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“Os profissionais da área da saúde foram desafiados a assumir um papel político sobre os agrotóxicos”

Bruno C. Dias

Foto: Bruno C. Dias
Leonardo Melgarejo | Foto: Bruno C. Dias

Presidente da Associação gaucha de proteção ao ambiente natural (AGAPAN) e coordenador do GT agrotóxicos e transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e também autor do Dossiê Abrasco: Um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos à saúde, Leonardo Melgarejo é engenheiro agronômo formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1976), com mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000). Atualmente é engenheiro agrônomo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural,  (EMATER-RS). Perguntado sobre o papel do Dossiê Abrasco no debate social para a matéria Dossiê Abrasco no centro dos debates e ações no dia internacional de luta contra os agrotóxicos, Melgarejo destacou o papel da obra no processo de conscientização social: “Com o Dossiê a sociedade passou a se confrontar com um novo problema de saúde, que é de todos: o veneno está na mesa e chega a todas as mesas porque os alimentos se tornaram mercadorias que não merecem confiança” Leia abaixo a entrevista  na íntegra:

AbrascoEm poucas linhas, como avalia o fortalecimento do campo da agroecologia a partir do embate político, social e científico propiciado pelo Dossiê Abrasco e demais ações de articulação com a ciência/Saúde Coletiva?

Leonardo Melgarejo: A diferença é enorme. O tema da agroecologia, assim como seu oposto no campo da produção (o agronegócio, a agroquímica, os venenos agrícolas e suas implicações)  deixaram de ser percebidos como coisas distantes, afeitas à agricultura, restritos as áreas e populações rurais.  Com o Dossiê a sociedade passou a se confrontar com um novo problema de saúde, que é de todos: o veneno está na mesa e chega a todas as mesas porque os alimentos se tornaram mercadorias que não merecem confiança. As relações entre os sistemas de saúde e o agronegócio, entre a qualidade dos alimentos e os riscos de sua concepção como  mercadorias se tornaram óbvios. Os profissionais da área da saúde foram desafiados a assumir um papel político na busca de superar uma questão que já é estrutural: o modo de produção dominante causa danos para a saúde . E a sociedade deve ser informada disso,  para bem orientar suas decisões de compra e consumo. A sociedade deve ser informada, porque é vítima. Como consta no dossiê: “se temos a obrigação de suportar, temos o direito de saber”. Agora, sendo bem informada, a sociedade pode sinalizar ao governo sua insatisfação com o modelo de produção dominante e com as mercadorias que dali resultam. Com isso a agroecologia ganhou destaque entre os profissionais de saúde e,  na fala destes, adquiriu reconhecimento como algo necessário. Depois do Dossiê se multiplica o número de profissionais da saúde e da nutrição empenhados em ajudar  a conscientizar os brasileiros de que interessa a todos a adoção e a generalização da adoção dos princípios da agroecologia, por que com ela  poderemos evitar grande parte dos problemas de saúde e além disso alimentar toda a população, reduzir danos ambientais e ainda fortalecer a construção de um país soberano.

O Dossiê trouxe para a consciência coletiva esta verdade estonteante: o Agronegócio está prejudicando o Brasil. A busca de segurança e soberania alimentar e nutricional bem como a proteção do meio ambiente e o fortalecimento de nossa economia dependem da construção de outras alternativas, e o Dossiê mostra que a agroecologia é o melhor caminho. Enfim,  a obra revelou-se fundamental para que segmentos da sociedade até então desinformados a respeito dessa realidade passassem a entender que todos necessitamos da substituição do modelo de produção dominante por outro, que inclua alterações estruturais na posse e uso da terra e que adote os fundamentos da agroecologia.

Abrasco: Acredito que o debate social esteja contribuindo para derrubar mitos e avançar no cenário da produção agroecológica, barateando a produção de alimento, aumentando a oferta e melhorando os pontos de distribuição. Confere? Em termos práticos, o que avançamos, o que ainda é fundamental para avançar?

Leonardo Melgarejo: Sim! E este debate pode ser resumido como uma espécie de desanuviamento. Uma retirada de véus e maquiagens construídos a custa do sacrifício de muitos. O modelo de produção dominante, baseado no uso intensivo de agroquímicos não causa apenas o envenenamento gradativo de consumidores de todas as idades. Ele também esvazia o campo, destrói redes e articulações sociais necessárias para o desenvolvimento nacional. Os custos crescentes das lavouras transgênicas, viciadas em agrotóxicos, obrigam os empresários rurais a expandir as áreas cultivadas, destruindo matas e beiras de rios, e ocupando espaços destinados a produção de alimentos de verdade.  Além das crises climáticas, e da expulsão de agricultores pequenos, que não alcançam a escala necessária para se manter como produtores de grãos, este modelo causa o esvaziamento de escolas, inviabiliza linhas de coleta de leite, arruína pequenos mercados. Destrói o tecido social e esvazia o campo, operando no sentido oposto do desenvolvimento. A troco de que? Da exportação de grãos que pagam roylties e que para serem produzidos exigem importações de agrotóxicos? Da concentração de renda e poder nas mãos de meia dúzia de grandes empresas? Alias este poder é tamanho, e tão desencontrado dos interesses da sociedade que proibições de uso enunciadas pela ANVISA, do Ministério da Saúde perdem validade se a Ministra da Agricultura entender ser necessário salvar alguma lavoura atacada por insetos que não morrem comendo proteínas inseticidas contidas nas plantas transgênicas.

A agroecologia olha no sentido inverso. Reforma agrária, produção de alimentos limpos, tecnologias amigáveis em relação ao ambiente e com potencial para recuperação da fertilidade do solo, dos ciclos das águas, do tecido social no espaço rural.

Estamos avançando neste rumo e já somos grandes produtores de alimentos limpos. Mas ainda é muito pouco. Para acelerar este processo necessitamos de uma parcela do esforço institucional dedicado ao agronegócio. Precisamos de créditos, pesquisas, assistencia técnica, apoio a comercialização. Precisamos do PAA, do PLANAPO e do PRONARA.

Com dez  anos de verdadeira atenção do governo  e com a implementação destas políticas, a agroecologia permitirá recuperar 50 anos de destruição ambiental e de submissão dos interesses nacionais à usura de pequeno número de grandes transnacionais e de seus agentes locais.

Abrasco: O que a Agroecologia tem aprendido e deve continuar a aprender com os movimentos sociais e com a Saúde Coletiva com o debate dos agrotóxicos e para além dele?

Leonardo Melgarejo: A agroecologia não existe sem os movimentos sociais. Com todo respeito a organizações relevantes, que atuam há mais de quarenta anos neste campo, devo dizer que, a meu juízo, a Marcha das Margaridas é, atualmente, o principal motor da agroecologia. Isso porque se trata de uma luta pela vida, e as mulheres, as mães, são a linha de fronteira na luta pela sequencia da vida. E, certamente, sem feminismo não há agroecologia porque a agroecologia se funda em valores de reciprocidade, de harmonia, de cooperação. E o feminismo, com a agroecologia, resulta em movimento pela emancipação coletiva e pela consolidação de valores éticos, de respeito a vida e de igualdade na vida. É algo profundo, e que extrapola os limites dos indivíduos.

Se um agricultor ou agricultora, um médico ou médica, um ou uma nutricionista ou agrônomo/a, adquirir consciência de que deve mudar seu comportamento e adotar a agroecologia como elemento de orientação a suas praticas, a diferença será relevante para sua família, mas será inexpressiva para o Brasil. Agora se um movimento social, se uma organização social alcançar esta consciência, e incorporar a dimensão feminina  do cuidado à vida, da preocupação com o que segue além do desdobramento de suas ações, a transformação será enorme. Vejamos o caso dos agricultores sem terra da região metropolitana de Porto Alegre. No início a produção de arroz sem venenos alcançava dez hectares, sendo resultado da ação de meia dúzia de famílias. Depois que o MST adotou a agroecologia, aquelas famílias construíram seu itinerário técnico, aprenderam pela prática e a área foi se expandindo a tal ponto que nesta safra, passados pouco mais de 15 anos, colheram mais de 450 mil sacos de arroz. Produção sem veneno. Atividade sadia para o ambiente, os peixes, os pássaros e os consumidores. Alimento sadio também para os alunos que recebem aqueles grãos, na merenda escolar do município de são Paulo, em ambiente que dificilmente será conhecido pelas famílias daqueles produtores gaúchos. A garantia de saúde de filhos de desconhecidos se dá pela opção de produção, pela decisão política de adotar a agroecologia, e por um cuidado feminino e respeitoso com aqueles que nunca serão conhecidos cara a cara.

Este exemplo é importante para a agroecologia como ciência porque reforça concepções que a fundamentam: O processo produtivo envolve dimensões técnicas, mas decorre de opções políticas, depende do que queremos para nós levando em conta os outros, do rumo que adotamos na vida. Envolve também dimensões organizativas e necessita do conhecimento popular. Basta dizer que a lavoura de arroz irrigado é a cultura agrícola mais sofisticada do estado agrícola mais tradicional do país, e que, aqui, os “sem terra” a “melhoraram”. Eles mostraram que, usando os princípios da agroecologia, podemos produzir arroz sem veneno em todo o RS, para todos, e inclusive alimentar o Brasil. Basta que os demais agricultores gaúchos se conscientizem de que o melhor resultado está em controlar a própria semente, não estragar com venenos o solo e água, não depender dos interesses de multinacionais e assegurar oferta de alimentos limpos para as crianças de todos os lares. O lucro maior, pelo pequeno acréscimo de rendimento numa safra não compensa os valores éticos e morais que são abandonados quando se interpreta que veneno no prato dos outros não tem importância alguma.

Claro que todos precisam de incentivos e que os agricultores dependem de políticas de créditos, pesquisas, comercialização. Infelizmente os privilégios atribuídos ao agronegócio e as dificuldades impostas à agroecologia estimulam no sentido oposto: fomentam o comércio de venenos, o uso de venenos, a produção de alimentos envenenados.  Por outro lado, e agora felizmente, os profissionais da área da saúde coletiva entraram em campo. Estou seguro de que este foi o passo decisivo para uma mudança que já é inevitável. }

Expande-se a consciência de que a ligação entre os interesses do campo e da cidade se dá pela via da saúde, e consolida-se a percepção de que apenas preservando e recuperando o ambiente estenderemos ao futuro esta consciência e seus compromissos. Crescem, assim, as evidencias de que os interesses individuais devem se subordinar aos interesses coletivos, e de que apenas trabalhando em conjunto com as organizações e os movimentos sociais poderemos avançar na agroecologia e com ela construir,  um futuro menos injusto. Isso vale para todas as dimensões e saberes. Vale para a agroecologia, como vale para a medicina. Aliás, vale até para a igreja, e o Papa Francisco tem sido uma das vozes mais claras e das consciências mais agudas, gritando por isso.

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