*Lígia Bahia
"Saúde não dá voto, mas tira" é um dos bordões prediletos de candidatos a cargos eletivos majoritários. Entender, por alto, o que isso quer dizer é relativamente fácil. Investimentos na saúde resultam em baixo rendimento eleitoral porque a melhora das condições assistenciais estimula novas insatisfações. Difícil é botar uma campanha na rua que ignore as pesquisas indicativas das crescentes preocupações com saúde (9% em 2002, 26% em 2006 e 37% em 2012) e seu papel de campeã invicta das prioridades apontadas pelos brasileiros.
As tentativas de conciliar intuição e expertise política com evidências extraídas de investigações quantitativas e qualitativas, especialmente encomendadas para avaliar as expectativas dos eleitores, aproximam as propostas de diferentes candidatos para o futuro da saúde nas cidades. Nas eleições anteriores, os programas para saúde consistiram na reiteração de compromissos e demonstrações de atitudes enérgicas de vontade para fazer mais, melhor ou regulamentar o que já existia.
Imagens de situações tristes e realistas, expressando o profundo conhecimento do candidato sobre a insuficiência e precariedade de unidades de saúde, seguidas por anúncios da quantidade de novos hospitais e centros de especialidades médicas a serem construídos na próxima gestão, foram incorporadas por candidatos da situação e da oposição.
As diferenças nos programas eleitorais sobre saúde têm sido sutis. Candidatos à reeleição ou representantes de coalizões de continuidade exploraram cenas de ampliação ou reforma de estabelecimentos, medicamentos entregues, ambulâncias trafegando e depoimentos sobre mudanças objetivas nas condições de saúde e vida. Os de oposição enfocaram o mau estado físico das instalações e utilizaram declarações de profissionais de saúde insatisfeitos com condições de trabalho e denúncias de negação ou desrespeito no atendimento de moradores. Os dissentimentos sobre a política de saúde resumiram-se a acusações de ilícitos decorrentes das opções de contratação de empresas para construir ou administrar unidades de saúde.
A homogeneidade das propostas não é um mal em si. Pelo contrário, cada eleição estimula a ampliação da capacidade instalada e oferta de ações de saúde. Mas a ausência de debate sobre as causas dos problemas legitima velhas práticas de extração de dividendos clientelistas da saúde. As tradicionais estratégias para a eleição de novos vereadores na área da saúde tais como a realização de consultas ou determinados procedimentos cirúrgicos grátis ou a postulação de representação de uma categoria profissional não perderam validade.
Os eleitos, com base na dedicação assistencial, organizam centros sociais, usam sua influência política para marcar consultas e exames, conseguir medicamentos e internações na rede e expandem essas práticas, mediante a disputa pela nomeação de cargos de confiança nas unidades públicas de saúde. Já a atuação nas câmaras de vereadores de representantes de profissionais de saúde pauta-se pela inserção diferenciada da categoria, no que se refere a salários, jornada de trabalho e aposentadoria, no quadro de servidores públicos. Apesar da variedade de interesses, bancadas assistencialistas e corporativistas não costumam deter-se sobre o exame das contradições do sistema de saúde.
No reino do pragmatismo, os problemas de saúde têm sido objeto de mais pesquisas para detalhar o motivo das queixas. Uma vez que a frequência dos itens demora do atendimento e falta de médicos é mais elevada parte-se direto para uma solução normativa: preencher vazios sanitários com profissionais de saúde e botar para trabalhar quem está contratado. Tamanha determinação agrada tanto aos prefeitos movidos a indicadores positivos quanto a legisladores que orbitam em torno de realizações pontuais.
Nas inaugurações de unidades públicas de saúde que não funcionam plenamente todos se reúnem e deliberadamente evitam reconhecer as causas da demora e das faltas. A constatação de faltas incentiva mais promessas de suprir as carências mediante privatização ou estatização, cobrança do cumprimento dos contratos de trabalho ou aumento dos salários e interiorização dos profissionais. As perguntas sobre as razões dos problemas de saúde não são compatíveis com regras de um jogo eleitoral que favorece à continuidade do status quo.
A padronização dos discursos sobre a saúde de candidatos a prefeitos de cidades aplainou até diferenças entre as plataformas para cidades com mais de 80% de seus habitantes vinculados à assistência suplementar àquelas com populações que só contam com a rede do SUS. O mandato de quatro anos dedicados aos pobres desassistidos ou a reivindicações de profissionais de saúde passa ao largo, não apenas das soluções efetivas para a saúde, como também das demandas pela participação dos políticos eleitos em fóruns decisórios.
Prefeitos e vereadores não se referem aos defeitos e qualidades de planos privados de saúde, embora os tenham como referência para si, seus familiares e servidores públicos. Em tese, o setor privado de saúde escapa à jurisdição das cidades. Contudo, em tempos de crise financeira e disputa pelo destino dos recursos, o exercício do controle democrático sobre o fundo público é um contrapeso imprescindível às deliberações de concessão de generosos incentivos fiscais aos empresários e socialização de prejuízos.
Uma das áreas mais atingidas pela desoneração fiscal é a saúde. Deixar de arrecadar tributos significa, na prática, reduzir receitas e abster-se de executar, diretamente por meio de orçamentos governamentais, as políticas de saúde. A blindagem dessas operações do escrutínio político, sob alegação de sua circunscrição ao domínio técnico e nacional, concentra o poder de deliberar sobre as condições de vida e saúde em determinados órgãos do Poder Executivo. Encarar a saúde como assunto público nas próximas eleições auxilia a partilha do poder decisório sobre seus destinos e a inserção do tema no âmbito da política com P maiúsculo.
* Lígia Bahia, vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Artigo publicado no publicado no Jornal O Globo, no dia 23 de julho de 2012.