inovadoras para a efetivação do direito à saúde.

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