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A força do dogmatismo religioso e as estratégias de enfrentamento da sociedade civil em debate no VI CBCSHS

A garantia da democracia, tanto pelo direito dos indivíduos sobre seus corpos, desejos e identidades, como pelas práticas e construções teórico-filosóficas em ciência, saúde e sociedade vêm sofrido, em grau cada vez maior, por conta das influências e interferências do pensamento religioso conservador nas políticas públicas e nas decisões do Estado – seja no Brasil como no mundo.

Para jogar luz sobre esses embates, Sonia Correa, co-coordenadora no Brasil do Observatório de Sexualidade e Política ligado à Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (SPW/Abia), Roger Raupp, juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e Jean Wyllys, deputado federal do PSOL/RJ proporcionaram aos congressistas do VI CBCSHS uma rica discussão na mesa, Teocracia e fundamentalismos na contemporaneidade: ameaças à cidadania e ao Estado laico. Um dos temas do o Grande Debate realizado na noite da sexta-feira, 15.

Kenneth Camargo, professor associado do IMS/UERJ e presidente do Congresso, abriu a mesa listando políticas públicas e ações governamentais com alguma interface ao Ministério da Saúde recentemente impactadas por essas ações, como a Lei do Nascituro, o projeto legislativo conhecido como “cura gay” e censuras em campanhas de HIV/Aids e de visibilidade às profissionais do sexo. “Para quem achar estranho esse tema num congresso de Saúde, essa é a principal área hoje que sofre com a força desse pensamento, o que traz reflexos para todos nós”.

As relações entre os direitos sexuais e o entendimento atual do dogmatismo religioso foram o tema central de Sônia Correa. Para a pesquisadora, o dogmatismo é um fenômeno global e contemporâneo em franco processo de secularização de viés conservador, apontando para o forte uso instrumental por atores do Estado e em crescente estruturação de sua dimensão econômica. “Para restaurar as ordens de sexo e gênero, as forças dogmáticas religiosas têm feito uso sistemático de argumentos seculares e da ciência”.

Para Sonia, não há respostas fáceis neste enfrentamento. Ao contrário, são múltiplas as frentes de embate. “Acho que seria produtivo a gente começar a pensar numa economia crítica do dogmatismo religioso, pois a sociologia da religião não pode continuar sem fazer a crítica da cultura capitalista no qual a religião está inserida”. Outros campos por ela listados como trincheiras do pensamento foram os estudos dos fluxos globais do dogmatismo religioso e o abismo entre os discursos e as práticas desses grupos. “O problema não é a religião, mas a religião autoritária ou totalitária e, sobretudo, sua fusão com o discurso conservador, que implementa a moralidade e a normatização sexual. Precisamos também investigar e dar mais espaço para a multivocalidade das comunidades religiosas”.

Uma leitura política similar, porém sob a ótica do direito, foi apresentada por Roger Raupp. “Em todas as esferas do judiciário brasileiro, o rito processual está tomado de argumentos religiosos, tanto internamente, pelos operadores do direito, como externamente, pelas pressões da sociedade”. Para justificar e ampliar essa compreensão, o magistrado apresentou os modelos da laicidade do Estado de Direito – o da neutralidade religiosa – que preconiza, dentre outras ações, a desconsideração do fato religioso sob risco das políticas públicas – e a pluriconfessional, que traz a diversidade religiosa para a esfera de atuação pública. Integrante do segundo modelo, de origem norte-americana, o Estado brasileiro têm sofrido, na visão do magistrado, com as ações dogmáticas de grupos que buscam reverter e burlar essa lógica em seus favores. “O Estado laico pluriconfessional não pode ser um Estado religioso plural, não pode ser alvo de fatiamento pelas associações religiosas de políticas públicas”, questionou.

Outras duas estratégias apontadas por Raupp dizem respeito à confusão buscada por esses setores sob argumentos de perseguição e liberdade religiosa. “Muitas vezes, setores religiosos que têm projetos políticos de tomada do poder usam o argumento de que são perseguidos no debate da sociedade. O que estão afastadas do debate são os argumentos de fé. Se não houver a liberdade de nós tomarmos qualquer posição que seja em torno do problema religioso, está comprometida a igualdade dos cidadãos na esfera pública e, consequentemente, a própria democracia.”

Jean Wyllys centrou sua fala na avaliação dos enfrentamentos legislativos travados no Congresso e as composições das correntes religiosas no Parlamento e no debate social. O deputado listou as oposições entre projetos de lei de políticas positivas que blindam suas temáticas à influência das religiões, como o de identidade de gênero, de definição de políticas públicas para a comunidade LGBT e da legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, bem como dos projetos que ferem a laicidade do Estado, como o conhecido projeto da cura gay e a proibição de sacrifícios de animais.

Ao identificar os setores que compõem esse campo nas casas legislativas, o deputado detalhou o funcionamento da autodenominada bancada “evangélica”, com um contingente de cerca de 70 parlamentares, entre deputados e senadores. “O fatiamento dos parlamentares no Congresso Nacional tem interesses religiosos, claramente representados pelos cristãos – não todos, mas de parte dos católicos e dos neo-pentecostais”, declarou.

O deputado analisou alguns motivos pelos quais representantes do Executivo e a mídia dão destaque a determinados religiosos. “A grande comunidade religiosa cristã não deveria ser representada apenas pela fala de Silas Malafaia. Há outras lideranças religiosas que compreendem o ponto de vista de outras religiões ou até de quem não tem visão religiosa alguma. Há outras lideranças religiosas com essas visões. Entretanto, não têm o grau de articulação nem econômico nem político que outros conquistaram”. Esse poderio, para Wyllys, vem principalmente dos arranjos e benefícios advindos do próprio Estado. “Isentas de tributos, essas igrejas se fortaleceram economicamente, puderam financiar campanhas e ocupar assembleias legislativas e o Congresso Nacional de maneira muito organizada”, definiu, frisando que da maneira que está configurado o Congresso Nacional, poucos avanços em direitos sexuais da e reprodutivos serão conquistados.

Mesmo neste cenário, Wyllys encerrou a mesa valorizando a ação política de todos que, tanto individualmente como coletivamente, levantam a bandeira da diversidade e da laicidade. “Percebo que há muitos nesse campo que, mesmo sem nada contra mim, me detestam pelo simples fato de eu ser um homossexual com fala. As pessoas não querem isso pelos preconceitos arraigados culturalmente e não há coragem da bancada majoritária de contrariar esses segmentos e perder seus privilégios. Não querem se quer fazer esse teste de enfrentar e fazer de fato um Brasil para todos”.

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