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Saúde da População negra: uma mortalidade que não pode mais ser invisível

Kalyne Menezes

Políticas Públicas em Saúde da População Negra foi o tema de discussão no 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão 2015. O assunto foi debatido pelos pesquisadores Maria do Carmo Sales Monteiro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Edna Maria de Araújo, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS/BA); por Altair dos Santos Lira, da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doenças Falciformes (Fenafal/BA) e pesquisador associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e Maria Inez Montagner, da Universidade de Brasília (UnB). A coordenação da mesa esteve a cargo de Rui Leandro da Silva, integrante do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde.

A discussão do tema começou com as considerações de Maria do Carmo acerca da necessidade de inclusão da temática do racismo na educação permanente. Segundo ela, o racismo institucional é um determinante social do processo saúde-doença. “O racismo perpetua a violação dos direitos, e as várias formas de inferiorizarão social associadas aprofundam e intensificam os efeitos concretos decorrentes da baixa inserção socioeconômica dessa população”, argumentou a pesquisadora.

Para Maria do Carmo, as pessoas ainda não estão convencidas de que o racismo é um determinante social, o que reflete no atendimento dos serviços de saúde da população negra. Conforme explicou, as desigualdades étnicas raciais aliadas a fatores políticos e econômicos servem de motor para potencializar “a vulnerabilidade de grupos sociais e determinam o processo de saúde, doença e morte”. A educação permanente, afirmou a pesquisadora, é fundamental para problematizar processos de trabalho para transformar a prática profissional. “É preciso encarar o preconceito e o racismo para enfrentá-los”, concluiu.

Edna de Araújo apresentou ao público da mesa-redonda um estudo comparativo entre os dados de mortalidade materna em mulheres negras no Brasil e nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, onde 12% da população é negra, a mortalidade materna é três vezes maior para mulheres negras devido ao grande número de gravidez com morbidades e ao difícil acesso aos serviços de saúde. No Brasil, do universo total da mortalidade materna, 54% dos registros reportam ao falecimento de mulheres negras. Causas obstétricas não especificadas estão em primeiro lugar, com 24,8%; seguidas de infecções; problemas circulatórios e endócrinos; transtornos mentais e complicações da gravidez, detalhou Edna, relacionando o alto índice à falta de acesso à Atenção Básica e falhas no acompanhamento pré-natal. O quadro torna-se ainda mais inaceitável devido ao grande contingente de jovens nesta estatística e, em boa parte, por óbitos decorrentes de causas evitáveis e que poderiam ser prevenidas. De acordo com a pesquisadora, a redução da mortalidade materna, uma das metas do milênio da ONU, está muito longe de ser alcançada, independentemente da economia e do desenvolvimento dos países. “Sempre morrem mais mulheres negras porque elas estão em piores condições”.

A pesquisadora explicou que as vulnerabilidades sociais aumentam índices de mortalidade materna entre mulheres negras e que fatores sociais – como violência doméstica, pobreza, condições precárias de trabalho e piores níveis de renda e escolaridade – possuem relação direta com as condições de saúde dessas mulheres, o que impacta a gravidez.  Edna Araújo questiona se os serviços de saúde estão preparados para atender as mulheres considerando os contextos sociais em que vivem e externou preocupação com o racismo institucional. “As pessoas dizem que não são racistas, mas praticam racismo todos os dias. Uma mulher negra, mesmo bem vestida, no imaginário profissional ela é uma qualquer, e isso se reflete no atendimento dos serviços de saúde”, completou.

Racismo e saúde: Uma das doenças negligenciadas cujo índice de manifestação na população é alto, principalmente entre os negros, é a anemia falciforme, tema da fala de Altair dos Santos Lira e que, segundo ele, é uma clara demonstração de como o racismo influencia na ciência, nos serviços e na construção de políticas públicas. “Há 105 anos já havia estudos sobre anemia falciforme, e até hoje muitos médicos, enfermeiros e outros profissionais ‘não a conhecem’. A doença falciforme não é desconhecida, o que há em relação à doença é a desinformação. Como durante um século eu produzo conhecimento não produzo assistência?”

Segundo Lira, a anemia falciforme é a doença genética comum no Brasil, com cerca de 200 mil casos por ano. A deformação nas hemácias traz sérias complicações de saúde, como dores, ulceras e implicações no sistema circulatório. “No Brasil temos cerca de um caso de Síndrome de Down para cada 15 mil habitantes, enquanto os registros mostram que um a cada mil brasileiros têm anemia falciforme. E só porque agora começou a ter políticas sobre isso? Por causa da pressão dos movimentos sociais, que cobraram a incorporação do teste de anemia falciforme na Rede Cegonha”, concluiu.

As questões que envolvem a doença falciforme são tão sérias que Maria Inez Montagner decidiu incorporar o debate do racismo institucional em suas aulas na UnB. O processo de sensibilização dos estudantes passou por palestras de diferentes grupos étnicos e sociais –  como ciganos, travestis e negros – para abordar como as diferenças sociais e estigmas interferem no acesso aos serviços de saúde. A partir dessas experiências, o núcleo de pesquisa do qual participa Maria Inez elaborou projetos voltados para o assunto, com atenção especial à anemia falciforme, organizando diversas ações entre a universidade e o governo do Distrito Federal.

“Não adianta informação acadêmica ficar restrita na universidade, ou a informação do campo não chegar à academia. É preciso diálogo e interação entre os dois”, ressaltou Maria Inez. A pesquisadora enfatizou a importância da luta contra a invisibilidade desta doença. “Muitas vezes a pessoa morre de complicações da anemia falciforme, então tem que exigir que seja colocado na certidão de óbito essa informação também”. Ela concluiu dizendo que “o papel da academia é ouvir e a partir disso produzir ações. A devolução do trabalho para comunidade gera mecanismos de empoderamento e de luta social”.

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