No início de novembro, o Rio Grande do Norte recebeu cerca de 800 participantes para a nona edição do Congresso Brasileiro de Toxicologia. Dentre eles estava a professora Leiliane Coelho André, vice-diretora do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, ligado à Faculdade de Farmácia da UFMG, que, após participação no encontro, redigiu uma Carta Aberta à Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) sobre o financiamento do mais recente congresso da entidade, pelas grandes empresas de agrotóxicos, incluindo a Dow Chemical e Basf.
Ainda sobre o assunto, a Abrasco ouviu, com exclusividade, a Sociedade Brasileira de Toxicologia.
Confira a íntegra dos dois documentos.
À Sociedade Brasileira de Toxicologia – SBTox
Considero que a SBTox, como sociedade científica, tem um importante papel no desenvolvimento da ciência e sua base de atuação é promover a nível nacional a cooperação científica e o progresso dos conhecimentos no campo da toxicologia em suas diversas áreas de atuação, divulgando os estudos científicos e contribuir na elaboração de uma política científica institucional e não empresarial.
Os conflitos de interesse e a ciência é um tema atual e presente em várias discussões no âmbito acadêmico e científico. Na Revista Brasileira de Psiquiatria, em seu Editorial do volume 28 de 2006, sobre Conflitos de interesse e suas repercussões na ciência, José Roberto Goldim, ressalta que “os editores de revistas científicas nacionais e internacionais têm solicitado que os autores apresentem os seus vínculos institucionais, de patrocínio e de consultoria – sejam eles com a indústria farmacêutica, de bebidas alcoólicas, de tabaco, ou outra qualquer”, no sentido de explicitar os conflitos de interesse presentes nos artigos publicados.
Nesta linha, reconheço que o 9th Congress of Toxicology in Developing Countries e o 19º Congresso Brasileiro de Toxicologia, realizados conjuntamente entre os dias07 a 10 de novembro de 2015, no Centro de Convenções da cidade de Natal/Rio Grande do Norte – Brasil, expos o real conflito de interesse. Ainda que isto seja factível, qualquer associação que explicite essa posição ideológica e metodológica faz com que seja colocada em risco a sua própria credibilidade científica. Este tema é de fundamental importância e deve receber, por parte de todos nós, sócios da SBTox, uma ampla e franca discussão sobre o papel da sociedade e seus patrocinadores. Na minha opinião, a valorização da identidade científica da sociedade requer a isenção de interesses explicitada pela associação às empresas que fabricam substâncias tóxicas.
Neste congresso, de uma forma ostensiva, a ANDEF ocupou a chamada “Agenda Científica” com palestras proferidas pela BASF, Syngenta, Bayer… cujas empresas respondem a processos judiciais por danos à saúde ou ao meio ambiente, mostrando uma clara e real intenção sobre papel que cumpre na sociedade, que é a do capital e não da saúde. Como o caso de Paulínea/SP, onde a produção de praguicidas pela Shell resultou num desastre ambiental que atingiu toda a comunidade devido à contaminação do solo e dos lençóis freáticos por compostos organoclorados, devido a inadequação do tratamento biológico dos dejetos industriais. Cuja fábrica em 2000 foi alienada para a BASF e em 2002, encerrada suas atividades e a planta industrial foi interditada pelo Ministério do Trabalho, devido à contaminação.
Como professora universitária e pesquisadora na área da Toxicologia, cujo o compromisso com o bem público e com a saúde coletiva e individual norteia minha atuação profissional, me senti extremamente constrangida por me incluir num grupo que defende estes interesses.
Da mesma forma me causou extremo desconforto ao assistir a palestra intitulada “Glyphosate is Not na Endocrine Disruptor: Regulatory Safety Studies & Tier 1EDSP Assays Provide a Weight of Evidence”, proferida pelo Sr. Steven Levine da Monsanto Company, empresa produtora do Glifosato e a quinta no ramo, cuja ganância não tem limites na competição do mercado de sementes e agrotóxicos juntamente com Syngenta, Basf, Bayer e Dow Agrosciences. A mesma empresa que tem em sua estratégia comercial o desenvolvimento de sementes geneticamente modificadas para resistir ao Roundup, enquanto as demais plantas definham sob o mesmo, demonstrando o seu verdadeiro interesse no tema. A palestra proferida vem na contramão das publicações da OMS e mais recentemente em março de 2015 quando a IARC passa a classificar o glifosato como provavelmente cancerígeno (Grupo 2A).
Quando explicitado os conflitos de interesse é necessário ressaltar que existem lados a serem defendidos. Temos de um lado os “agroquímicos” e de outro os “agrotóxicos”. O termo “agrotóxico” passou a ser utilizado, no Brasil, para denominar os venenos agrícolas, após grande mobilização da sociedade civil organizada. Mais do que uma simples mudança da terminologia, esse termo coloca em evidência a toxicidade desses produtos para o meio ambiente e a saúde humana. Apesar de praguicidas ser uma denominação técnica referente ao combate de pragas, a denominação agrotóxicos, tornou-se mais amplo e conhecido por ter sido aceito no âmbito da saúde pública. E o termo “agroquímico” substituiu o termo “defensivos agrícolas” utilizado anteriormente pela ANDEF, na busca de uma estratégia de maquiar o que é veneno ou tóxico.
Cabe a cada um escolher o lado. Eu me sinto desapontada pelo lado escolhido no Congresso de toxicologistas.
Leiliane Coelho André
Prezada Professora Leiliane,
Recebemos vossa mensagem com as críticas sobre a programação do Congresso de Toxicologia. Congressos e outros eventos têm como principal objetivo apresentar informações sobre o estado da arte da ciência que aborda. Assim foi feito neste congresso como nos demais congressos de Toxicologia promovidos pela Sociedade Brasileira de Toxicologia desde 1974.
O Congresso deste ano, à semelhança de anteriores, possibilitou que a academia além dos setores do governo e empresas trouxessem seus conhecimentos atuais sobre os temas escolhidos. Este é um procedimento adotado internacionalmente em todos os congressos. Caso os participantes não concordem com informações ou dados científicos apresentados, cabe aos mesmos questioná-los e discutilos publicamente durante o evento. A discussão é, mais do que as apresentações, a alma de qualquer evento científico. É desta forma que o avanço da ciência ocorre levando ao amadurecimento dos participantes sejam profissionais, alunos ou professores.
Importante mencionar que o programa do evento foi amplamente divulgado pelo site do Congresso e jamais fomos questionados por V.Sa. ou qualquer outra pessoa sobre a existência do conflito de interesse do qual V.Sa. acusa publicamente a SBTOX. Ressaltamos que tendo V.Sa. estado presente ao Congresso deveria ter se manifestado publicamente não apenas nas sessões que menciona em sua carta mas igual e principalmente durante a Assembleia Geral da Sociedade convocada por esta Diretoria e realizada nas dependências do Centro de Convenções de Natal (local do Congresso) no dia 8 de novembro conforme igualmente indicado no programa do Congresso publicado em seu site. Sem dúvida este seria o fórum ideal para seus questionamentos o que teria permitido uma discussão ampla entre os sócios bem como um posicionamento da organização e da diretoria da Sociedade.
Relativamente às situações específicas mencionadas em sua carta não reconhecemos que a organização do congresso defendeu os interesses de nenhuma empresa em particular. É papel da Sociedade permitir que todos os segmentos se manifestem e caso haja desvios nas informações que estas sejam criticadas publicamente durante o evento ou ainda diretamente aos expositores. Vale apenas como exemplo mencionar que um dos trabalhos científicos premiados entre os melhores no congresso indicou haver atividade de alteração endócrina do glifosato em contraponto a palestra mencionada por V.Sa. em sua carta, demonstrando a liberdade de expressão científica do congresso. Impedir a divulgação de uma informação científica em detrimento de outra seria sim exercer conflito de interesse o que definitivamente não ocorreu por parte da SBTOX e da Organização deste Congresso.
Desta forma sentimos imensamente que seus questionamentos não tenham sido feitos publicamente durante o evento. Finalmente colocamos nossa revista Applied Research in Toxicology à sua disposição para submeter uma revisão sobre o assunto de vossa preocupação para que a discussão se torne ampla e cientificamente fundamentada.
Atenciosamente,
Comissão Organizadora do 9º Congresso Brasileiro de Toxicologia / Sociedade Brasileira de Toxicologia