A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco – vem a público manifestar a indignação e preocupação contra a divulgação de uma palestra intitulada “A importância da Escravidão na Economia Mundial”, que seria ministrada pelo médico Lenio Carlos Dagnoluzzo Tragnago e mediada pelo professor Ordeban Teles da Silva. Prevista para ocorrer no dia 30 de maio de 2023, a mesma foi organizada pelo Curso de Graduação em Administração da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), campus de Sananduva.
Diante da repercussão que teve o referido fato, e dos questionamentos feitos pelos meios de comunicação e instituições diversas sobre a temática da palestra divulgada, a UERGS retratou-se, afirmando ser “contrária a qualquer apologia à escravidão ou tema que fira os direitos humanos” e ainda que ocorrera um equívoco na formulação dos materiais de divulgação, no que tange ao título da palestra. Consideramos espantoso que uma universidade pública, em tempos de extremismo e crescimento das células nazifacistas, sobretudo no estado em questão, reduza a sua resposta a um simples “equívoco” ou ainda “inadequação” do título. Cabe salientar, que o palestrante é um médico que defendeu e chegou a recomendar o uso de ivermectina e hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, comprovadamente ineficazes no combate à doença.
Estamos também falando do estado brasileiro onde, em fevereiro deste ano, foram resgatados em torno de 200 trabalhadores, entre eles 196 baianos, em regime análogo à escravidão, em grandes fazendas produtoras de vinho. Esses trabalhadores foram localizados por meio de uma ação conjunta da Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) vivendo em alojamentos insalubres, privados de alimentação, alguns apresentando, inclusive, quadro de desnutrição e outros problemas de saúde, com jornadas exaustivas de trabalho e sendo submetidos a castigos físicos. É preciso recordar também que após o regate dessas pessoas e a notificação das empresas, o vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, discursou no plenário da Câmara Municipal com um pronunciamento racista, violento e discriminador em relação à população do estado da Bahia, apoiando a prática de trabalho em condições análogas à escravidão.
De acordo com o Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, trabalho análogo à escravidão “é caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto”. Ademais, traduz-se também na violação do direito de ir e vir, ameaças e consumação de violências física, psicológica e/ou simbólica, bem como exposição a condições de vida em níveis degradantes. Dados do MTE apontam, por exemplo, que entre janeiro e 20 de março de 2023, foram resgatados 918 trabalhadores em condições semelhantes à escravidão no Brasil, tendo uma alta de 124% em relação ao mesmo trimestre de 2022.
O crescimento no número de denúncias de trabalho em condições análogas à escravidão revela uma prática comum de violação sistemática dos direitos fundamentais de trabalhadores e trabalhadoras, por empresas e grupos econômicos, principalmente, do setor agropecuário, bem como do serviço doméstico. Nesse sentido, o contexto histórico de desigualdades, violências e submissões às quais a população negra encontra-se submetida, expõe o seu lugar nas mais elevadas taxas de desemprego, informalidade, da maioria no trabalho precarizado e recebendo os piores salários. Os processos de transformação tecnológica, associados à precarização dos vínculos trabalhistas, portanto, se traduzem no formato moderno de escravização do povo racializado.
É preciso destacar também que os discursos veiculados nas mídias sociais salientam a aquiescência de parte da população brasileira no processo de naturalização da exploração da classe trabalhadora, apoiada na matriz de poder colonialista, a qual reflete as bases do racismo estrutural brasileiro. A referida palestra, ou o assim chamado “equívoco”, aponta para uma reedição do racismo epistêmico, quando dentro de um espaço acadêmico-científico, de uma universidade pública se pretende discutir cientificamente a utilização da escravidão como recurso para o enriquecimento dos grupos dominantes. As transformações econômicas necessárias pedem sustentabilidade e desenvolvimento social a partir de bases colaborativas e equitativas, que rompam com o status quo e das mentalidades colonialistas. Trabalho em condição análoga à escravidão é crime e a promoção de atividades que incidam sobre a sua afirmação e fortalecimento deve ser considerada um crime também.