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Visões hospitalocêntricas e medicocêntricas sobre atenção ao parto ressucitam com criação da Rami, denuncia ReHuNa

A Rede Cegonha de atenção materna e infantil é a mais nova vítima do governo Bolsonaro em sua sanha de esfacelar o Sistema Único de Saúde. Por meio da Portaria GM/MS nº 715/2022 o Ministério da Saúde instituiu no último dia 4 a Rede de Atenção Materna e Infantil (Rami). Com o ato, o governo revoga mais de 30 anos de implementação de políticas públicas orientadas pela ciência e pela qualificação e humanização da atenção ao parto e atrela a nova rede ao Programa Previne Brasil. Um deliberado retrocesso científico, civilizatório e de gestão que “ressuscita uma visão hospitalocêntrica e medicocêntrica da assistência à saúde às custas de outras modalidades de atenção e do trabalho das equipes multiprofissionais”, aponta a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – ReHuNa em parecer técnico. Acesse o documento.

Conquistas sociais e científicas em mais de 40 anos: Lançada em 8 de março de 2011, a Rede Cegonha simbolizou uma mudança de paradigma na atenção à gestação e ao parto em nosso país, caracterizado historicamente como um modelo de assistência perinatal excessivamente intervencionista. O percentual de cesáreas realizadas no SUS alcançou a marca de 47,5 % do total dos nascimentos – o maior no intervalo de uma década. Contados os números das redes pública e privada, dados prelimeraes referem 57,1% de nascimento dos brasileiros pela via cirúrgica.

Para Daphne Rattner, Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da ReHuNa, ainda que Rede Cegonha não tenha conseguido influenciar a redução da taxa de cesáreas, as mudanças produzidas nas práticas profissionais são cientificamente comprovadas.

“A Rede Cegonha é a convergência de todas as políticas e programas anteriores voltados a essa população, carrega as reivindicações do movimento das mulheres da década de 1980 e incorporou dispositivos da Política Nacional de Humanização. Com a avaliação realizada em 606 maternidades pela pesquisa Avanços e desafios da assistência ao parto e nascimento no SUS: o papel da Rede Cegonha1(2017) e corroborada com os dados da pesquisa “Nascer no Brasil”2, podemos constatar que está havendo uma mudança, que é muito lenta, mas esperamos que seja consistente. Ao menos até o presente momento”, ressalta Rattner.

Tais mudanças são induzidas pelas diretrizes de formação permanente da Rede, como o programa Aprimoramento e Inovação no Cuidado e Ensino de Obstetrícia e Neonatologia (Apice ON), realizado em 96 hospitais de ensino entre agosto de 2017 e junho de 2020. “Com a formação, o processo de mudança de modelo pode ser ser agilizado, pois mais profissionais sairão das faculdades com habilitação em boas práticas de cuidado”, diz a pesquisadora.

Retrocesso, volver: O fato da Rede Cegonha ter produzido impactos tão profundos no cuidado à gestação e ao parto, incluindo os promovidos pela Estratégia Saúde da Família na Atenção Básica, não passaria incólume ao retrocesso do governo Bolsonaro.

Os contornos hospitalocêntricos e medicocêntricos da guinada autoritária e conservadora da política de saúde materna e infantil tiveram reforço em fevereiro deste ano, com a inclusão de médicos pediatras, ginecologistas e obstetras na Atenção Primária por meio do programa “Cuida Mais Brasil”. A iniciativa foi monocrática da gestão federal, sem ter passado pela Câmara Tripartite.

Apesar de pintada como “um passo para fortalecimento do atendimento materno-infantil no SUS”, CONASS e Conasems questionaram a inclusão e haviam negociado com o MS por uma maior discussão sobre a medida.  Em menos de dois meses, contudo, os gestores e profissionais foram surpreendidos pela publicação dessa nova portaria. Em nota, os conselhos “lamentam o desrespeito ao comando legal do SUS com a publicação de uma normativa de forma descolada da realidade dos territórios”, indicando pela revogação da portaria. 

Golpe conservador e ideológico: A junção desses dois instrumentos, para Daphne Rattner, é uma estratégia ideológica que confirma e visa reforçar o parto intervencionista, cada vez mais tecnológico e desumanizado.

“Inserir médicos especialistas na atenção primária é criticável não apenas por ser um desvio do modelo: não há suficientes atendimentos que demandem um especialista. Se o médico é treinado para diagnósticos e tratamentos, a Enfermagem tem como sua principal atribuição o cuidado. Então, se atendida por um médico em lugar de um enfermeiro, é possível que a clientela não tenha suas necessidades de cuidado atendidas. Na ideologia desses profissionais [da Medicina], não se concebe atendimentos em saúde que não sejam ‘liderados’ por médicos, isto é, unidades em que não seja do médico a chefia. Então, essa portaria vem também para forçar a mudança nos centros de parto normal – ou insere médico obstetra, ou fecha”, ressalta a pesquisadora.

Há outros elementos da portaria que reforçam tal visão, como detalha o parecer técnico da ReHuNa: subordinação de uma rede de cuidado em que há envolvimento da atenção hospitalar à Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps/MS); eliminação de serviços sem avaliação de sua efetividade; e definição de quinze indicadores para monitoramento descolados de uma visão de trabalho em rede e sem considerar a realidade de inúmeros municípios de menor porte do país. A portaria propõe que as mudanças sejam efetivadas em até 45 dias, com possibilidade de penalidades, como suspensão de repasse de recursos, caso as medidas não sejam implementadas nos prazos estipulados. 


[1] Artigo disponível em https://www.scielo.br/j/csc/a/4p3vFS9znjmjkKxrXBFdrMM/?lang=pt
[2] Artigo disponível em https://www.scielo.br/j/csp/a/gydTTxDCwvmPqTw9gTWFgGd/?lang=pt

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