(atualizada em 07/01/2018)
Ao reorganizar a estrutura do governo federal em uma de suas primeiras deliberações como presidente, Jair Bolsonaro desarticulou uma importante arena da sociedade civil com o governo: o Conselho Nacional de Segurança Alimentar – Consea. Voltada ao monitoramento das políticas públicas e à colaboração nos temas do acesso à alimentação e da garantia da segurança alimentar e nutricional (SAN), a instância era diretamente vinculada ao gabinete da Presidência da República. Com a publicação da Medida Provisória 870/2019 no Diário Oficial Especial em 1º de janeiro, contudo, o Conselho foi sumariamente extinto.
Não é a primeira vez que se extingue o Consea em uma canetada. Criado em 1993 pelo então presidente Itamar Franco, uma das medidas iniciais da primeira gestão do governo Fernando Henrique Cardoso foi acabar com o Conselho dois anos após sua criação, dando espaço a um projeto político daquele governo, o Conselho da Comunidade Solidária, à época dirigido pela então primeira-dama Ruth Cardoso. O Consea voltou a ser organizado sob o governo Lula juntamente com o então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), em 2003. Com o fim do ministério, foi vinculado ao Palácio do Planalto por seu caráter interministerial.
Assim que foi noticiada a nova organização governamental, conselheiros e conselheiras da sociedade civil iniciaram conversações para entender a validade da medida e discutir estratégias de como garantir esse importante instrumento de acompanhamento e valorização de políticas reconhecidas e premiadas internacionalmente, como o programa de aquisição de alimentos (PAA), o programa Cisternas e a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), que regulamenta o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).
“Além de toda a comoção e consternação, os conselheiros entendem que a MP é motivo de grande preocupação, pois é uma desconstrução que vai muito além das dimensões da SAN”, diz Irio Luiz Conti, conselheiro nacional representante da Rede Brasileira de Pesquisadores em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), destacando que as demais alterações atingiram estruturas e atribuições no campo socioambiental, como as mudanças ocorridas na Funai e nos ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Cidadania que, juntamente com o novo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, afetam pautas e atuações dos movimentos sociais. “Gostaríamos de estar em outro cenário, no entanto, esse fronte é fundamental. Queremos que o efeito dessa MP seja minimizado ao máximo”, argumenta o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Faculdade Santo Ângelo (FASA).
Já a conselheira Christiane Gasparini Costa, representante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e técnica do Instituto Pólis, ressalta que o Consea não é apenas um órgão com pessoas e cargos, mas sim uma das mais efetivas políticas de participação social, um dos pilares da democracia. “O verdadeiro debate não está na existência em si, mas no que deixa de existir sem o Conselho. O Consea tem sua força baseada em duas premissas: monitorar programas existentes e colaborar com propostas ao governo. Nesse tempo, houve a criação de políticas reconhecidas mundialmente e que tiraram o Brasil do Mapa da Fome, da FAO; houve a ampliação e difusão da agroecologia e da agricultura familiar; o debate sobre os malefícios dos agrotóxicos ganhou maior espaço. Se existe uma política que houve forte participação da sociedade civil esta foi a da Segurança Alimentar e Nutricional. Acabando com a instância que monitora essas diretrizes quem sai perdendo é o conjunto da população – tanto pobres como classe média – e a imagem do país no exterior”.
Ambos os conselheiros também destacam o caráter integrado e federativo do Sisan que, assim como o SUS, é articulado nas três esferas. “À medida que se constitui um sistema, há uma correlação e interdependência entre União, estados e municípios. Se uma parte não funciona, as demais esferas são atingidas”, explica Irio Conti. “Com a extinção do nível federal, tanto as políticas como o funcionamento do sistema também ficam desmantelados”, reforça Christiane, também doutora em Saúde Pública pela FSP/USP. “Estávamos com todos os 27 conseas estaduais organizados e num momento de capilarização para os municípios, com capacitação e criação de diversos conselhos nas pequenas, médias e grandes cidades. Uma política só se constitui como sistema quando chega na ponta; esse é o teste real da política pública. O Consea Nacional é o grande protagonista dessa articulação. O que serão dessas questões?” questiona ela, que presidiu por três anos o Consea municipal de São Paulo. As mesas diretivas dos conseas estaduais, como a presidência do Consea Espírito Santo, também já estão se mobilizando junto aos governos, imprensa e movimentos.
A Abrasco foi uma das primeiras entidades a se manifestar publicamente e seguirá atenta e presente no conjunto das articulações para a garantia tanto da existência dessa instância de participação social como da efetivação das políticas públicas relacionadas à alimentação e nutrição. “A aprovação da Losan foi uma batalha travada por diversas entidades que historicamente atuam nas políticas desse campo interdisciplinar que é a e Soberania e Segurança Alimentar Nutricional, como a Saúde Coletiva, a Nutrição, as ciências ambientais e agrárias. O direito humano à alimentação adequada é irmão direto do direito à saúde; ambos se completam e precisam ser garantidos”, afirma Inês Rugani, conselheira nacional representante da Abrasco e integrante do Grupo Temático Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva (GT ANSC/Abrasco).
Confira os links de moções, cartas e notas técnicas já produzidas por diversas entidades:
Nota Abrasco em defesa do Direito Humano à Alimentação Adequada: Não à extinção do Consea!
Novo governo revoga o Consea – Nota das conselheiras e conselheiros da sociedade civil
FBSSAN contra a extinção do Consea – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Asbran repudia medida do governo que altera Losan – Associação Brasileira de Nutrição
Em defesa do CONSEA e da democracia – Nota do Sistema Conselhos Federal e Regionais de Nutricionistas – CFN e CENs
Nota Técnica sobre a extinção do CONSEA Nacional – Projeto REAJA
Segurança alimentar sob ameaça – Nota do Greenpeace
RENAS se posiciona sobre extinção do CONSEA – Nota da Rede Evangélica Nacional de Ação Social
Em defesa do Consea e da democracia – Nota da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar – IBFAN Brasil
Contra a Fome e em Defesa do Consea – Nota da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA
Manifesto pela não extinção do Consea – Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
Manifesto contra extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e pela garantia da Segurança Alimentar e Nutricional, do direito humano à alimentação adequada e da Soberania Alimentar – Teia de Articulação pelo Fortalecimento da Segurança Alimentar e Nutricional – Universidade Federal de Santa Catarina / TeiaSAN/UFSC