Nunca foi tão rápido registar um agrotóxico no Brasil: o ritmo de liberação atual é o maior já documentado pelo Ministério da Agricultura, que divulga números desde 2005. A quantidade de pesticidas registrados vem aumentando significativamente nos últimos 4 anos. Mas, em 2019, o salto é ainda mais significativo – até 14 maio, foram aprovados 169 produtos, número que supera o total de 2015, marco da recente disparada. Ativistas do meio ambiente e da saúde manifestam preocupação, dizendo que mais veneno está sendo “empurrado” à revelia para a população.
Por outro lado, governo e indústria argumentam que o número de registros aumentou porque o sistema ficou mais eficiente, sem perder o rigor de avaliação, que a quantidade de substâncias novas aprovadas é mínima e que os químicos são seguros se forem usados corretamente.
“São produtos ‘genéricos’, cujas moléculas principais já estão à venda, que vão trazer diminuição de preço, para que os produtores possam ter viabilidade nos seus plantios”, disse ao G1 a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, no fim de abril. “Não se tem nenhuma insegurança na liberação desses produtos, que estavam lá numa fila enorme e que eram represados por problemas ideológicos”, completou a ministra, na abertura de uma feira em Uberaba, Minas Gerais.
No último dia 21, foi anunciada a liberação de mais 31 agrotóxicos, totalizando 169. Na conta não entram 28 registros publicados no “Diário Oficial da União” em janeiro, mas que tinham sido concedidos no fim de 2018. Mesmo assim, a quantidade aprovada neste ano, até 14 de maio, é 14% superior à do mesmo período no ano passado. E é maior do que a registrada em todo o ano de 2015, quando o crescimento começou a disparar. Ativistas estão preocupados.
“A população já deixou bem claro que não quer agrotóxicos e isso está sendo empurrado goela abaixo. Neste governo, o agrotóxico tem espaço garantido. É uma escolha política que gera mudanças nas instituições”, diz Marina Lacôrte, especialista em agricultura e alimentação do Greenpeace. Dos 169 agrotóxicos registrados neste ano, nenhum é inédito. Mais da metade (52%) são cópias de princípios ativos aprovados anteriormente. Outros 15% são produtos finais e 28% são seus “genéricos”. A minoria (5%) são produtos biológicos, à base de organismos vivos, como fungos e bactérias – alguns deles podem ser usados até em orgânicos.
Desse total, no entanto, 48% são classificados como alta ou extremamente tóxicos, conforme levantamento do Greenpeace.
Ainda segundo o Greenpeace, 25% dos produtos aprovados pelo governo neste ano não são permitidos na União Europeia. “O que a gente está vendo é que o Brasil acabou virando um depósito de agrotóxicos que são proibidos lá fora”, diz Marina Lacôrte.
Renato Alencar Porto, diretor da Anvisa, rebate a afirmação. “É verdade que tem produtos que estão proibidos em outros lugares do mundo e que não estão aqui? É verdade. Mas existem critérios que não têm nada a ver com risco toxicológico. Qual é a dificuldade de você proibir um agrotóxico em um país onde você não usa ele, por exemplo? Nenhuma.”
De todos os aprovados no ano, 8 são moléculas ou misturas de glifosato, herbicida associado a um tipo de câncer em processos milionários nos Estados Unidos e alvo de polêmica também no Brasil.
Para Leticia Lotufo, professora de farmacologia da Universidade de São Paulo (USP), é preciso avaliar caso a caso. “A toxicidade da mistura não necessariamente pode ser prevista pela dos componentes individuais”, afirma. Além disso, segundo ela, a formulação muda o comportamento do princípio ativo no ambiente. “O composto pode se tornar mais recalcitrante [permanece por mais tempo no meio ambiente], por exemplo”, explica Leticia. A Anvisa afirma que as análises respeitam um teto de toxicidade.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que junto com o Greenpeace e outras instituições forma o coletivo Chega de Agrotóxicos, faz um outro alerta. Segundo a médica da entidade, Ada Aguiar, as pesquisas no país só avaliam os efeitos de cada veneno isolado na saúde humana, mas o que acontece na vida real é o contato simultâneo com vários produtos. “Desconheço no Brasil estudos que avaliam a exposição múltipla, e estamos consumindo produtos que vêm banhados em uma calda tóxica”, afirma. De acordo com Ada, um estudo feito pela Universidade do Ceará entre 2007 e 2011 com mais de 500 trabalhadores rurais comprovou que 97% deles estavam expostos a de 4 a 30 agrotóxicos. “Isso é muito preocupante porque estamos tendo um ‘boom’ de doenças crônicas”, pondera.
Ambientalistas x Embrapa e indústria
Entidades em defesa do meio ambiente temem ainda que a liberação de produtos, mesmo que de substâncias previamente autorizadas, resulte em um uso mais intenso pelos agricultores, já que os preços tendem a cair, como citou a ministra Tereza Cristina.
O Brasil consumiu em 2017 (dados mais recentes) 539,9 mil toneladas de agrotóxicos, à base de 329 princípios ativos, de acordo com o Ibama.
Isso representou US$ 8,8 bilhões (cerca de R$ 35 bilhões no câmbio atual), segundo a associação das fabricantes, a Andef.
“O produtor não vai usar mais porque está mais barato. Os insumos, entre eles os agrotóxicos, estão entre os maiores custos para o produtor, todo mundo quer é reduzir o uso”, afirma Marcelo Morandi, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente.
“O que vai acontecer, eventualmente, é a substituição de produtos. A competição é salutar, tem que existir, mas agrega valor até um determinado ponto. Em produtos que já têm grande disposição no mercado, 4 novas marcas não vão alterar muito a competição de preços”, diz Mario Von Zuben, diretor executivo da Andef.
‘Pacote do veneno’
Apesar de comemorar a celeridade nas liberações, a indústria reclama que as reproduções de produtos já permitidos estão sendo priorizadas em detrimento de novos, que podem ser menos tóxicos que os antigos.
A lista de agrotóxicos aguardando liberação no Brasil tem hoje cerca de 1.000 pedidos. Entre eles, 33 são moléculas inéditas.
“Isso [o aumento da velocidade] é louvável, existia um represamento de registros que ficaram parados por muito tempo e foi dada vazão pelas administrações atuais. Mas o ponto que nos incomoda com essas aprovações de genéricos é o fato de que as novas moléculas estão ficando para trás”, diz Von Zuben, da Andef.
Segundo a Anvisa, 97% das petições para produtos formulados equivalentes (genéricos de misturas já aprovadas) são atendidas sem nenhuma exigência técnica. “A indústria não erra para pedir esse produto, porque ele é simplesmente uma cópia”, diz Renato Porto, diretor da agência. Desenvolver um princípio ativo inédito para agrotóxico leva de 10 a 11 anos e custa em torno de US$ 286 milhões, segundo a Andef.
Liberar o uso dessas substâncias novas demora de 6 a 8 anos no Brasil, tempo que a indústria e representantes do agronegócio querem reduzir para 2, com garantia legal. Essa é uma das demandas do projeto de lei 6.299/02, que ficou conhecido como “pacote do veneno”.
A ministra Tereza Cristina, então deputada pelo DEM-MS, foi a presidente da comissão especial que aprovou o projeto na Câmara dos Deputados, antes de ele seguir para a votação no plenário da casa, que ainda não tem data definida. Para o Greenpeace, a aceleração do ritmo de aprovações é, de certa forma, uma maneira colocar o PL em prática sem mudar a lei.
“O que a gente vê é exatamente o pacote do veneno que saiu da pauta legislativa e está sendo colocado em prática pelo novo governo. A estratégia é a mesma: colocar mais veneno no dia a dia das pessoas. A diferença é que antes havia uma discussão, agora está sendo empurrado à revelia mesmo”, diz Marina Lacôrte. De 2002 a 2019, a Anvisa barrou o registro de 15% dos princípios ativos novos enviados para análise e de 11% dos produtos finais inéditos. Periodicamente, o órgão revisa a segurança de substâncias que já estão no mercado. Desde 2006, 16 foram reavaliadas, das quais 12 foram proibidas e 4 mantidas, sendo 3 com restrições.
Apesar de a ministra Tereza Cristina ter citado problemas ideológicos que atrasaram a liberação de agrotóxicos no passado, Renato Porto, da Anvisa, nega pressão por parte do governo para acelerar os trabalhos. “Nunca tive nenhuma pressão para tratar de nenhum agrotóxico. O que eu vi é: a Anvisa precisa ser mais eficiente, e é verdade”, afirma. “Parece que ninguém nunca cobrou essa eficiência do agrotóxico e agora está sendo cobrado também. Existe uma percepção pública hoje de que o agrotóxico precisa estar à disposição do agricultor, só que ele precisa ser controlado.”
“A gente não está surpresa. Nem Bolsonaro nem Tereza Cristina estão lá à toa, eles tiveram forte apoio da bancada ruralista”, diz Marina Lacôrte, do Greenpeace.