Em termos históricos, as vacinas podem ser consideradas a mais importante inovação de base tecnológica no campo da saúde humana. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) entre dois e três milhões de vidas são poupadas anualmente devido a sua utilização. É necessário, portanto, rejeitar liminarmente e combater os mitos e campanhas contra seu uso que hoje em dia se espalham pelo mundo.
O lançamento de uma nova vacina é precedido de exaustivas análises relativamente à sua segurança (capacidade de não fazer mal) e eficácia (capacidade de proteger em ambientes controlados de pesquisa). A avaliação desses dois critérios, feita no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), preside a autorização de uma vacina poder ser comercializada. Além disso, a incorporação de uma nova vacina nos serviços públicos deve estimar a sua efetividade, que é a capacidade de proteger a população-alvo em condições de campanha, muito menos controladas. Por exemplo, uma vacina pode ser muito eficaz em termos de proteção, mas a adesão à mesma, no caso da necessidade de duas ou três doses, pode prejudicar muito o seu uso em massa.
Um dos programas mais importantes do Sistema Único de Saúde (SUS) é o Programa Nacional de Imunizações (PNI), existente desde 1973 e responsável pela aquisição, logística e supervisão da aplicação de uma cesta que inclui um número expressivo de vacinas, majoritariamente produzidas por Biomanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz e pelo Instituto Butantan, vinculado ao governo do Estado de São Paulo. Uma das razões do sucesso do PNI tem sido a busca permanente de decisões apoiadas em critérios técnicos.
O Brasil vem sendo assolado há vários anos pela Dengue e a busca por uma vacina segura e efetiva é considerado um dos principais alvos técnicos para enfrentá-la. A esse respeito, vale lembrar que o Instituto Butantã está em fase avançada de desenvolvimento de uma vacina contra a doença.
A empresa multinacional francesa Sanofi desenvolveu uma vacina contra os quatro sorotipos de Dengue (Dengvaxia®), que obteve registro no Brasil em dezembro de 2015 e teve preço fixado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) em meados do ano seguinte. Em consequência, foi iniciada a sua comercialização no mercado privado brasileiro. Desde o seu lançamento, dúvidas foram levantadas sobre a efetividade do produto, em função da sua baixa eficácia, em torno a 65%, sobre a faixa etária restrita (9 a 45 anos) e sobre a adesão das pessoas às três doses, com seis meses de intervalo entre cada uma delas. Em função desses aspectos, o Comitê Técnico Assessor em Imunizações do Ministério da Saúde (CTAI) e o corpo técnico do PNI propuseram uma agenda de pesquisa que subsidiasse uma decisão a respeito da incorporação da vacina pelo PNI, tendo como ponto central a realização de um inquérito nacional de prevalência de anticorpos antidengue. O inquérito foi realizado pelo grupo do professor Marcelo Burattini, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e seus resultados foram apresentados ao CTAI e ao PNI em novembro passado. Até este momento, CTAI e PNI não decidiram pela incorporação da vacina.
A vacina provocou debates no âmbito da OMS, ocorridos em três grupos técnicos, em 2014, 2015 e 2017, dos quais participaram especialistas brasileiros. Além de outros aspectos, chamou a atenção dos peritos a evidência de que em indivíduos que não tinham anticorpos contra a Dengue no momento de serem vacinados, as chances de terem forma grave da doença, se picados por um mosquito infectado, eram maiores do que se não tivessem tomado a vacina. A última declaração da OMS sobre o assunto, lançada em 13 de dezembro passado, confirma as suspeitas já existentes nos grupos de trabalho anteriores e afirma que a vacina Dengvaxia® deve ser ministrada apenas em indivíduos previamente infectados com Dengue. No Brasil, a Anvisa acompanhou a OMS, modificando a bula do produto e recomendando que pessoas soronegativas (quem nunca teve contato com o vírus da dengue) não deveriam tomar a vacina.
A despeito da falta de definição das instâncias técnicas do Ministério da Saúde (MS), as altas autoridades da Secretaria de Saúde do Paraná (SES-PR) decidiram promover em setembro de 2016 uma campanha de vacinação em massa com a Dengvaxia®, repetida em março e em outubro de 2017. No total, a população-alvo das campanhas chegava a cerca de 500 mil pessoas e, neste momento, cerca de 300 mil já receberam ao menos uma dose da vacina.
Considerando as evidências nacionais e internacionais hoje disponíveis, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco – entende que se impõem as seguintes medidas:
1. Que a campanha paranaense seja interrompida no ponto em que ora se encontra.
2. Que o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde (PNI/MS) não incorpore a vacina Dengvaxia® à sua cesta de produtos.
3. Que o acompanhamento da população dos municípios do Paraná que participaram das campanhas seja realizado de forma rigorosa, com vistas a que cada caso suspeito de dengue seja devidamente notificado, em particular casos graves que resultem em internação hospitalar.
Além disso, a Abrasco considera indispensável que as autoridades de saúde federal e do Estado do Paraná esclareçam a população brasileira sobre as seguintes questões:
1. Em que evidências as autoridades paranaenses se basearam para iniciar uma vacinação em massa de um produto cuja utilização não foi recomendada pelo Ministério da Saúde por falta de evidências técnicas que sustentassem a sua utilização nessa condição?
2. O único país a incorporar a vacina para vacinação em massa realizada pelo sistema público foi Filipinas que, após tomar conhecimento do alerta da OMS, interrompeu a vacinação e está cogitando processar o fabricante. Quais medidas o governo do Paraná e o gestor federal do SUS pretendem adotar?
3. Tendo a Anvisa recomendado a não-vacinação de indivíduos sem anticorpos circulantes, quais as medidas tomadas pelas autoridades paranaenses e qual a atitude da Anvisa no sentido de fazer cumprir a sua recomendação?
4. Quais as medidas tomadas pelo Ministério da Saúde no sentido de desenvolver pesquisas capazes de esclarecer as lacunas de conhecimento sobre a vacina e tomar decisões sobre a sua utilização em campanhas de massa?
Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 2018
Assinaturas Institucionais:
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco
Assinaturas Individuais:
Gastão Wagner de Souza Campos – Presidente da Abrasco; Professor titular do Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (DSC/FCM/UNICAMP)
Luis Eugenio Portella de Souza – Coordenador do Comitê Assessor de Ciência e Tecnologia da Abrasco; Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (PPGSC/ISC/UFBA)
Hillegonda Maria Dutilh Novaes – Professora associada do Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMP/FM/USP); membro do Grupo de Trabalho SAGE sobre vacinas e vacinação contra a Dengue da OMS (2015-2016).
Maria da Glória Teixeira – Professora titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA); Membro do Grupo Técnico Consultivo da OMS sobre vacina contra Dengue no último estágio de desenvolvimento – 2012/2014; Integrante do Conselho Diretor da Abrasco
Reinaldo Guimarães – Médico sanitarista, professor aposentado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e ex-secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos do MS (2007-2010)