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Sucateamento na Atenção Básica: entrevista com Felipe Cardoso, médico de Família e Comunidade

Hara Flaeschen - sob a supervisão de Vilma Reis

Sequenciando a discussão sobre a revisão da Política Nacional de Atenção Básica, aprovada pela Comissão Intergestores Tripartite – CIT no dia 31 de agosto, a Abrasco entrevistou o médico de Família e Comunidade Felipe Monte Cardoso.  Felipe trabalha na Clínica da Família Ricardo Lucarelli, no Estácio, Rio de Janeiro e denuncia o sucateamento já estabelecido na estrutura da Atenção Básica, que deve se agravar com a alteração do documento.

A Abrasco se posicionou veementemente contra a reformulação da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB. Além da crítica direcionada à ausência de uma discussão horizontal e densa, com todos os grupos interessados na melhoria do SUS, existe uma preocupação com as consequências da reformulação das normas e diretrizes, como o desvio do financiamento que é destinado para a Estratégia de Saúde da Família e a mudança na função do Agente Comunitário de Saúde, profissional essencial da Atenção Básica – AB.

Confira:

Com o movimento de sucateamento do SUS, de maneira geral, como você já percebe o impacto direto no seu trabalho enquanto médico de família e comunidade? Por exemplo, falhas estruturais (de equipamentos, materiais…) ou superlotação, déficits na equipe?

Temos problemas estruturais. Vários dias trabalhamos sem água, porque a CEDAE não nos abastece. Além disso, é previsto que reduzam os dias de serviço de radiografia na clínica, que atualmente é diário, bem como a redução da capacidade de exames de ultrassonografia. Outra questão estrutural é que a prefeitura acena diminuir o horário de funcionamento. Muitas clínicas funcionam até 19h/20h para acolher a população que não pode vir em horário de expediente. Se  for confirmado, muitos , inseridos no mercado de trabalho, terão que escolher se cuidam da saúde ou se trabalham. É um cenário muito ruim, especialmente neste contexto de crise.

Também sofremos com déficit no quadro profissional: não temos uma equipe de referência dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), então, faltam fisioterapeutas ou professores de educação física, por exemplo. Existem  fortes rumores sobre demissões de Agentes Comunitários de Saúde, o que provocaria um retrocesso descomunal na promoção à saúde e no acesso de milhares de pessoas aos serviços. Posso afirmar categoricamente: se há um equipamento social que chega em qualquer ponto das comunidades do Rio é a saúde através do trabalho inestimável dos ACS. Ainda nesse sentido, também há intenção de cortes nas equipes de odontologia, o que mostra um descaso com a saúde integral da população.

Como você enxerga a crescente tendência de privatização da saúde, como a proposta de lei do Ministro Ricardo Barros para os planos de saúde populares ou as Organizações Sociais de Saúde (OSSs)?

A vocação da saúde em nosso país é ser pública. Privatizar significa retroceder décadas em termos de direito à saúde. A proposta tenebrosa dos “planos populares de saúde” prevê incentivos a empresas que proverão cuidados precários. Alguns só cobrem consultas de algumas especialidades médicas – nada sobre consultas com enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, que são procedimentos amplamente ofertados pelo SUS – e sem compromisso com a saúde integral das pessoas que pagarem por eles.

Milhões não terão acesso a serviço nenhum, pois a crise é profunda e as famílias mal tem dinheiro para comprar comida. Infelizmente, ser consumidor de plano privado ainda comporta certo status no Brasil, seja pelas falhas que o SUS ainda apresenta, seja pelo amplo trabalho de desinformação prestado pela imprensa e outros órgãos, que disseminam a equivocada ideia de que saúde de qualidade é privada. O exemplo dos Estados Unidos mostra que é mau negócio, para os cidadãos, tratar a saúde como mercadoria.

Precisamos repensar o estado de precariedade administrativa em que opera o SUS. As OS, bem como outros instrumentos de gestão de direito privado, mostraram agilidade em determinados aspectos, mas criam grande instabilidade. Vários colegas de trabalho pelo Brasil perderam férias e direitos [trabalhistas] por terem que se submeter a um novo contrato, com um novo empregador, para exercer a mesma função. As chamadas novas modalidades de gestão se somaram às outras tantas, transformando a coordenação do sistema, bem como a fiscalização das contas, em atividades difíceis de serem feitas na prática.

Quais são as consequências de medidas governamentais nesse sentido (Por exemplo, o congelamento de investimentos no SUS a partir de 2018)?

Já partimos de um patamar baixo de investimento em saúde. O Brasil gasta pouco per capita em saúde, e a maior parte deste gasto não é público. As medidas aprovadas pelo governo Temer são um crime contra a população, pois retirará o pouco que sustenta os esforços heroicos de quem constrói o SUS no dia a dia. Sinceramente, não consigo imaginar um cenário sem um sistema universal de saúde no Brasil. O SUS, a legislação trabalhista, a previdência, são direitos conquistados a duras penas e mantiveram  um mínimo de coesão social nesse oceano de desigualdade em que vivemos.  Após a destruição destes direitos estaremos frente a uma crise social gravíssima, provavelmente inédita em nossa história, em que a população urbana, amplamente majoritária no país, é submetida a um processo súbito de empobrecimento e perda de direitos. As tensões sociais que podem derivar deste processo são colossais, e já vemos os indícios dela em nosso cotidiano.

Falando concretamente: caso uma cidade como o Rio de Janeiro perca de forma substancial o financiamento para saúde, poderemos vivenciar novamente o cataclismo que foram as epidemias de Dengue antes da reforma da Atenção Primária à Saúde. Em 2016 houve uma epidemia de Dengue/Zika/Chikungunya, que só não foi pior graças ao acesso facilitado que as Clínicas da Família conseguem prover.Caso as equipes sejam desmanteladas, com redução de ACSs, com equipes de saúde da família incompletas ou sobrecarregadas, com uma população de referência acima do recomendado, o cenário é tenebroso.

As Clínicas de Família  mostram uma aproximação com a sociedade que se estende inclusive para o virtual, registrando o cotidiano nas redes sociais. Em 2015 uma foto postada pelo Centro Municipal de Saúde Marcolino Candau viralizou, um momento sensível entre você e um paciente bebê. Qual a importância da Atenção Básica, e dessa relação que representa com a comunidade,  no desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária? 

Você pegou no meu ponto fraco. Tenho quase 13 anos de SUS como médico. Mesmo assim, diariamente me comovo com as situações que vivemos. Cuidamos de todos os ciclos de vida, do pré-natal aos cuidados paliativos. Somos fiéis depositários dos choros, dos segredos, das angústias, das alegrias da população que nos acessa. Somos chamados para aniversários e casamentos. Ao produzir saúde em conjunto com a população das favelas e periferias, ajudamos a construir direitos sociais. Estas pessoas só recentemente puderam acessar serviços de saúde. Eu tenho uma alegria enorme ao subir o morro e encontrar com as pessoas que vimos na clínica. Muitos ainda se espantam: “nunca vi um médico subir o morro!”. E os resultados são perceptíveis: menos pessoas são internadas, menos exames desnecessários são solicitados, menos pessoas adoecem. Podemos ressaltar os impactos positivos do SUS e da Estratégia de Saúde da Família como redução da mortalidade infantil, da mortalidade materna, da mortalidade por AIDS, das mortes precoces por doenças cardiovasculares.

Vivemos um momento de resistência. Desde a criação do SUS, produzir saúde neste país sempre significou trabalho duro. O contexto que vivemos aumenta nossa responsabilidade. Quando passar este ciclo, temos de resgatar o nosso projeto de saúde, de quem pensa no bem-estar de toda a sociedade. Saúde então não será sinônimo apenas de serviços de saúde, mas de empoderamento dos usuários, com disseminação de informação em saúde de qualidade e uma vida decente.

Por fim, o médico, que também é professor do Departamento de Medicina da Família e Comunidade da UFRJ e preceptor da Residência de Medicina da Família e Comunidade do município do Rio de Janeiro, destacou a significância de formar profissionais sensíveis às necessidades de saúde da população: “Dedico minhas horas a formar médicos engajados, que participem de equipes multiprofissionais e sejam capazes de dividir responsabilidades com usuários e famílias nos cuidados em saúde. Posso lhe dizer que, embora o caminho seja longo, estes primeiros passos tem sido muito gratificantes.  Trabalhar na Estratégia de Saúde da Família e na Universidade Pública é participar da construção da cidadania no Brasil. É estar ao lado do povo, trabalhando para derrubar o muro que divide nosso país em brasileiros de primeira e segunda classe”.

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