“Estou com uma inveja do Hermano [Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – ENSP/Fiocruz], pois ele conseguiu o que tentei quando diretor e não consegui: que foi te trazer aqui”. O aparte de Paulo Buss, diretor do Centro de Relações Internacionais da Fundação Oswaldo Cruz (CRIS-Fiocruz), expressou a honra que todos os presentes no auditório compartilhavam: a oportunidade de poder assistir à aula inaugural de Jairnilson Paim ministrada em 26 de março na unidade. A apresentação foi feita pela vice-diretora de Pós-Graduação da Escola, professora Tatiana Wargas (com Paim na foto abaixo). Com um título provocativo, Saúde Coletiva ou restauração da Saúde Pública?, o professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA) apresentou as primeiras considerações de seu novo estudo sobre os caminhos da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), da qual é parte singular da história.
“Quando o próprio título interroga uma Saúde Pública que questionávamos, quero dizer que as palavras não são inocentes. Elas trazem, de alguma maneira, histórias, projetos e compromissos distintos, com lutas das mais diversas.”, iniciou Paim, que contextualizou historicamente os elementos que permitiram o surgimento do campo epistemológico da Saúde Coletiva como pensamento contra-hegemônico ao modelo de Saúde Pública, instaurado nas décadas de 1940 e 50 e fortemente vinculado aos interesses do Departamento de Estado Norte-Americano e à Fundação Rockefeller.
Um caudal de histórias, produções científicas e proposições políticas iniciadas com os estudos de Juan Cesar Garcia, Cecília Donnangelo e Sergio Arouca e que passaram pela fundação do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (Cebes), em 1976, foram desaguar no Primeiro Encontro Nacional de cursos de Pós-Graduação da área, organizado em 1978 pelos seis programas então existentes, do qual surgiu a ideia da Abrasco, fundada no ano seguinte, em setembro de 1979.
Essa articulação, para Jairnilson, constituiu um projeto dupla face: a organização do campo de conhecimento então nomeado de Saúde Coletiva e as articulações pela Reforma Sanitária Brasileira, “um projeto orgânico de mudanças na academia, nos serviços e na sociedade, para além do sistema de saúde”, nas palavras do professor.
Revisão das origens
Passados 30 anos da fundação da Abrasco, em 2009, Paim iniciou uma investigação batizada de “A Reforma Sanitária Brasileira e os formuladores do campo da Saúde Coletiva“, articulada ao projeto O espaço da Saúde Coletiva, desenvolvido pelo Programa Integrado de Pesquisa em Planificação, Gestão e Avaliação em Saúde do ISC/UFBA, coordenado pela Profª. Lígia Maria Vieira da Silva, e em parceria com o Institut National de la Santé et de la Recherche Medicale (INSERM), da França.
O objetivo da investigação foi descobrir as visões contemporâneas dos fundadores da Associação sobre esse campo de práticas e saberes, e se ainda hoje persiste, na cabeça deles, alguma ideia de organicidade entre Saúde Coletiva, movimento pela Reforma Sanitária Brasileira e defesa do SUS. Para isso, Paim empreendeu um estudo de caso com análise documental e 26 entrevistas com os personagens desse processo. A teoria dos campos, de Bourdieu, e conceitos gramscianos como Revolução Passiva e Intelectual Orgânico, foram os ferramentais teóricos. Outra referência norteadora utilizada teve partida num estudo de Arouca que identificou visões apologéticas, tecnocratas e críticas na Medicina Preventiva sobre si mesma e em relação à sociedade. Paim utilizou esse conjunto de lentes articuladas para sua pesquisa.
“O que vemos é um caleidoscópio de olhares sobre a Saúde Coletiva e a Reforma Sanitária Brasileira. Uns destacam apenas aspectos teórico-conceituais, outros conseguem identificar diferentes momentos daquela reforma, inclusive certos desvios e equívocos. No entanto, poucos apontam as relações atuais entre Saúde Coletiva e RSB – apenas cinco dos 26 entrevistados, sendo que somente dois vislumbram uma organicidade entre ambas as temáticas. Apesar da produção intelectual de muitos desses entrevistados, eles geralmente pensam a Reforma numa perspectiva minimalista, setorial, institucional, restrita exclusivamente aos serviços do sistema de saúde, ou seja, o nosso SUS”, resumiu Paim.
Para o professor, tais respostas estão em consonância ao processo de consolidação da Saúde Coletiva como uma ciência da ordem, algo notado pela excessiva segmentação e especialização em áreas de concentração para atender os requisitos das agências de fomento e a aceitação sem críticas dos programas encaminhados pelo Ministério da Saúde.
“Parece, e esta é uma hipótese, que esta revolução passiva que foi possível identificar na Reforma Sanitária também invade o nosso pedaço. Estamos com algumas encruzilhadas: vamos ser um campo científico, um âmbito de práticas contra-hegemônicas e de sujeitos transformadores? Será que vamos reproduzir ad infinitum, uma saúde pública do Norte? Será que vamos continuar a conservar mudando e mudando para conservar? Será que estamos numa perspectiva de restaurar aquela Saúde Pública que a Medicina Preventiva e depois a Saúde Coletiva tanto criticaram? Enfim, ainda há algo novo em torno da Saúde Coletiva? São essas as questões que eu gostaria de deixar para a reflexão”, finalizou assm a aula inaugural.
Em posterior contato, Paim reafirmou seu posicionamento – o mesmo que vem construindo desde 1978 – e ainda crê nas possibilidades que tanto a Saúde Coletiva quanto a RSB podem oferecer ao país. “Como a Saúde Coletiva brasileira nasceu da crítica e foi orgânica à Reforma Sanitária, o risco de uma restauração para a Saúde Pública convencional deve ser um motivo de preocupação. Sua prática teórica e a sua prática política poderiam potencializar as lutas contra a mercantilização e medicalização da saúde e apoiar as forças que apostam na construção de um novo projeto de sociedade para o Brasil. Reafirmar essas ações e posições pode ser uma das maneiras de a Saúde Coletiva sair dessa encruzilhada em que se encontra, evitando que a revolução passiva penetre nos centros acadêmicos e impeça a constituição de sujeitos críticos e transformadores. Este pode ser um modo de a Saúde Coletiva não perder a crítica de seu DNA e ao mesmo tempo trazer o novo para a construção dos saberes e práticas”.
O estudo encontra-se em fase final de organização e ainda não há definição quanto sua forma de publicação. A íntegra da aula inaugural e a apresentação de Jairnilson Paim estão disponíveis na Biblioteca Multimídia da ENSP/Fiocruz. Acesse aqui.