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 NOTÍCIAS 

Espirro, pneumonia e juízo

Vilma Reis

Nesta segunda-feira, o jornal O Globo publicou artigo da professora Ligia Bahia sobre os rumos da saúde no ano novo que se aproxima, após um 2013 onde ‘a entrada em cena da saúde nas manifestações em junho, a imensa solidariedade com as manifestações dos professores pela melhoria da educação, o ativismo do Poder Judiciário e do Ministério Público na defesa do direito à saúde e o controle dos orçamentos por conselhos da sociedade civil e órgãos especializados’. Confira aqui o artigo na íntegra:

As mudanças na saúde em 2013 foram poucas e lentas. O ano se encerra com a aprovação pela população do trabalho dos médicos cubanos na atenção básica, aumento dos investimentos públicos para empresas de planos privados de saúde e perspectivas objetivas de redução do orçamento para o SUS. Tais variações não desataram os nós do sistema de saúde brasileiro, mas deixaram tudo mais claro. As ações que têm a intenção de melhorar a situação das cidades sem médicos calaram o discurso sobre o SUS maravilha. E o apoio aos empresários, via alivio fiscal e empréstimos, elucidou a fragilidade do setor assistencial privado. Não estava tudo ótimo nem no público, nem no privado. Tratou-se, então, de encontrar soluções diferenciadas para os problemas de atendimento dos classificados como pobres e como ricos.

Decretos, portarias e normas foram expedidos para ampliar o acesso dos pobres a médicos contratados e garantir coberturas, mediante estabelecimento de prazos para o agendamento de consultas, para quem está vinculado a planos de saúde. Para oficializar duas políticas de saúde em um país regido por uma Constituição que inscreve a saúde como direito universal e contratar médicos estrangeiros como estagiários-estudantes, contornando a legislação trabalhista e evitando simultaneamente o aumento do orçamento para a saúde, certamente, foi preciso muito esforço.

No entanto, mais médicos para atender no SUS e recursos para planos privados não são uma salvaguarda para o futuro. Os problemas insistem em reaparecer, é só conferir a pesquisa de opinião, divulgada em novembro, para verificar que 52% da população consideram que a saúde é a área de pior desempenho do governo. O saldo de políticas de agraciamento de um pouco mais para cada lado não é necessariamente positivo quando é necessário reduzir desigualdades. A insistência na emissão de políticas de saúde distintas para pobres ou ricos, no momento em que o fracasso dos sistemas segmentados é notório, é um erro.

Ninguém discute a legitimidade de governos eleitos. Tampouco se desconhece a oposição implícita ou explícita da parte conservadora da sociedade às políticas sociais efetivamente universais. O que suscita indagações é se a motivação de acentuar a fragmentação da já precária rede de serviços existente ocorre em razão do desprezo ao vasto conhecimento acumulado a respeito do funcionamento de sistemas de saúde, do improviso ou do puro pragmatismo?

Hoje em dia, as doenças prevalentes no Brasil já não são aquelas tradicionalmente associadas à pobreza. As principais causas de adoecimento e morte são câncer, diabetes, violências, doenças coronarianas e transtornos mentais. Contudo, a dengue e outras patologias infectocontagiosas não desapareceram. Essa condição de polarização, de convivência de padrões de morbidade que foram superados em países desenvolvidos, com desafios atuais como o aumento de acidentes e excesso de peso requer a oferta de ações de saúde em diferentes âmbitos setoriais e níveis de intervenção. Um sistema de saúde em país continental que conta com poucas ilhas de excelência e muitas unidades precárias não consegue corresponder às expectativas que justificam sua existência.

O aprofundamento da separação entre ricos e pobres não é a única nem a melhor opção para melhorar as condições de saúde. Defensores sérios e tenazes da orientação pelo mercado sabem e nunca esconderam que o objetivo de uma política que gradua o acesso segundo critérios socioeconômicos, e não clinicoepidemiológicos, é a livre escolha e não a redução das doenças. Um sistema de saúde que não prioriza a saúde é diferente daquele que visa a assegurar a liberdade de compra e venda de procedimentos médico-hospitalares. Por essa razão, a pergunta sobre as chances de misturar os dois tipos de sistemas não admite respostas teóricas. As experiências mundiais indicam que a inclinação igualitária faz muita diferença. A determinação da farmacêutica britânica GlaxoSmithKline, anunciada recentemente, de não pagar mais para médicos que promovem direta ou indiretamente seus produtos pode estimular uma mudança radical de duas práticas: a do pagamento de profissionais que promovem ou receitam determinados medicamentos e outros procedimentos e a remuneração de representantes de vendas de acordo com o número de prescrições médicas.

A saúde no mundo está mudando, a iniciativa da Glaxo não é apenas um despertar ético, tem sentido prático, porque representa um pedido de desculpas às autoridades chinesas que acusaram a empresa de pagar viagens para médicos participarem de conferências e palestras que nunca aconteceram. Mas significa também uma antecipação aos efeitos de uma cláusula do Obamacare que regulamenta o registro e a divulgação ampla pelo governo americano dos pagamentos realizados por empresas produtoras de insumos aos profissionais de saúde.

No Brasil, o debate sobre a saúde ainda está demarcado por oposições meramente ideológicas. Basta olhar para fatos positivos, como a redução da mortalidade infantil, e negativos, do não alcance da meta do milênio da mortalidade materna aos dramáticos represamentos de pacientes em unidades pré-hospitalares inadequadas para tratamento de casos graves, para entender que os sucessos foram obtidos com recursos e gestão, e os fracassos são uma consequência da retração do empenho para alterar a realidade do acesso e a má qualidade da assistência.

A metáfora do espirro e da pneumonia utilizada pela presidente Dilma para se referir à imunidade do Brasil frente à crise econômica dos EUA poderá ser lida de trás para a frente no que diz respeito à saúde. A reforma do sistema de saúde americano, que ao mobilizar opiniões divergentes abalou a popularidade do seu principal condutor, chega aqui como um respingo imperceptível. Tudo conspira para que a agenda da saúde em 2014 requente pequenas escaramuças sobre mais médicos cubanos e graúdas concordâncias acerca da concessão de isenções fiscais para as empresas e indústrias setoriais. Contudo, as eleições têm o mérito de dissolver convicções. As certezas fossilizadas sobre as benesses para o desenvolvimento não resistiram às evidências sobre os benefícios da aprovação da exigência de airbag e freios potentes, em um país que segue incentivando o transporte individual inseguro.

As chuvas, desabamentos, uma nova epidemia de dengue e a inexpugnabilidade das barreiras assistenciais são sinais de céu turvo. Porém, a entrada em cena da saúde nas manifestações em junho, a imensa solidariedade com as manifestações dos professores pela melhoria da educação, o ativismo do Poder Judiciário e do Ministério Público na defesa do direito à saúde e o controle dos orçamentos por conselhos da sociedade civil e órgãos especializados tornaram visíveis horizontes efetivamente democráticos. A previsão para 2014 é a de elevação da temperatura dos debates, com o deslocamento da massa de ar do pessimismo travestido em arte do possível. Juízo, sorte e muita energia para pensar e implementar um projeto saudável para o Brasil.

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