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Uma segunda alma para o SUS?

Maíra Mathias, da Revista Poli - EPSJV/Fiocruz

José Sestelo, pesquisador vinculado ao Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC-UFRJ) e vice-presidente da Abrasco, e Ialê Falleiros, professora e pesquisadora da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco foram ouvidos por Maíra Mathias, jornalista do site da EPSJV/Fiocruz e da Revista Poli, em matéria que mostra como as entidades criadas por empresários da saúde estão abrindo caminho para um Sistema Único totalmente integrado e gerido pelo setor privado. Leia abaixo na íntegra e confira aqui na publicação original.

“A gente tem um corpo em busca de uma alma e uma alma em busca de um corpo”, sentenciou Francisco Balestrin em uma noite de setembro. O assunto da entrevista não era religião nem magia, mas a recente investida de entidades compostas ou patrocinadas por empresários na apresentação de propostas de ‘fortalecimento’ do Sistema Único de Saúde (SUS). A tese defendida pelo presidente da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp) – primeira a se lançar na empreitada – é a de que os setores público e privado precisam construir uma rede integrada de cuidados contínuos. A integração, palavra-chave para Balestrin, não para por aí: pressupõe mais participação da iniciativa privada na gestão dos serviços, mas também na “definição do desenho, planejamento e execução” das políticas nacionais de saúde através de um “novo modelo de governança”.

A primeira alma do SUS – animada pela redemocratização brasileira, forjada nas propostas de movimentos populares e trabalhares que viam a saúde como direito garantido pelo Estado através de um sistema público universal, integral, equânime com participação social – teria, na visão dos empresários, demonstrado pouca eficiência ao longo de seus 28 anos de vida. Uma segunda alma seria necessária para o SUS. Resta a pergunta: é possível sobreviver à tamanha metamorfose?

Mirando na política: Essas e outras propostas estão no Livro Branco da Anahp. Editado em março de 2014 com o objetivo declarado de influenciar os programas dos candidatos às eleições naquele ano, e pegando carona nos “anseios manifestados pelos movimentos sociais” em junho de 2013, o Livro Branco inaugurou um novo modelo de atuação para os empresários. “Nós não podemos única e exclusivamente estar focados em reivindicações corporativistas. Existe a necessidade de as entidades se abrirem, assim como no exterior é habitual que associações e entidades funcionem como verdadeiras think tanks”, compara Balestrin, referindo-se ao nome que recebem organizações voltadas para a difusão de ideias na sociedade civil e na esfera governamental. E sublinha: “Deixam de ser entidades que têm interesses e passam a ter causas”.

Tendo por “causa” o fortalecimento do SUS através do estímulo à “coordenação e integração entre os setores público e privado”, o Livro Branco chegou às mãos de políticos, governantes, parlamentares. Aécio Neves e o falecido Eduardo Campos receberam o documento quando ainda eram pré-candidatos à Presidência, antes mesmo de a publicação ser lançada em cerimônia na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A seu tempo, Marina Silva, Dilma Rousseff e até o ‘Pastor’ Everaldo receberam o documento. A lista é longa e contém desde candidatos aos governos estaduais – como Geraldo Alckmin, Alexandre Padilha, Rodrigo Rollemberg – até autoridades da regulação, como o ex-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), André Logo. Spots de rádio com as propostas foram veiculados na rádio Jovem Pan.

“O Livro Branco saiu de uma pequena empresa espanhola de consultoria, a Antares Consulting, que se especializou em sanear as finanças de instituições de pequeno porte: hospitais, unidades assistenciais. E a Anahp contrata essa empresa para fazer um documento que se propõe a fazer recomendações para um sistema universal de saúde de um país com 200 milhões de habitantes. Tipo receita de bolo: faça assim, faça assado”, critica José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele tem se debruçado sobre essa nova estratégia do empresariamento na saúde inaugurada pelo Livro Branco. “O modus operandi é esse: eles apresentam para os políticos uma receita pronta em um formato de fácil apreensão. Também veiculam na mídia e a imprensa toma essas think tanks como fontes fidedignas. Não faz checagem, não coloca um contraponto científico”, critica.

A Anahp fez escola. Naquele mesmo ano, surgiu o Coalizão Saúde, um “movimento” – com manifesto e tudo – crítico ao modo como a saúde vinha sendo preterida nos debates do primeiro turno das eleições de 2014. Fundado em julho na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) – que compunha a lista das filiadas até ser substituída pela Fundação Faculdade de Medicina, entidade privada – o Coalizão reúne representantes de toda a cadeia produtiva da saúde. A variedade dos atuais 24 associados é grande: empresas como Johnson & Johnson, Qualicorp e Unimed Brasil figuram ao lado de entidades como a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) e das tradicionais Confederação Nacional de Saúde (CNS) e Confederação das Santas Casas, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB).

Desde meados do ano passado, o “movimento” virou Instituto Coalizão Saúde (Icos). As bandeiras, antes expostas em um ou outro artigo de opinião publicado no jornal Folha de S. Paulo, agora estão organizadas em seu próprio livro branco. Espécie de versão resumida do documento da Anahp – que é membro-fundador do Icos – o caderno ‘Proposta para o sistema de saúde brasileiro’ trabalha com a mesma premissa. “O setor privado é parceiro do SUS”, diz.

“O sistema público só pode funcionar de maneira efetiva se trouxer a eficiência do sistema privado” disse, por sua vez, o atual presidente do Icos em uma entrevista à Revista Brasileiros em 2012. À frente do Hospital Israelita Albert Einstein há 15 anos, Claudio Lottenberg divide a direção do Coalizão com Giovanni Cerri. Ambos participaram de gestões de José Serra na condição de secretários de saúde. Lottenberg no município, Cerri no estado de São Paulo. Tucanos de vasta plumagem, como Fernando Henrique Cardoso, foram convidados a conhecer o Instituto. “Neste momento, o papel da iniciativa privada torna–se mais importante. O setor da saúde tem muito a contribuir e não seria impróprio se, com a autoridade do seu conhecimento, opinasse em processos que levem à escolha de lideranças”, escreveram os porta-vozes do Icos num dos vários ‘auges’ da crise política brasileira, quando Dilma Rousseff nomeou Marcelo Castro para o Ministério da Saúde.

Partindo sempre das pesquisas de opinião que colocam a saúde no centro da frustração dos brasileiros e usando os números a seu favor – os textos do Icos valorizam a informação de que o ‘setor’ movimenta o equivalente a 9,2% do PIB, esquecendo-se de mencionar que 45% do gasto é público, financiado por impostos ––, o Coalizão Saúde se apresenta para governos e opinião pública como uma “oportunidade única”. Sendo assim, a “união de toda a cadeia produtiva” tem uma “agenda prioritária” com “soluções” para o “sistema de saúde público e privado” ou simplesmente “sistema de saúde brasileiro” – não mais SUS. Essas soluções passam necessariamente por fortalecer “os mecanismos de ação de livre mercado”. Nomeadamente: mais parcerias público-privadas (PPPs), mais Organizações Sociais (OSs), mais Parcerias para o Desenvolvimento de Produtos (PDPs). Mas também um novo modelo de governança que amplie “a participação dos prestadores privados de assistência à saúde na definição do desenho, planejamento e execução das Políticas Nacionais de Saúde” e “racionalize” a regulação considerada “excessiva e disfuncional”.

Essas propostas foram apresentadas em junho deste ano no Senado Federal em um seminário realizado em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação Médica Brasileira (AMB) e chegaram, sem alarde, ao Palácio do Planalto. Michel Temer recebeu os empresários da saúde no dia 23 de agosto, uma semana antes da votação do impeachment. Quem consultou a agenda oficial do presidente, no entanto, não teve a real dimensão do evento. Se no papel a reunião seria entre Temer, seu ministro da saúde, Ricardo Barros, e o presidente do Instituto Coalizão Saúde, na prática ela contou com a participação de outros 13 representantes da ‘cadeia produtiva da saúde’ ligados ao Icos. O governo divulgou fotos do encontro. As entidades noticiaram a pauta debatida na audiência, definida como “mais uma demonstração de que o Icos já se transformou em um dos principais players da saúde no Brasil” e divulgaram que o Instituto “terá encontros periódicos com o chefe do Poder Executivo” a fim de “contribuir efetivamente na construção de uma agenda de longo prazo para a saúde”. Uma vez sentadas à mesa com Michel Temer, as entidades não perderam a chance de – nas palavras de Solange Mendes, presidente da FenaSaúde – “compartilhar as preocupações”. “Busquei sensibilizar o presidente Temer quanto à necessidade de estabelecer uma política de governo a fim de garantir a nossa sustentabilidade”, afirmou ela.

“A aparelhagem estatal não se resume ao Executivo. Hoje eles estão aparecendo nessas reuniões para mostrar que têm muito poder. Mas o poder deles é justamente estar embrenhados em todos os cantos onde seja possível drenar recursos, influenciar políticas, participar das decisões e, cada vez mais, difundir ideias. Pode parecer que não, mas é muito importante vender a ideia de que o sistema de saúde é público-privado, pode ser harmônico em relação aos interesses público-privados… Isso vai contaminando de fato a opinião pública, e tornando essa ideia uma realidade”, analisa Ialê Falleiros, professora-pesquisadora da Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Procurado pela Poli, o Instituto Coalizão não respondeu ao pedido de entrevista.

Novilíngua empresarial: Como no livro de George Orwell em que a ascendente ordem política precisa forjar um idioma, a novilíngua, para suprimir antigos sentidos das palavras, os empresários da saúde se apropriam de conceitos e instrumentos do SUS deslocando seus significados. Na mesma matéria publicada pela FenaSaúde, Solange Mendes inclui a realização de uma Conferência Nacional de Saúde como medida “urgente” “para esclarecer a importância dos protocolos clínicos e regulamentos”. O Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde (CBEXs), criado às vésperas das eleições de 2016 e também presidido por Francisco Balestrin, propõe a criação de um “conselho de saúde” ligado ao gabinete dos prefeitos. Neste ‘admirável mundo novo’, no entanto, Conferência Nacional de Saúde e conselho de saúde não dizem respeito a estruturas do controle social em que usuários, trabalhadores, gestores e prestadores de serviços debatem as políticas de saúde e fiscalizam os governos.

O documento do CBEXs garante que “muitos especialistas estão dispostos a oferecer seus conhecimentos e a sua experiência ao governo municipal” e vai além ao dizer que essa dobradinha daria “mais legitimidade” às decisões do executivo municipal. “É como se fosse um conselho de administração de uma empresa que ajuda na gestão vendo as questões mais estratégicas, as questões que têm a ver com a transparência – accountabillity –, com a equidade, todas essas coisas. E com a responsabilidade social de um modo geral”, compara Balestrin. O presidente da Anahp e do CBEXs não acredita que a criação de mais conselhos de saúde rivalizaria, duplicaria ou mesmo embotaria a função dos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde existentes. “São conselhos diferentes: um é mais estratégico, o outro mais deliberativo. Os conselhos nacional, estaduais e municipais têm um desenho mais focado na deliberação”, diz.

Mas parece ser a fim de garantir mais poder de decisão ao setor privado que um novo modelo de governança era defendido já no Livro Branco na Anahp. E um dos instrumentos propostos em nível nacional era justamente a criação de um Conselho Executivo composto pelos “principais agentes” do sistema e com poder de “definir estratégias”, “fixar objetivos”, “aprovar políticas”, “acompanhar os planos operacionais e financeiros” e “monitorar a execução” desses planos. Balestrin – que é conselheiro do Icos – nega que a Coalizão Saúde planeje ser esse Conselho: “A Coalizão é reduzida. Do mesmo jeito que você não pode ter só representantes do setor público, não deve ter também só do setor privado senão fica caolho”.

José Sestelo chama atenção para outra proposta do CBEXs que avança várias casas no chamado ‘novo modelo de governança’. “O documento propõe que nos municípios os prestadores [de serviços ao SUS] – que em geral são privados – façam a gestão da rede assistencial de saúde. Da baixa, da média e da alta complexidade”, cita. “Se você olhar bem, eles estão tomando conta do Sistema. No plano ideológico, na estrutura, em tudo”, resume.

Isso porque, segundo o Colégio Brasileiro dos Executivos, gerir centralmente um sistema de saúde municipal traz “grandes dificuldades”. “Há demandas distintas entre os bairros com populações em contextos sociais e de saúde vastamente diferentes”, diz o texto, que usa a especificidade do território como argumento para a criação da figura da Organização de Gestão da Saúde (OGS). “Os prestadores de serviços de saúde costumam ser esteios de seus bairros, conhecendo as necessidades da população local e seu perfil epidemiológico, além de serem a principal referência do cidadão para o acesso à saúde. Nada mais razoável, portanto, do que compartilhar com estes prestadores, organizados em OGSs, a gestão da saúde das populações locais”.

Ao falar em OGS é difícil não traçar um paralelo com as conhecidas OSs que já estão espalhadas pelas cidades brasileiras fazendo a gestão de serviços diversos. A diferença, segundo Balestrin, é que a Organização Social é um modelo de terceirização da gestão, enquanto a OGS vai além: “O fato de você terceirizar a gestão nunca foi e nunca será integração público-privada, que é realmente compartilhamento de dados, informações, modelos de gestão. E, mais do que isso, integração dos modelos assistenciais”. De acordo com a proposta, a OGS teria um orçamento próprio para fazer essa integração. “Você precisa, na realidade, ter uma regionalização clara com o famoso sistema de hierarquização que nós tanto falamos, onde as unidades básicas se reportem às unidades de especialidade, aos hospitais secundários e aos hospitais terciários. O que a gente coloca é que hoje essa gestão está fora de controle. Então aquela unidade prestadora de serviço que fosse mais competente naquela região teria também um papel de ser a gestora das políticas públicas de saúde daquela região, cobrando os resultados assistenciais, econômico-financeiros, de produção”, afirma Balestrin. E quem seria esse prestador responsável por gerir não um serviço mas toda uma rede público-privada? “Normalmente aquelas instituições que são mais aparelhadas, mais estruturadas, com um conjunto maior de profissionais e recursos à disposição são exatamente os hospitais. Então, ao final, é possível que um hospital venha a ser a referência”, diz o presidente da Associação Nacional dos Hospitais Privados.

Sintonia: Muitas das propostas pinçadas nos documentos das think tanks e entidades empresariais parecem estar saindo do papel. Uma das pautas prioritárias do Coalizão – dar um fim à judicialização na saúde através de parcerias com o Poder Judiciário –, por exemplo, já andou: Ministério e Conselho Nacional de Justiça assinaram em agosto um termo de cooperação técnica para que juízes recebam estudos e pareceres que subsidiem suas decisões. Ao anunciar uma economia de R$ 1 bilhão no orçamento da pasta em evento da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos – membro do Icos –, Barros informou que mais da metade do dinheiro, R$ 513 milhões, iria para santas casas e hospitais filantrópicos.

A determinação de que todas as unidades básicas adotem o prontuário eletrônico até dezembro – a prioridade declarada do ministro é “informatização do SUS” – pode ser um passo para o desenvolvimento de um “plano de ação público-privado para a informatização, integração e interoperabilidade dos sistemas de informação”, proposta do Livro Branco da Anahp.

Algumas dessas ações ganharam ampla cobertura da mídia. É o caso da polêmica proposta de mudança nas regras da saúde suplementar para que as operadoras consigam colocar à venda planos mais baratos – e com cobertura reduzida –, os chamados planos ‘acessíveis’. Segundo José Sestelo, a oferta de um produto desse tipo só se explica pela sintonia entre governo e empresas desejosas de induzir a expansão do mercado. Ou, para usar as palavras da presidente da FenaSaúde, pelo desejo de “garantir a sustentabilidade” do setor. “Porque o mercado para a classe média já chegou ao seu limite. Aqueles que tinham que ter plano já têm. Então, a fronteira de expansão seriam os níveis mais baixos de renda. Só que o produto não é vendável, ninguém quer comprar porque é ruim. Só funciona se o governo ajudar. Daí a questão da articulação público-privada. O que eles pretendem é um encaixe conveniente que viabilize a expansão de um modelo de negócios que estaria fadado ao fracasso se fosse deixado sobre suas próprias pernas. Só se sustenta com a ajuda do governo”, diz Sestelo. A própria FenaSaúde – que representa o maior interessado nas mudanças – foi convidada pelo Ministério da Saúde para compor o grupo de trabalho que vai desenhar a flexibilização da legislação para criar o ‘plano acessível’.

Além de encampar essa proposta do setor, continua Sestelo, o governo tem ajudado ao estudar outras mudanças que, à primeira vista, não parecem relacionadas entre si. “A dupla porta é outra questão sobre a qual estão em cima. É assim: eles querem que o ressarcimento [pago pelas operadoras de planos de saúde ao SUS] seja feito no balcão do hospital público. É cliente de plano e usou o hospital público? A operadora paga ali mesmo. Parece uma coisa boa mas, na verdade, o que vai acontecer? O hospital público vai dar preferência ao cliente do plano. E o usuário do Sistema Único vai ser mais excluído – com relação à internação principalmente”. Mas como poderia ser feito esse pagamento direto? Segundo o professor, por meio de um contrato entre a empresa de plano de saúde e o hospital público para que seus clientes pudessem utilizar aqueles leitos e instalações no melhor estilo “rede integrada de cuidados contínuos” defendida pelas entidades. “No fundo, é fazer com que o hospital público seja uma unidade credenciada da saúde suplementar. São medidas que em um primeiro olhar não se articulam entre si, mas seguem uma lógica comum e têm coerência. Não são só os planos acessíveis que ganharam visibilidade. É um pacote de medidas que têm um objetivo: controlar efetivamente a gestão da rede. E os recursos”, nota Sestelo.

A quantidade de medidas e a rapidez com que os anúncios vêm se dando é, para o pesquisador, sinal de força e fragilidade. “O que acontece é que eles chegaram ao poder. Estão, como se diz, ‘à cavaleiro’. E ao mesmo tempo têm consciência da fragilidade e da falta de legitimidade do governo. Então é uma corrida contra o tempo para fazer tudo o mais rápido possível porque ninguém sabe o que virá”, diz Sestelo. “O SUS está sendo corroído por esse grupo que está querendo transformar a saúde num grande business. Temos princípios, diretrizes, práticas e mesmo uma estrutura física que, por mais que não seja suficiente, está sendo totalmente corroída”, analisa, por sua vez, Ialê Falleiros.

De volta para o futuro: Ialê estudou a organização dos empresários da saúde antes, durante e depois da Constituinte. Segundo a pesquisadora, foi exatamente a criação do Sistema Único que serviu como mola propulsora para o setor se organizar de maneira mais articulada. “Antes do SUS, a relação entre os empresários da saúde e os governos era muito mais direta”, conta ela, que explica que nem por isso eles deixavam de se organizar em grupos de interesse para questões específicas. “Já tinham associações – como a Federação Brasileira de Hospitais [FBH], a Confederação das Misericórdias [CMB] –, e já agiam por meio de sindicatos patronais. Os grupos médicos, que são os precursores dos planos de saúde, já eram representados pela Abrange [Associação Brasileira de Medicina de Grupo]. Mas esses grupos tinham interesses distintos, disputas internas. A partir da construção do SUS, eles perceberam que precisavam unir forças para se contrapor à proposta de universalização feita pela Reforma Sanitária, que vinha com tudo no contexto de redemocratização. Foram obrigados a elevar o seu grau de consciência e organização política, foram construindo essa ideia de cadeia produtiva. Não é à toa que no site do Coalizão Saúde aparece a imagem de uma corrente. Eles usam essa metáfora: são os elos da cadeia produtiva da saúde”, explica.

Na época, as entidades reunidas sob a liderança da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Fenaess), vinculada à Confederação Nacional do Comércio, travaram as disputas na Constituinte e conseguiram brechas importantes, como a definição de que a saúde é livre à iniciativa privada. Mas não ganharam todas. “Longe disso”, diz Ialê. Uma das pautas defendidas pela Fenaess era que os governos destinassem recursos públicos para o atendimento médico-hospitalar sem distinção entre setor público e privado e “nem entre os diversos segmentos desse”, leia-se: empresas lucrativas. Os empresários da saúde de então também queriam um “sistema nacional de saúde” – não o SUS – que integrasse setor público e privado. Uma ideia que, ao que tudo indica, viajou no tempo e está de volta para o futuro. “Não deixa de ser sintomática essa sigla, Icos. Só falta uma letra para dizer tudo: eles são os ‘rIcos’ da saúde. E estão articulados para chegar à mesa de negociações com esse novo governo e incidir na Política Nacional de Saúde com força para fazer valer os seus interesses”, diz Ialê.

Balestrin contemporiza: “O desenho que se tinha naquela ocasião era uma drenagem de recursos do setor público para o setor privado. Nós estamos promovendo a questão da gestão. Se o setor privado tem algumas coisas que possam ser apreendidas e utilizadas pelo setor público, é exatamente a experiência com a gestão organizada, estruturada, dentro de um desenho absolutamente focado em resultado”, diz, lamentando que o Brasil seja “um dos poucos países do mundo” com um sistema nacional de saúde baseado em duas lógicas. A causa dessa ‘dualidade’ para Balestrin está no que, em um artigo publicado em 2015 no jornal O Estado de S. Paulo, ele caracterizou como “ranço ideológico”. “Nos últimos anos, temos visto no país uma tentativa maniqueísta de partir a sociedade entre ‘nós’ e ‘eles’. O afastamento entre bem e mal, bom e ruim criou uma realidade ilusória em diversos setores. Na saúde, essa dualidade se materializa na ruptura entre público e privado”. Para Balestrin a gestão direta é ideológica, e ideológicos são os grupos que defendem um SUS público e estatal. Já as propostas dos empresários não têm qualquer viés ideológico: “Não existe uma perspectiva política que não seja a perspectiva cidadã”, diz.

“O privado não pode dar a tônica. Para início de conversa, a saúde ‘suplementar’ deveria ser convergente ao SUS, ter sua lógica definida pelo Sistema, não se contrapor a ele. O que vimos na prática foi o comércio de planos e seguros de saúde ser concorrencial ao SUS. E predatório. Entretanto se apresenta como ‘parceiro’. Essa mesma lógica é utilizada no Livro Branco. Eles dizem que querem a harmonia com o SUS, querem o público e o privado agindo juntos, integrados. Mas estão querendo inverter a relação: o SUS é que será complementar a eles”, observa Sestelo.

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