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Relembre entrevista de Adib Jatene no Rodaviva

Comunicação Abrasco

Falecido na última sexta-feira, 14 de novembro, aos 85 anos, Adib Domingos Jatene marcou a história da saúde brasileira pela clareza e coragem no enfrentamento do subfinanciamento da saúde, que vivenciou de perto quando foi ministro da pasta por dois períodos (por oito meses, em 1992, no governo Fernando Collor; e por 22 meses, entre 1995-1996, no governo Fernando Henrique Cardoso).

Como forma de prestar uma homenagem a Jatene, publicamos na íntegra a entrevista concedida pelo ex-ministro ao programa Roda Vida, em 1998, na qual ele aborda, entre outros pontos, como a Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira – CPMF -, criada por Jatene em sua primeira passagem pelo ministério, foi instituída e se foi sem contemplar a Saúde, para a qual havia sido pensada. O tributo foi cobrado de 1993 até 2008.

Segundo Armando Raggio, médico sanitarista e ex-secretário municipal de saúde de Sorocaba (SP), a entrevista é “uma peça exemplar do que passam os executivos da saúde pública em relação aos recursos sempre escassos ou de, como certas vezes, não conseguem alcançar o produto do próprio esforço político administrativo para financiar as atividades pelas quais são responsabilizados”. Confira abaixo na íntegra ou veja diretamente no site, com acesso para a gravação.

[programa ao vivo]

Matinas Suzuki: Boa noite, os temas ligados à saúde voltaram ao noticiário. Para conversar sobre eles está no centro do Roda Viva desta noite um dos pioneiros dos transplantes no Brasil e um dos médicos mais respeitados do país, o ex-ministro e cardiologista Adib Domingos Jatene.

[Comentarista]: Foi nesse conturbado endereço em Brasília que o doutor Adib Jatene culminou uma carreira pública iniciada em São Paulo como secretário de Saúde estadual durante o governo Paulo Maluf [governador de São Paulo entre 1979 e 1982]. Com a fama de administrador eficiente e isento, ele foi ministro da Saúde duas vezes: primeiro no governo Collor [(1990-1992)] e depois no governo Fernando Henrique [(1995-2002)]. A primeira vez foi tranqüila, já a segunda foi agitada. Insistindo na busca de mais verbas para o setor da saúde, o ministro se indispôs com a equipe econômica e depois com o próprio governo. Acabou batalhando no Congresso pela aprovação da CPMF – a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – que traria recursos novos para saúde. A contribuição foi aprovada, mas o ministro não viu o dinheiro chegar e se demitiu antes. Voltou para seu velho e querido endereço, o Instituto do Coração de São Paulo. Discípulo do doutor Zerbini [Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993) ficou conhecido internacionalmente por ter realizado o primeiro transplante de coração no Brasil em 1968], pioneiro dos transplantes de coração no Brasil, Adib Jatene se transformou em um dos mais reconhecidos cirurgiões cardíacos do Brasil e do mundo. Conhecendo de perto a saúde pública brasileira e o agitado dia-a-dia hospitalar, o doutor Jatene tem vivido intensamente a realidade dos transplantes no país, uma realidade que ganhou nova face a partir deste mês de janeiro com a entrada em vigor da lei do doador presumido: qualquer brasileiro agora é um doador de órgãos após a morte, a menos que manifeste o contrário em vida. A lei que trouxe esperanças para milhares de pessoas que estão na fila dos transplantes também trouxe polêmica entre os juristas, médicos e entre a própria população. Desinformação e dúvidas levaram muita gente aos postos da Polícia Civil para registrar a condição de não doador nos documentos de identidade, ampliando a discussão que a nova lei acabou levantando na questão dos transplantes de órgãos.

Matinas Suzuki: Bem, para conversar com o doutor Adib Jatene nós temos aqui esta noite vários doadores ilustres. Um deles, doutor Júlio Abramczyk, redator médico da Folha de S.Paulo; o Waldir Mesquita presidente do Conselho Federal de Medicina; a jornalista Mônica Teixeira; o Randas Vilela Batista, cirurgião do hospital Angelina Caron, de Curitiba. Doutor Randas é o cardiologista que se tornou celebridade internacional como inventor da cirurgia que tira um pedaço do coração para que ele volte a bombear sangue com força; o jornalista Pablo Pereira, do jornal o Estado de S. Paulo; e o doutor William Nahas, chefe da equipe cirúrgica de transplante renal do Hospital das Clínicas de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília […] Boa noite, doutor Adib Jatene.

Adib Jatene: Boa noite, Matinas.

Matinas Suzuki: Muito obrigado mais uma vez por estar aqui no Roda Viva colaborando com a gente. Doutor Jatene, eu sei que nós vamos falar muito sobre doações, transplantes e essa coisa toda, mas também eu acho que nós estamos com outros temas ligados à saúde e o senhor, não só como um excelente médico, mas também como ex-ministro duas vezes, pode nos ajudar a entender algumas coisas. Uma delas é essa notícia publicada pelo jornal Folha de S.Paulo: “Dengue quadruplica no governo Fernando Henrique Cardoso. Foram registrados 226.902 casos da doença, número recorde em 1997”. Como um país como o Brasil pode ainda ter um problema desse tipo?

Adib Jatene: Olha, a dengue é um problema muito sério. Quando o presidente me convidou [para ser ministro da Saúde] eu disse a ele que nós precisaríamos de três coisas principais, entre tantas, que era reduzir a mortalidade infantil à metade, erradicar a dengue e reduzir a malária. Eram os três problemas mais agudos, a dengue era o mais complicado porque o Aedes aegypti que transmite a dengue é o mesmo que transmite a febre amarela. Por isso nós fizemos um grande programa envolvendo a comunidade cientifica, envolvendo todos os técnicos, universidades etc para fazer uma proposta de erradicação da dengue no Brasil e convencer a Organização Pan-Americana a fazer o mesmo em todos os países da America Latina. Isso foi coordenado pela doutora Fabíola [de Aguiar Nunes], que era coordenadora do Conselho Nacional de Saúde e esse projeto foi apresentado ao presidente em uma reunião com nove ministros e o presidente aprovou o projeto que deveria ser deflagrado em março do ano passado e era para fazer, simultaneamente, nos dois mil e poucos municípios em que tinha havido ocorrência do Aedes aegypti, na mesma data, em todos esses municípios. Para isso, havia necessidade de mobilização de recursos de pessoal, era toda uma estratégia que estava montada. Infelizmente, isso não pode ser realizado, em parte por deficiência de recursos e em parte porque, na mudança do ministério, a estratégia foi modificada e algumas pessoas que eram chave nesse programa, inclusive, deixaram o governo, e a conseqüência é o que nós estamos pretendendo evitar. Eu disse, em uma das frases da minha carta, quando eu saí do governo: “permita-me, Vossa Excelência, que eu o alerte sobre os problemas que podem acontecer com o desfinanciamento da saúde”.

Mônica Teixeira: Ministro, o que aconteceu entre o final da sua gestão e o começo da gestão do doutor Carlos Albuquerque [(1940- 2004) foi ministro da Saúde entre 1996 e 1998]? O que houve dentro do Ministério da Saúde? Porque, olhando de fora, me parece que houve uma enorme briga entre as duas equipes.

Adib Jatene: Não, não houve…

Mônica Teixeira: Entre a equipe que estava saindo e a equipe que estava entrando?

Adib Jatene: Não, não houve nenhuma briga, o que aconteceu…

Mônica Teixeira: Mas foi pacífico, não é?

Adib Jatene: O que aconteceu foi o seguinte: quando eu entrei em 1995, eu verifiquei que, dentro do orçamento existente, era impossível reajustar valores; combater eficazmente determinadas doenças; ampliar o saneamento básico, enfim, fazer as medidas necessárias. E isso me levou a buscar recursos novos e eu fui buscar a CPMF e eu não preciso detalhar aqui…

Mônica Teixeira: Certo.

Adib Jatene: Como foi a guerra em relação à CPMF? Ou seja, os recursos de 1995 eram insuficientes, é isso que eu queria deixar claro. Bem, os recursos utilizados em 1996 foram inferiores em valores reais do que aos de 1995, em valores reais. Ou seja, se você gastou 14.800 em 1995, você precisava gastar, em 1996, o mesmo valor para gastar igual, e se a Fipe [Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas] dá uma inflação de 23,7%, a Fundação Getúlio Vargas dá perto de 30%. Evidentemente eu deveria ter, no ano seguinte, um valor igual, ou seja, um valor real corrigido. E é preciso que fique bem claro que a contribuição… o orçamento das contribuições em 1995 foi de 65 bilhões; em 1996, foi de 93 bilhões. Então, a arrecadação acompanhou o valor real, só que o orçamento do Ministério não, porque foi feito um artifício que eu reclamei na época de dar um orçamento de vinte bilhões para o Ministério, só que 14 [bilhões] eram as fontes convencionais, e seis [bilhões] vinham da CPMF, que não estava aprovada, então…

Mônica Teixeira: Perfeito.

Adib Jatene: …como não se arrecadou nada em 1996, ficamos com 14 [bilhões].

Julio Abramczyk: Mas em março de 1996 eram 25 estados… Quando ficou pronto esse plano diretor de erradicação eram 25 estados que assinalavam a presença do mosquito em 1500 municípios. Em março de 1996 até novembro de 1996, quando o senhor saiu, não deu para fazer nada?

Adib Jatene: Deu, e se fez muita coisa. E se trabalhou predominantemente na região do Sudeste e Sul, onde tinha maior número de casos; e nessas regiões, pode olhar os dados, reduziu dramaticamente o número de casos.

Mônica Teixeira: Mas o que o senhor estava…

Adib Jatene: Os números são da região Nordeste e Norte e que não havia a organização em que nós tínhamos feito a proposta…

Julio Abramczyk: Se o plano estava pronto, por que quem que lhe substituiu não deu seguimento a esse plano, não está pronto?

Mônica Teixeira: Então, por que houve alguma coisa de mudança?

Adib Jatene: Essa não é uma resposta que eu possa dar, o projeto está pronto, o documento pronto e aprovado pelo presidente, inclusive, publicado em Diário Oficial…

Julio Abramczyk: Pela Organização Pan-americana de Saúde [Opas].

Adib Jatene: Com uma comissão executiva designada pelo presidente, não pelo ministro.

Waldir Mesquita: Doutor Adib, eu queria pegar o seu raciocínio…

Adib Jatene: Eu só queria terminar o que seu estava dizendo para ela. Então, em 1996, nós ficamos com os 14 bilhões mas, evidentemente, como eu tinha um orçamento de vinte [bilhões] e existia um artigo colocado pela comissão de orçamento no Congresso de que a frustração de receita seria coberta pelo Fundo de Estabilização Fiscal [antigo Fundo Social de Emergência], nós gastamos em um total praticamente 17. Como tivemos 14, sobrou três. Buscamos 1,2 [bi] do FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador] e esperávamos 1,8 [bi] do FEF. Não veio recurso do FEF e aí ficou a dívida para este ano. Só que, depois que aprovamos em outubro o CPMF, me foi proposto pagar os empréstimos do FAT mais o débito que tinha ficado de 1,8 [bi] com arrecadação do CPMF, e eu disse: “eu não aceito, isso não vou fazer”.

Mônica Teixeira: Isso explica porque o senhor saiu do ministério…

Adib Jatene: Agora, nesse período, a substituição ficou para o doutor Seixas [José Carlos Seixas foi ministro interino da Saúde entre novembro e dezembro de 1996] durante dois meses e pouco, depois veio o ministro e aí o problema foi o mesmo: o recurso não era suficiente para atender a despesa. E o ano de 1997, que o presidente disse que seria o ano da saúde, não pode ser o ano da saúde simplesmente porque o esquema financeiro não permitiu.

Waldir Mesquita: Doutor Adib… Eu queria seguir o seu raciocínio. Concretamente, o que nós temos? O orçamento de 1996 foi menor que o de 1995…

Adib Jatene: Sim.

Waldir Mesquita: O [orçamento] de 1997 foi menor que…

Adib Jatene: Menor.

Waldir Mesquita: Que o de 1996. E 1997, como o senhor disse, foi o ano da saúde… O de 1998 é menor que o de 1997…

Adib Jatene: Menor.

Waldir Mesquita: Pode-se concluir, então, que há uma grande distância entre a intenção e o gesto, o discurso e a prática. Quer dizer, a prioridade de saúde para este governo, na prática, inexiste. Parece que ninguém consegue fazer uma campanha contra a dengue. Ninguém pode montar centrais de transplantes apenas com discurso, tem que ter financiamento. O que o senhor acha disso?

Adib Jatene: Olha, eu acho o seguinte: o problema de prioridade, eu sempre discuti que você estabelece e verifica a prioridade observando qual é o volume de recurso que você põe. Quer dizer, não há prioridade de ação governamental sem recursos. A prioridade do discurso não funciona e muita gente pretende usar um argumento de que – o presidente usou, faz pouco tempo – se precisa combater a corrupção para que possa render mais o recurso. Eu disse: “é um equivoco”. O presidente não devia dizer isso, por quê? Porque o presidente já está no terceiro ano de governo e o que ele deveria dizer à nação [é] quais foram as medidas que o governo dele fez para combater a corrupção. E tinha muitas medidas, nós revisamos todo um sistema produtor de medicamentos do país e fechamos perto de duzentos laboratórios. Nós revisamos – e você é testemunha – toda a sistemática do processamento das contas e colocamos as críticas nos processamentos das contas e reduzimos de 15 milhões de internação para 12,5 milhões, as internações. Hoje, ninguém mais fala em cirurgia de parto em homem, fimose em mulher, ninguém mais fala em contas fantasmas, porque nós fizemos uma programação integrada em cada município. Nós sabemos exatamente qual é o volume de recursos que cada município pode ter, qual é o número de RH [recursos humanos] que ele pode ter… Ou seja, o governo Fernando Henrique, [tanto] na nossa [como] nessa gestão, tem feito muito para combater a corrupção. Mas o argumento continua como uma justificativa para não aplicar mais recursos. E eu dizia ao doutor [Pedro] Malan [ministro da Fazenda nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso] e ao doutor [Antonio] Kandir [ministro do Planejamento do governo Fernando Henrique entre 1996 e 1998], quando vocês têm que pagar juros da dívida, pagam no dia, e se não tiverem recursos, emitem título da dívida para pagar. Mas quando se trata de pagar aos hospitais, ficam oito meses atrasado um reajuste de 25%, que é insuficiente. Então, fica muito difícil dizer o que é prioridade dentro desse clima todo.

Matinas Suzuki: Doutor, o senhor me permite, eu gostaria de fazer um raciocínio, uma coisa é dizer que não é prioridade, mas também diante dos problemas que o Brasil tem na área de Saúde, não existe algo mais grave do que não ser prioridade?

Adib Jatene: Não existe algo mais grave? Claro! Eu acho que…

Matinas Suzuki: Então quer dizer, a questão não é só não ser prioridade de um governo, não podemos chamar de omissão, descaso…

Adib Jatene: Não.

Matinas Suzuki: De não estar cumprindo com…

Adib Jatene: Não, eu diria um pouco diferente, quer dizer, a gente não pode ser excessivamente crítico…

Matinas Suzuki: Então, eu queria saber da relação mais…

Adib Jatene: Não há nenhuma dúvida que a situação econômica do governo é muito complicada, eu não teria me lançado a buscar uma CPMF se eu vislumbrasse, dentro do orçamento, de onde tirar. Nas várias discussões que eu tive no Congresso, quando me diziam: “Mas têm recursos!” Eu dizia: “ok! Me diga onde está o recurso. Eu vou buscar”. Na verdade, não tinha recursos adicionais, a não ser no FEF e a não ser na CPMF. Então, a área econômica do governo enfrenta uma situação muito complicada: a dívida é muito grande, os juros são altos, o pagamento dos juros da dívida consome uma quantidade grande de recursos… Eu estive com o presidente há uns cinco meses e disse que iria me manifestar em torno dessa falta de recursos, mas que ele não entendesse isso como uma oposição ao governo e simplesmente como uma postura que eu defendi enquanto ministro e eu precisava continuar defendendo. E o próprio presidente me disse: “Nós temos dois grandes problemas: os juros da dívida e o problema da previdência”, não só a previdência real, mas os recursos…

Matinas Suzuki: Qual a medida que o senhor aprova? Aprova um imposto vinculado para saúde e esse dinheiro não vai para saúde? Quer dizer, eu acho que está havendo alguma coisa a mais do que isso.

Adib Jatene: Não, esse dinheiro foi para a saúde…

[…]: Mas está indo totalmente para a saúde?

Adib Jatene: Como ele é vinculado, tinha que ir para a saúde. Ele não podia ir para outra coisa, ele está indo, está pagando dívida do Ministério. O problema que aconteceu é que não se garantiu o mesmo valor de 1995 corrigido para que, somado ao CPMF, desse um salto na saúde. Se isso tivesse sido feito no ano passado, teria aplicado 27 bilhões de reais e não 18 bilhões.

Mônica Teixeira: Agora, doutor Jatene, deixa perguntar uma coisa? O senhor, quando está falando em dinheiro da saúde, sempre fala nos hospitais, o senhor acha que o problema da saúde no Brasil é pagar em dia os hospitais ou pagar melhor os hospitais?

Adib Jatene: Não…

Mônica Teixeira: É essa a questão?

Adib Jatene: Não, não. O problema, eu digo, os hospitais… uma das coisas porque o que o Ministério [da Saúde] gasta com a rede hospitalar e ambulatorial é menos da metade do orçamento, o restante ele gasta no combate à endemia, gasta em imunizações, gasta em saneamento, gasta em vigilância sanitária, gasta em compra de medicamentos, gasta com [a Fundação] Fiocruz, quer dizer, há uma série de despesas. O que nós gastamos com atendimento médico hospitalar é menos da metade do orçamento, acontece que o que mais tem visibilidade na imprensa é o atendimento médico hospitalar, por isso eu falo hospital.

Mônica Teixeira: Desculpe, só para completar isso, mas nesses dois anos, 1996 e 1997, a situação da saúde pública no Brasil não esteve bem, doutor, não foi só a dengue, teve epidemia de sarampo em São Paulo, teve muitos casos, enfim…

Adib Jatene: Aqui, precisa ter cuidado na análise, a gente não pode analisar superficialmente. Veja, a mortalidade infantil reduziu, mesmo no Nordeste, porque existe o programa de agente comunitário…

Mônica Teixeira: Agentes comunitários.

Adib Jatene: …saúde da família. Hoje, já temos 55 mil agentes comunitários…

Mônica Teixeira: Isso foi um tento que o Brasil já marcou não é?

Adib Jatene: Isso foi positivo!

Mônica Teixeira: Certo.

Adib Jatene: E tem que ser registrado.

Mônica Teixeira: Certo.

Adib Jatene: A malária, talvez você não saiba, mas nós tínhamos 550 mil casos de malária estabilizados desde 1988.

Mônica Teixeira: Certo.

Adib Jatene: Em 1996, nós tivemos 450 mil casos, e no ano passado deve ter fechado com 350 mil casos.

Mônica Teixeira: Isso.

Adib Jatene: Quer dizer, o combate à malária foi um sucesso. O que aconteceu com o sarampo? É preciso que as pessoas entendam que o sarampo já foi responsável por 26% dos óbitos de crianças no Brasil, já foi responsável por 50% dos óbitos das doenças infecciosas. O que se fez com o sarampo foi um extraordinário sucesso. Em 1992, nós vacinamos 48 milhões de crianças abaixo de 14 anos, você se lembra disso, no mês de maio de 1992. Isto, junto com o que vinha sendo feito no passado, praticamente em 1993 e 1994, desapareceu o sarampo. Acontece que isso tem que manter uma certa seqüência…

Mônica Teixeira: Então, teve mais de oitocentos casos aqui em São Paulo?

Adib Jatene: Eu não quero analisar em profundidade o que aconteceu no sarampo em São Paulo…

Julio Abramczyk: Faltou vacina, não é?

Adib Jatene: Não, a falta de vacina foi durante dois meses, outubro e novembro, e não foi só em São Paulo, foi em vários lugares do país. Então, deveria aparecer o sarampo em outras cidades e não na capital de São Paulo, que é o lugar onde mais se vacinou contra o sarampo, se vacinou com tríplice viral nas campanhas de pólio etc. Aqui, na capital, houve um tumulto no sistema de saúde…

Mônica Teixeira: Mas isso…

Adib Jatene: Porque a prefeitura não se incorporou ao sistema do Ministério e montou um sistema próprio para atender doença e perto de trinta mil funcionários foram colocados à disposição… Houve um tumulto em São Paulo na área de imunizações, mas você deve registrar também que esse surto de São Paulo foi combatido de uma forma eficientíssima…

Mônica Teixeira: É verdade.

Adib Jatene: Foram feitos mais de 460 mil vacinações de bloqueio [do surto], e vacinação de bloqueio não é fácil fazer, e foi o que jogou a epidemia lá em baixo quando todo mundo achava que ela ia se manter. Mas é que isso ocorre… isso não é falência de um sistema, mas uma ocorrência que foi muito bem combatida. A [prevenção da] malária evoluiu bem, a própria [prevenção contra a] mortalidade infantil teve resultado, a dengue sim era nossa preocupação, porque ou você combate tudo ao mesmo tempo, ou não adianta, você combate em um município aí vai em um outro. Na região Sudeste, Sul e mesmo na [região] Centro-Oeste, onde o combate foi mais eficiente, o resultado foi muito satisfatório. No Nordeste que tinha muito pouca dengue, então, não se combateu com eficiência devida e na região Norte foi onde a dengue explodiu…

Mônica Teixeira: Agora, alguma…

Matinas Suzuki: Deixa o doutor, professor.

William Nahas: Professor, o senhor estava mencionando, e ela estava mencionando sobre o sarampo e sobre os problemas da dengue. E a gente sabe que o país passa por problemas sérios. A parte de transplantes de órgãos, o senhor já ocupou cargo de ministro, como é que o senhor vê, como que pode… sem dúvida nenhuma a doação de órgão é para sociedade, e a sociedade recebe essa doação, é feita da sociedade para sociedade. O Estado, sem dúvida deve controlar e gerenciar isso daí. Mas o senhor acha que é cabível dentro de uma situação atual o Estado descer aos mínimos detalhes, querer capturar, distribuir e realizar os transplantes, ou seja, o senhor acha que é factível dentro de um problema que houve… [foi noticiado] na Folha de sábado, publicou-se que uma consulta médica domiciliar custa dois 2,28 centavos, uma consulta médica de urgência com remoção custa 2,50 [centavos]. Como é que nós vamos conseguir… em São Paulo o número de transplante se foi reduzido drasticamente nos últimos 6 meses.

Adib Jatene: Eu vi os dados da Secretaria de maio e junho e vi os dados do semestre, desse segundo semestre; não houve, nessa comparação, redução. O número de transplantes foi mantido, houve redução em relação a 1997…

William Nahas: O ano passado, exato.

Adib Jatene: Isso efetivamente houve.

William Nahas: Quase 50% a menos.

Adib Jatene: Acontece… A minha interpretação é que nós estamos em uma fase de transição, nós estamos buscando uma organização do sistema que não penalize aquelas pessoas que não têm recursos.

William Nahas: Evidente e nem pode!

Adib Jatene: E isso, eu acho que a tentativa que a Secretaria está fazendo, que está dentro da lei, ela é correta, ela trouxe alguns…

Pablo Pereira: É uma boa lei?

Adib Jatene: A lei é boa, eu não acho a lei ruim e o espírito da lei é bom! Eu acho que há um problema na lei, e é o que eu chamo de lei indutora de mudança. Eu não acredito muito em lei indutora de mudança, ou indutora de comportamento, modificadora de cultura, eu acho que a lei deve ser muito mais uma consolidação de uma prática do que a indução de mudanças. E esse é o grande problema porque, quando se colocou a doação presumida, isso chocou muita gente, chocou a população, mas o espírito de quem fez a lei era para que aumentasse o transplante, aumentasse o número de transplante.

Pablo Pereira: Agora, professor…

Adib Jatene: Em um primeiro momento isso não resultou em aumento, mas resultou em uma enorme discussão nacional que vai, seguramente, contribuir para conscientizar melhor a população para amadurecer em relação ao que deve e o que não deve.

Pablo Pereira: O senhor acha que esse quadro de rejeição inicial pode ser revertido ainda?

Adib Jatene: Mas eu não tenho nenhuma dúvida! Porque tem se dado muita ênfase aos que vão buscar a mudança no documento…

Pablo Pereira: As filas estão aumentando…

Adib Jatene: Essa é a parcela dos que vão buscar, mas eu vi, agora mesmo, ontem, uma enquete mostrando que 65% ou 70% da população é favorável. Quer dizer, os que vão doar não estão mudando os seus documentos.

William Nahas: Professor, a gente sabe… e dados da Universidade de São Paulo, que o senhor é professor emérito, e da Unicamp mostram que o problema não é a família aceitar a doação. A gente sabe que 60 ou 70% das famílias, quando consultadas, elas concordam com a doação. Será que o problema não está muito mais em o Estado criar estrutura para notificação da morte encefálica, criar condições de diagnosticar a morte encefálica e aí ir lá e conversar com a família? Problema não é a lei, eu acho, o problema é mais a estrutura. Nós estamos pensando… A lei, como o senhor mesmo disse, a lei não nasce de cima para baixo, a lei, realmente, é um fruto, é um reflexo da sociedade. Então, essa confusão toda, sem dúvida, é benéfica, mas as famílias doam, a gente sabe que 60% ou 70% das famílias doam e é um dos melhores índices do mundo.

Adib Jatene: Eu estou de acordo. Eu sempre discuti que o problema do doador não é a família. Na minha avaliação – e na minha experiência – o grande problema da doação é a organização dos serviços de emergência…

William Nahas: Perfeito.

Adib Jatene: Veja, o indivíduo tem um familiar em um pequeno hospital, em um pronto socorro de periferia, onde ele acha que os recursos não são suficientes. Ele luta para transferir esse doente para o Hospital das Clínicas, para um pronto socorro do Jabaquara [bairro de São Paulo], onde existem mais condições, tem tomógrafo etc, e ele não consegue…

William Nahas: E quando vira um doador, some…

Adib Jatene: O familiar vira doador porque tem a morte cerebral…

William Nahas: Daí vai para…

Adib Jatene: De repente…

William Nahas: Vai para lá.

Adib Jatene: De repente, chega a ambulância, chegam pessoas que vão…

William Nahas: E vai para o HC.

Adib Jatene: E transfere para o HC. Quer dizer, é uma coisa revoltante. Então, o que precisa – e eu venho discutindo isso há muito tempo – é organizar a emergência. Nós tínhamos criado, no Ministério, um índice de valorização da emergência. Nós queríamos pagar um pouco mais e começamos a fazer isso em Belo Horizonte e em alguns lugares para que os hospitais privados voltem a atender emergência…

Pablo Pereira: [interrompendo] O que o senhor acha da idéia do bônus, professor?

Adib Jatene: …para descomprimir os hospitais públicos que estão sobrecarregados na emergência. O bônus é uma coisa que precisa ser entendida. Veja, o que está acontecendo é que as pessoas, às vezes, não entendem direito, mas nós temos quatro macro regiões em São Paulo: a região do interior, centrada em Ribeirão Preto; a região de Campinas, centrada na Unicamp. E aqui, na grande São Paulo, duas macro regiões: uma centrada no Hospital das Clínicas e a outra centrada no Hospital São Paulo. Os hospitais que estão captando órgãos são: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, a Faculdade de Medicina da Unicamp, o Hospital das Clínicas, a Santa Casa, o Hospital São Paulo e o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, são seis instituições públicas cujas as listas de doadores são todos praticamente do SUS [Sistema Único de Saúde]. Então, para essas seis entidades se pensou em fazer – já que não temos nenhum estímulo, seja financeiro, seja de outra ordem – se pensou em fazer um bônus nos órgãos duplos, [por exemplo] o rim, um órgão é distribuído na lista e o outro fica com essa entidade captadora que é pública e é para a clientela do SUS.

Pablo Pereira: Mas há equipes que trabalham tanto no sistema público como no sistema privado?

Adib Jatene: Os doentes do sistema privado que estão na lista única, recebem de acordo com a lista e de acordo com a compatibilidade.

William Nahas: Não, mas e o bônus, professor, ele parece uma idéia… Para a opinião pública, o bônus pode chocar, mas eu acho que nós estamos vivendo uma realidade em que nós temos que nos associar com quem tem um pouco de recurso para auxiliar quem não tem nada. O Hospital das Clínicas hoje atende 20% de doentes privados e previdenciários, previdenciários não, desculpe, doentes de convênios. Porque com isso gera recursos – o professor foi diretor da Faculdade de Medicina, sabe e brigou muito por isso -, isso gera recursos para atender quem não tem condições de pagar. O que o senhor acha disso?

Adib Jatene: Mas o problema não é esse exatamente, o problema…

William Nahas: O problema é que fura fila, não é, professor?

Adib Jatene: É que as pessoas acham que isso vai fazer com que aqueles que tenham recursos tenham mais acesso aos órgãos e não é verdade, isso não vai acontecer…

Pablo Pereira: Não há furo da fila?

Adib Jatene: Não há furo da fila porque a fila dos que ficam com o bônus, os captadores, é toda ela praticamente do SUS…

[…]: Doutor Adib, eu…

Adib Jatene: E se hospitais privado entrarem na captação, eles não terão bônus.

Randas Vilela Batista: Viu, professor, os órgãos…

Julio Abramczyk: Nós estamos falando muito sobre transplantes, mas e os órgãos artificiais e os clones de órgãos, eles não poderiam substituir…

Adib Jatene: Bom, os órgãos artificiais…Nós já temos uma enorme experiência com isso. O rim artificial que faz hemodiálise [terapia artificial usada em pacientes portadores de insuficiência renal crônica. É um processo que tem por objetivo filtrar e depurar substâncias indesejáveis do sangue como a creatinina e a ureia], ele substitui o rim humano. Acontece que precisa de três seções por semana, e é uma coisa desconfortável para os doentes…

Julio Abramczyk: E fabricar um clone de um coração?

Adib Jatene: Isso é uma coisa futura, quer dizer, nós temos que trabalhar no que nós temos hoje. O que nós estamos trabalhando um pouco mais, digo nós pesquisadores, é no xenodiagnóstico [método usado para diagnosticar uma doença em um organismo pela inoculação do suposto organismo causador em animal de espécie diferente. É muito comum para identificar a evolução de parasitas, entre esses a doença de Chagas, por exemplo], no xenotransplante [transplante de órgãos entre espécies diferentes], quer dizer, preparar órgãos de animais para serem modulados imunologicamente para reduzir a reação quando implantado em pacientes.

[…]: É o que resolve, não é?

Adib Jatene: Nós vamos ter que lidar com a sociedade protetora dos animais.

Randas Vilela Batista: Doutor, o que me chama atenção nessa lei, voltando ao assunto, é que nos países de primeiro mundo, ela também existe, mas lá é o contrário. Por que a gente fez tudo ao contrário? Por exemplo, eu tenho a minha carteirinha dos Estados Unidos. A carteira de motorista [é como] está aqui, em qualquer lugar tem esse selinho. Esse selinho, eu vou ao correio e pego o selo e coloco aqui [mostra a carteira de motorista] eu sou um doador de órgão. Quer dizer, é uma lei muito mais simpática, garanto que teria muito mais doadores. Eu acho muito injusto a gente pegar essa lei… Quanta gente que nem sabe que ela lei existe, quer dizer, ele é obrigado a ser doador. Então, eu não sei quem é que fez essa lei. Por que não fez olhando para o Primeiro Mundo?

Adib Jatene: Essa lei foi feita baseada no que existe na França. Lá existe a doação presumida e um dos que se batalhou por isso foi o professor Zerbini. Na época, eu discuti com ele e eu disse: “doutor Zerbini, o Brasil é um país diferente, a população dificilmente aceita uma coisa desse tipo.” Mas aconteceu foi que isso prosperou, foi para o Congresso e o Congresso… E eu insisto, foi na melhor intenção, no sentido que isso facilitaria aos doadores e a lei foi aprovada. Evidente, o Conselho Federal de Medicina tem discutido esse assunto e é contra. Eu, pessoalmente, acho, estou com você, nós sempre na Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, nós sempre lutamos por isso: “sou doador”, por [isso] na caderneta etc e tal. Mas muitos acharam que se fizesse o contrário seria melhor. E eu insisto que a lei não consegue mudar a cultura, não consegue mudar hábitos, por isso, no Brasil, tem muita lei que não pega porque ela vem pretender a ser indutora de mudanças. E a lei, quando indutora de mudanças, dificilmente pega. Ela deve ser uma consolidadora de prática, pois se você vai consolidar uma prática, não precisa de lei porque as pessoas já estão fazendo. Ou seja, o importante é o convencimento, o importante é a conscientização, é o que se tem buscado fazer. Talvez agora, em conseqüência da lei, venha uma campanha de conscientização, a população toda já está discutindo, isso foi parar na agenda nacional, está nas revistas semanais, está nas páginas amarelas, vermelhas, enfim. E isso contribui para o esclarecimentos.

Waldir Mesquita: Eu gostaria de fazer duas perguntas: uma diz respeito ao transplante e a outra é voltada à questão dos programas de saúde da família. Em relação à questão do transplante, o governo federal discutiu isso com muita freqüência com o Lúcio Alcântara [senador pelo PSDB-CE (1995-2002). Autor da Lei de Doação de Órgãos] e dissemos a eles a conseqüência que essa lei ia dar. O senador é uma das pessoas que eu mais respeito, acho que é um político leal sério, mas eu não conheço doação que não seja positiva e que não seja explícita. Acho que a lei não pega porque, primeiro lugar, ela vai contra a cultura do próprio povo brasileiro. Quer dizer, não se acreditou na solidariedade humana que esse povo tem e já demonstrou ao longo dos anos. Em segundo lugar, acho que coloca o médico em uma situação desumana. Quer dizer, eu vou retirar um órgão sem consultar a família. Me dá mais esse direito que eu acho que nós não queremos, já que os senhores todos mostraram que, no momento em que se conversa com a família, o índice de aceitação é bastante grande. Eu penso o seguinte: eu acredito que cometer erros velhos é burrice, você pode cometer erros novos. Quem não se lembra nesta mesa que, no início da década de 1980, era absolutamente cafona fazer o aleitamento materno e hoje é absolutamente chique. Isso aconteceu através de lei? Não. Foi a partir de uma campanha…

Adib Jatene: Campanha.

Waldir Mesquita: Houve uma emissora de televisão neste país que fez uma campanha de fim de ano mostrando suas atrizes fazendo o aleitamento. Então, no momento em que estivesse a explicitação: “sou doador”, mas de forma fácil… O segundo aspecto: acho que se esqueceram que neste país existem vários Brasis. Quantos trabalhadores neste país têm tempo suficiente para ir a uma delegacia e dizer: “não sou doador”, principalmente agora com a “espada do desemprego” na sua cabeça? Quantos milhões não têm acesso à informação? Eu acho que é incorreto, do ponto de vista político e do ponto de vista ético. Então a pergunta que eu quero fazer é em relação ao programa extraordinário da família que nós achamos que é ótimo e estamos juntos nessa… Agora, a minha preocupação é a seguinte: no momento em que esse médico detectar algum desvio da doença, ele vai ter que encaminhar esse cidadão para que retorne o seu estado de saúde, não vai ter para onde, e isso vai acabar desmoralizando um programa que é muito bom, o senhor não acha isso?

Adib Jatene: Não, pelo seguinte: o programa não é estanque. O programa de agentes comunitários e o programa de saúde da família estão vinculados ao nível secundário e terciário. Então, a idéia é que você tem um agente comunitário que cuida de duzentas casas, e ele mora em uma daquelas casas, ele é treinado para visitar aquelas casas e verificar determinadas coisas. Por exemplo, saber o hipertenso, o diabético, o tuberculoso, o epilético, a gestante, se ela está fazendo pré-natal, se não está, vê caderneta de vacinação, pesar as crianças, ver condições, enfim, uma série de ações que ele faz, leva soro caseiro, ensina como usa etc. Para cada cinco agentes, há uma equipe de saúde da família: um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem que trabalham em tempo integral. Esse núcleo é formado por quatro mil pessoas e essa equipe está vinculada ao nível secundário, ambulatório de especialidades, hospital secundário que, por sua vez, estão vinculados ao nível terciário. Agora, em São Paulo, a Fundação Zerbini junto com a Secretaria da Saúde estão montando dois grandes programas na Vila Nova Cachoeirinha e no Parque São Lucas, na zona Leste, Sapopemba, que vão cobrir mais ou menos 240 mil pessoas. “Ah, mas se você não tiver essa vinculação, o programa vai se desmoralizar”, como você está falando. Mas ele está proposto assim, e no processo de municipalização e descentralização… Porque veja, Mesquita, ao contrário de que muita gente pensa, talvez o sistema de saúde seja o que avançou mais em organização, em municipalização, em descentralização. Infelizmente, nós não conseguimos um esquema financeiro que permitisse avançar mais rapidamente, mas nós já temos 160 municípios que assumiram a gestão, e nesses municípios as coisas se modificaram e esses programas estão sendo implantados. A [Lei] 996, você participou das discussões, uma das coisas que a 996 propôs, na municipalização, é que cada município que avançasse no programa de Agente Comunitário e Saúde da Família tivesse o incremento na sua participação financeira por parte da União. Isso está um pouco limitado pela deficiência de recurso, mas eu acho que isso é uma coisa provisória, é transitória. A proposta de avanço do sistema de saúde não vai ter retorno, ela está sofrendo dificuldades conjunturais, mas a proposta está absolutamente equacionada. O Conselho Nacional dos Secretários Municipais, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais, os Conselhos Nacionais, isso é uma enorme estrutura. E eu sempre disse que eu não acreditava em pessoas que salvam, mas eu acredito em estruturas que funcionam. E essa estrutura montada no sistema de saúde, com estímulo aos consórcios, com uma série de propostas está absolutamente equacionado, e tão logo se consiga um esquema financeiro viável, vai criar um modelo de saúde que pode ser exportado. O modelo brasileiro é seguramente melhor que os modelos que vem sendo propagados aí como excelência, porque o modelo brasileiro foi feito dentro da realidade brasileira e não foi feito por mim nem pela minha administração, isso vem desde a Constituição. Nós estamos buscando montar esse modelo que avançou muito em 1993 e 1994.

Waldir Mesquita: Se o senhor me permite, eu diria mais. Acho que foi um modelo construído por brasileiros, sem importar nada…

Adib Jatene: Sem importar nada.

Waldir Mesquita: Do Primeiro Mundo.

Adib Jatene: Esse que é o problema…

Waldir Mesquita: O que nos falta de fato é o governo que tenha entre as sua prioridades saúde para que haja o aporte financeiro.

Adib Jatene: Entender essa proposta global abrangente, mas vai entender.

Julio Abramczyk: Agora, doutor Adib, esse programa da Vila Nova Cachoeirinha é exatamente o oposto do PAS [Plano de Atendimento à Saúde. Implementado entre 1993 e 1996 pela prefeitura de São Paulo. Caracterizou-se pela separação entre produtor e financiador dos serviços em saúde, promovendo a criação de cooperativas executoras. Os recursos vinham prioritariamente da Secretaria Municipal de Saúde]. Quer dizer é uma medicina preventiva ao invés da medicina curativa?

Adib Jatene: Sabe, veja, o PAS, ele criou um mecanismo para atender as pessoas que procuram atendimento, e nós temos que reconhecer que ele foi um avanço. Acontece que esse programa do Ministério foi montado em um prazo relativamente curto porque foi feito por pessoas que nunca participaram das discussões nos últimos vinte e 25 anos do sistema de saúde. Então, se fez um modelo… Eu achei caro, falei com o prefeito Paulo Maluf na época em que ele iria assumir a gestão no município. Falei que o sistema deveria se global, integral; receber todo recurso e somar com o recurso da prefeitura para fazer… Mas ele não optou por isso, ele optou por um modelo paralelo da prefeitura. Criou dificuldades, mas, enfim, está enfrentando problemas porque não é um modelo que está sendo montado para o país como um todo. O modelo que nós estamos trabalhando, que é o modelo do Ministério, na minha avaliação é um modelo muito mais adequado, muito mais racional porque a população…

Julio Abramczyk: Lembra um pouco o modelo cubano?

Adib Jatene: Não, ele é diferente, o modelo cubano é baseado no médico. Em Cuba, você tem um médico para 140 habitantes – o número de médicos em Cuba é extraordinariamente grande – então, eles podem por um médico para cada seiscentos habitantes e o médico [pode] morar onde estão essas pessoas, acontece…

Julio Abramczyk: Aliás, é o maior salário entre os funcionários.

Adib Jatene: É o maior salário, que é duzentos dólares. Acontece que aquilo só pode ser feito em Cuba. Porque eu digo sempre assim – um sistema que se fala muito também é o sistema inglês, onde o médico inglês for, a família dele aceita ir, porque as condições são relativamente boas em todas as partes – em Cuba, aonde o médico for, a família dele tem que ir porque só tem um empregador. Então, ele tem que ir, e ele vai e fica. Aqui, nas áreas onde nós mais precisamos, que é a periferia das grandes cidades, as favelas etc, se um médico aceitar morar lá, a família não aceita. Então, nós temos que fazer um outro modelo. Por isso, como diz o Mesquita, esse modelo foi pensado dentro da realidade brasileira e ele serve aqui porque o agente comunitário é um dos moradores, e ele foi treinado, tem suporte, tem supervisão e tem controle. Para você ter uma idéia do que isso representa, pega, por exemplo, dois municípios do Nordeste: Camaragibe [Pernambuco] e Quixadá [Ceará]. Quixadá tem 90% da população com programa, Camaragibe tem 70% da população com programa, e pega um indicador, só um: internação de crianças de zero a quatro anos. Em 1993, 1994, Camaragibe internava mais de mil crianças que era, mais ou menos, o número de Quixadá. Em 1996, Camaragibe internou 72 crianças de zero a quatro anos no ano, e Quixadá 59…

Julio Abramczyk: Mas não resolveram o problema da água do esgoto lá também?

Adib Jatene: Não…sem mudar as condições sócio-econômicas etc, você elimina a mortalidade infantil, reduz a necessidade de utilização. Por quê? Porque quando uma criança, filha de gente do nosso nível, começa com diarréia, o que faz a mãe? Pega o telefone e liga para o pediatra. Na população de baixa renda, o que faz a mãe? Ela fica esperando, ela não sabe o que fazer, e quando a criança está quase morrendo ela arranja um vizinho que leva correndo para um pronto socorro, chega lá, já morreu! Se você pegar essa criança quando começa a diarréia e começar a hidratá-la – e isso, a Pastoral da Criança da CNBB faz de uma maneira brilhante e tem mostrado resultados espetaculares, e os agentes comunitários fazem – você elimina a morte por diarréia. Esses municípios do Nordeste que estão com agentes comunitários na família, eles praticamente eliminaram a morte por diarréia, e quando começa uma infecção respiratória, você começa a tratar precocemente, então é isso que se chama um modelo que vai mudar os indicadores…

Matinas Suzuki: Doutor Jatene, doutor…

Adib Jatene: E está mudando.

Matinas Suzuki: Nós vamos fazer um pequeno intervalo e voltamos daqui a pouco com a segunda parte da entrevista com o doutor Adib Jatene, até já.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Nós voltamos com o Roda Viva, que conversa esta noite com o ex-ministro Adib Jatene. Ministro, eu não fiz perguntas dos nossos telespectadores durante o primeiro bloco, vou fazer uma bateria aqui no segundo, porque o senhor deve imaginar como esse assunto é de grande interesse. O Domenico Trocino diz o seguinte: “O senhor não acha que o medo das pessoas seja boa parte causado pela impunidade a qualquer tipo de crime, seja ele qual for, inclusive de tráfico de órgãos? O povo tem medo, afinal, ninguém no Brasil vai ser preso por coisa nenhuma.” O João Luis Gonzaga Geraldo, de Indaiatuba, diz: “A obrigatoriedade da lei de doação de órgãos é uma afronta ao ser humano e à sua privacidade; além de ferir a individualidade, corre-se o risco de haver tráfico de órgãos, já que o Brasil é um país onde a ética médica deixa desejar” Andréia Nascimento, de Jaboatão, Pernambuco: “Doutor Jatene, essa polêmica dos transplantes de órgãos não é o resultado do medo que a população tem decorrente do sistema de saúde falido no Brasil?”.

Adib Jatene: Olha, eu concordo que o medo da população esteja baseado nisso aí. Só que, na minha opinião, esse medo não procede. Essa história de tráfico de órgãos, eu nunca verifiquei uma coisa desse tipo. Veja que os órgãos de cadáver, eles têm controle na sua distribuição, não é uma coisa aleatória. E a idéia de que você pode induzir a morte para tirar órgãos, isso é um absoluto despropósito. Na verdade, essa história de que a ética médica no nosso país é frágil, isso não é correto. A grande maioria dos médicos têm um comportamento bastante adequado e a prova do que estou dizendo é que eles são remunerados de uma maneira absolutamente vil. No entanto, eles continuam trabalhando e dando atendimento à população.

Matinas Suzuki: A Rita de Cássia, do Jardim Paulista, pergunta: “Conhecendo o Brasil como o senhor conhece, o senhor acha que se filho de algum político ou figurão precisar de um transplante ele aguardará na fila única?

Adib Jatene: Com certeza!

Matinas Suzuki: A pergunta do Luis Eduardo Michelazzo, de Amparo: “Em uma cidade do porte de Amparo, aqui no estado de São Paulo, com a população mais ou menos de sessenta mil habitantes, há médicos e equipamentos capacitados para fazer os exames para detectar a morte encefálica?”

Adib Jatene: Olha, a morte encefálica, ela pode ser induzida ou suspeitada e, se não tiver neurologista – em Amparo tem – mas se não tiver, o hospital vai obrigatoriamente comunicar à Central de Transplantes. Aí irá gente especializada que vai verificar fazer o diagnóstico e aguardar pelo menos seis horas. O protocolo é estrito, fazer uma série de exames e procedimentos até que se confirme definitivamente a morte cerebral. E uma vez confirmada a morte cerebral, não há retorno, as pessoas não conseguiram entender isso, se me der dois minutos eu vou explicar.

Matinas Suzuki: Por favor, o tempo é seu…

Adib Jatene: O problema é o seguinte: nós não temos reserva de gás no nosso corpo, nós temos reserva de água, que dá para um dia, pouco mais de um dia, nós temos reservas de nutrientes que dá para vários dias, talvez algumas semanas. Os indivíduos que fazem greve de fome, eles tomam líquidos porque eles não podem deixar de tomar líquido. Mas gás, nós não temos reserva. Então, ou nós respiramos colocando oxigênio no sangue para ir para as células ou as células morrem; é por isso que, no passado, o critério de morte era a parada respiratória. Então, se punha espelho na frente do doente e não sei o que, para ver se ele parou de respirar; e aí, se parou de respirar por mais do que três, quatro minutos, ele vai morrer porque não tem reserva de gás. O processo metabólico cessa, todo mecanismo que depende do oxigênio cessa. Aí inventaram uma sonda para por na traquéia do doente e aparelho para ventilar. Então, a parada respiratória não serve mais como critério de morte. Aí veio a parada cardíaca, por quê? Porque quando pára o coração, o sangue não circula, o sangue não circulando, ele não leva oxigênio para as células e para os tecidos. Mas depois que você inventou uma série de medicamentos, de equipamentos mantendo a respiração, o coração não pára. Eu posso tirar o coração de um animal, montar um circuito fora e, se eu mantiver pressão e oxigenação, esse coração fica batendo fora. Então, a parada do coração não serve mais. Eu, quando opero um doente com circulação extracorpórea, eu paro o coração do doente, e ele não está morto porque está sendo mantido pelo coração artificial. Aí tivemos que evoluir para morte cerebral, por quê? Porque quando você destrói o cérebro, o encéfalo inteiro por falta de circulação, as artérias que levam sangue para o cérebro são as artérias carótidas e as artérias vertebrais, elas passam em canais ósseos para entrar na caixa craniana. Quando você tem um tiro, um edema exagerado etc, você bloqueia essa circulação e não entra sangue na cabeça, não entra sangue no encéfalo, ele fica sem sangue, ele necrosa completamente. Existe uma coisa que se chama cérebro do respirador, se você mantiver um doente, um indivíduo com morte cerebral por dois, três dias e depois abrir o crânio e tirar o cérebro, ele é uma pasta, é como se você pusesse o cérebro de um animal a 37°C e deixasse três dias, ele apodrece. Então, não há como recuperar esse indivíduo. Alguns órgãos, se você mantém a respiração e a circulação, eles ainda funcionam um dia, dois dias e, com muito tratamento, porque um indivíduo com morte cerebral, por exemplo, ele perde o hormônio antidiurético, ele urina um litro por hora, ele urina 24 litros, trinta litros em um dia. Então, se você não der hormônio antidiurético, se você não reidratar esse doente, ele pára seus órgãos. Então, depois da morte cerebral, com os recursos existentes do doente entubado, você tem algumas horas, um ou dois dias para que alguns órgãos fiquem preservados. É nessa fase que você pode utilizar esses órgãos, quando o indivíduo já está morto porque o cérebro já está destruído. Isso, a própria Igreja aceitou em um seminário na Academia de Ciências do Vaticano, em 1985.

[…]: Professor…

Mônica Teixeira: Mas e as pessoas que ficam lá e não morrem?

Adib Jatene: Não, isso é coma, isso é outra coisa.

Mônica Teixeira: Então, mas eu acho que a confusão é essa.

Adib Jatene: É, mas essa confusão não se faz, as pessoas em coma, elas ainda têm reflexo, elas ainda têm uma série de sinais, elas não tiveram morte cerebral…

Mônica Teixeira: Quer dizer que quem está com morte encefálica não está em coma?

Adib Jatene: Esse já morreu…

Mônica Teixeira: Tá bom, então!

Adib Jatene: Já morreu, é diferente, é diferente. E as pessoas não entendem essa diferenciação. Outra coisa, as pessoas se preocupam que vai abrir e conspurcar o cadáver. Acontece que toda morte violenta – e grande parte dos doadores vêm de acidentes, tiros, essa coisa – toda morte violenta obrigatoriamente se faz necrópsia. Só que você pode fazer isto enquanto os órgãos são utilizáveis ou depois que eles não são mais utilizáveis. E o esforço que se fez com o avanço da ciência da tecnologia da medicina é poder usar esses órgãos para salvar a vida de outras pessoas.

Pablo Pereira: Professor, o senhor descreveu avanços que mudaram os conceitos de morte com relação à morte respiratória, depois a morte por problemas cardíacos e, agora, a gente está aí com esse conceito que, enfim, é a base dessa lei, que é o conceito de morte encefálica. O doutor Cícero [Galli] Coimbra, que é da Universidade Federal de São Paulo, está contestando tal conceito. Ele tem falado à imprensa e vem contestando o conceito de morte encefálica.

Adib Jatene: É, ele está sozinho contra o mundo…

Pablo Pereira: Doutor Rubens José Gagliardi está com ele.

Adib Jatene: Então, têm pessoas que são donos da verdade, o que eu vou fazer?!

William Nahas: Mas o mundo todo tem, têm poucos países no mundo…

Pablo Pereira: Esse conceito de morte encefálica, na visão dele, não poderia ser aplicado. O senhor acha que isso está completamente…

Adib Jatene: Não, ele diz que não pode ser aplicado…

Pablo Pereira: Ele está equivocado?

Adib Jatene: Se tiver hipotermia, se tiver com barbitúrico, mas isso faz parte da definição. O Conselho Federal de Medicina estabeleceu isso. Quer dizer, se tiver hipotermia [perda excessiva de calor de forma não intencional], se tiver intoxicação barbitúrica [substâncias utilizadas para o tratamento da ansiedade e agitação. Possuem, como composto ativo, o ácido malônico e a uréia e agem no sistema nervoso central, podendo causar sono ou relaxamento, dependendo da dosagem ministrada], você não pode fazer diagnóstico de morte cerebral. Isso é claro. Mas dizer, hoje, 1998, que o conceito de morte encefálica está equivocado é ir contra o conhecimento científico do mundo inteiro. Então, tem um indivíduo que está contra o mundo. Tudo bem! Quem sabe ele é mais genial que todos nós.

Mônica Teixeira: O senhor acha que, se essa dúvida levantada pelo doutor Cícero estivesse na cabeça dos médicos, quer dizer, se ela encontrasse eco, os médicos fariam transplante?

Adib Jatene: Claro que não!

Mônica Teixeira: O senhor garante para a população, doutor Jatene, eu quero chegar a isso, que ninguém vai ser morto para ter os seus órgãos… Não vai ter a sua morte apressada? Ou vai ser mal cuidado?

Adib Jatene: Com certeza, não. Ao contrário, eu acho que se nós conseguíssemos equipar os serviços de emergências para que eles pudessem manter o indivíduo com morte cerebral em condições de seus órgãos serem utilizados, muito mais pessoas seriam salvas e não chegariam a morte cerebral…

Mônica Teixeira: Então seria melhor.

Adib Jatene: Por isso a gente fica angustiado com problema de recurso, “Ele só pensa em recurso”. Não é isso..

[Sobreposição de vozes]

Matinas Suzuki: Um de cada vez, senão…

William Nahas: Professor Jatene, o senhor pode fazer um transplante de coração se o coração for sadio, o fígado só pode ser usado se for sadio, porque se não funcionar o indivíduo morre, se for um rim…

Mônica Teixeira: [interrompendo] Qual o perfil do bom doador, doutor?

William Nahas: Se for o rim, ainda tem a máquina…

Matinas Suzuki: Senhores, por favor, vamos respeitar quando um está falando, senão vira uma dificuldade.

Adib Jatene: O bom doador é um indivíduo hígido [saudável] que sofreu uma desgraça ou um acidente com um traumatismo craniano, ou um tiro, ou alguma coisa parecida. E que foi identificado antes que houvesse deterioração de seus órgãos e pode ser mantido em condições satisfatórias enquanto se providenciava a retirada desse corpo.

Mônica Teixeira: Uma pessoa, por exemplo, que morra de câncer é boa doadora?

Adib Jatene: Não!

Mônica Teixeira: Se for uma pessoa de sessenta anos.

Adib Jatene: Não, não é boa!

Mônica Teixeira: Quer dizer, só uma parte das pessoas que morrem, cujos órgãos interessam aos transplantes…

Adib Jatene: Claro, claro porque as pessoas quando morrem de câncer geralmente elas morrem em uma fase final, uma fase em que estão consumidas. Elas estão magras, estão debilitadas, elas não servem. São acidentados, são coisas agudas que acontece nas emergências. Por isso eu insisto que é fundamental que nós organizemos a emergência. Todos os serviços de emergência que cuidam de traumatizados do crânio devia ter tomógrafo, devia ter todos os recursos de diagnóstico. Mas isso não pode acontecer se você não tiver esquema financeiro que dê para essa instituição cobrir os seus custos e ter uma reserva para comprar equipamentos. As pessoas não conseguem materializar que uma instituição que trata traumatizado de crânio precisa de um aparato que é caro, que é difícil. E esse aparato caro e difícil que permitiria se manter um doente com morte cerebral, ele vai salvar muito traumatizado e não deixar que ele evolua para morte cerebral.

William Nahas: Mas, professor, baseado nisso o senhor não acha que essa lei e que os políticos ou quem fez a lei, às vezes, ficam muito distante da realidade? É uma coisa que para a gente que é médico… O senhor sabe disso, a gente fica até estupefato com essas histórias porque a gente vê que a realidade é uma e eles fazem a lei, como se a lei resolvesse tudo.

Adib Jatene: Mas eu disse a você, a lei não nasceu das cabeças dos políticos, a lei nasceu da cabeça de vários médicos que estavam interessados em aumentar o número de doadores. Professor Zerbini foi um desses médicos que lutou por essa lei.

Mônica Teixeira: Mas a lei dos transplantes se resume na doação presumida…

Adib Jatene: Esse problema da lei, não devemos fixar especificamente na lei, porque a lei já existe. A lei já existe e a lei não obriga a tirar, ela diz “poderá”, ela não diz “deverá”, ela diz “poderá” e o próprio Conselho Federal de Medicina já orientou os médicos que não deixem de falar com a família…

William Nahas: Não, nós não vamos tirar…

Adib Jatene: Acabou, esquece a lei. Agora é buscar organizar a doação.

William Nahas: Mas é isso que falta. Isso daí, a gente não vê nenhum sinal do governo.

Adib Jatene: Não, está fazendo. Veja, o que nós estamos fazendo em São Paulo, que é o estado que avançou mais na organização para a doação, é uma coisa que muita gente diz: “Ah, a Secretaria entrou, complicou tudo!”. Não! A Secretaria entrou para cumprir a lei e está fazendo as etapas necessárias e as correções que são necessárias, é uma fase de transição. Eu acredito sinceramente que, em um prazo relativamente curto, nós vamos ter incrementado a Lei de Doação.

William Nahas: A Secretaria não ouviu a Universidade de São Paulo, a Secretaria não ouviu a Unicamp, a Secretaria não ouviu ninguém e só agora está começando a ouvir e que está começando a chegar na realidade. Precisamos de uns seis meses de briga para chegar nisso?

Adib Jatene: Não, ela ouviu. O problema é que muitas vezes os interesses são conflitantes, tem equipes que estão interessadas em uma linha, outras em outra linha, e a Secretaria está… Eu estive na semana passada discutindo na Secretaria esse assunto, e eu achei que eles estão bastante abertos para fazer as modificações necessárias.

William Nahas: Hoje, eles parecem que estão chegando a essa realidade.

Adib Jatene: Mas é assim, eu uso sempre uma frase: “nada começa pronto”, nós temos esse vício no Brasil, nós queremos que as coisas nasçam perfeitas, não existe. Nós vamos fazer, vamos arrumar, e esse é o processo democrático, quer dizer, o processo democrático é muito complicado por causa disso. Porque você tem que trabalhar com os conflitos, e tentar harmonizar dentro dos consensos que nem sempre são fáceis de obter.

Julio Abramczyk: Doutor Adib, o senhor falou em equipamentos e há um paradoxo dentro da medicina, que quanto mais ela avança tecnologicamente mais cara ela fica. Mas é o único lugar onde o avanço tecnológico encarece o custo final do produto. Por exemplo, os computadores, [quando] melhoraram, baixaram de preço, o equipamento de TV melhorou e baixou o preço, os próprios televisores das residências melhoraram muito e mesmo assim baixaram de preço. Por que na medicina os equipamentos melhoram e encarecem?

Adib Jatene: Não, na verdade eles também baixam de preço. Acontece que eles não têm a economia de escala, você citou vários exemplos que é economia de escala, são grande volumes. Você pega, por exemplo, tomógrafo. Quantos tomógrafos você pode colocar? Cem…

Julio Abramczyk: São Paulo tem mais do que o Canadá inteiro…

Adib Jatene: Cem ou duzentos, não têm mais que isso. Quantas televisões têm? Milhares e milhares! Mas esse é um aspecto, o outro aspecto é que quando você incorpora o equipamento em medicina, você está incorporando uma nova tecnologia de tratamento. E aí, muitas pessoas que não tinham acesso a esse tipo de tratamento passam a ter, e aí aumenta a demanda e encarece o custo.

Pablo Pereira: Quanto custa hoje um transplante de coração, doutor Adib?

Adib Jatene: Olha, o transplante de coração o SUS paga uma coisa razoável de 35 mil reais. Acontece que ele faz sessenta transplantes, 65 em São Paulo, por ano. E faz milhares de partos por ano. Então, na verdade, você gasta muito mais lá do que aqui. Gasta muito mais com o doente mental do que em um transplante. Quer dizer, a alta tecnologia, ela é reduzida, o número é pequeno. Então, o custo não é extraordinariamente grande. Agora, o que aconteceu com a medicina e em geral com a minoria, nós mudamos a epidemiologia. Você hoje não tem mais a mortalidade por doenças infecciosas; você tem antibióticos, você tem imunização, não tem mais paralisia infantil, não tem mais varíola; o sarampo, em que pese um pequeno surto, diminuiu dramaticamente. Enfim, você eliminou isso aí. Mas em compensação você aumentou a expectativa de vida. Nós, hoje, estamos com expectativa de vida de 64 anos para o homem e 67 para as mulheres no Brasil, em outros países é maior. Com esse aumento da expectativa de vida, você passou a trocar as doenças infecciosas – ou o indivíduo morre ou sara e quando sara, adquiri imunidade – por doenças crônicas degenerativas que antes você não curava. E o indivíduo fica anos e anos utilizando toda essa tecnologia e encarecendo o atendimento…

Matinas Suzuki: Doutor Jatene.

Adib Jatene: Por isso os países de Primeiro Mundo, que tem organização, que tem não sei o quê… O custo do atendimento à saúde é crescente…

Matinas Suzuki: Doutor Jatene, o José Bruno Antunes, que é médico no Belém do Pará, diz o seguinte: “Com a estrutura precária do SUS, que quase nem fornece medicamentos aos pacientes, não é inviável a aprovação dessa lei?” E eu gostaria de aproveitar a Mônica, disse: “Que esse não era um problema tão grave assim”, mas eu acompanho de perto casos de alguns hospitais que atendem pelo SUS no Brasil, no interior do estado de São Paulo, e são hospitais que vivem com problemas seríssimos sempre. Que dizer, não conseguem pagar as contas dos tratamentos que eles fazem…

Adib Jatene: Exato!

Matinas Suzuki: Quer dizer, há vários casos de Santas Casas que estão estranguladas, os hospitais estão se descredenciando, estão deixando de atender o SUS, quer dizer, onde vai parar essa massa? Como vamos fazer com isso?

Adib Jatene: Esse é um enorme problema que precisa ser devidamente equacionado. Eu acho e estou absolutamente convencido de que o problema é a falta de um esquema financeiro que viabilize a atividade. Quando eu ouço pessoas dizendo… Por exemplo, outro dia eu vi uma matéria dizendo que, no Brasil, se gasta 35 bilhões com saúde, contando convênios privados etc. Apesar dessa fabulosa soma, a saúde vai mal. Ora, isso é uma coisa absolutamente ridícula! Não é uma fabulosa soma, isso significa duzentos reais por habitante ano. Países como a França, que têm 56 milhões de habitante, gastam cem bilhões. A Austrália, que têm vinte milhões de habitantes, gasta 26 bilhões. Os países gastam, em geral, mais de mil dólares por habitante ano. Nós estamos gastando duzentos. Os Estados Unidos gastam três mil. Então, lá se fala em reduzir custo, aqui nós temos que dobrar recurso, nós precisamos gastar pelo menos sessenta ou setenta bilhões. Mas se pode dizer: “é inviável.” Mas nós estamos gastando com previdência, se você somar encargos presidenciais da União com a previdência do Ministério da Previdência, nós estamos gastando setenta bilhões com previdência e nós gastamos 18 bilhões com a saúde. Acontece que a maior parte dos indivíduos que recorrem ao sistema de saúde SUS são aposentados, e a Previdência não dá mais nenhum tostão ao sistema de saúde…

Mônica Teixeira: Agora, doutor…

Adib Jatene: Então, essas coisas que precisam ser equacionadas.

Mônica Teixeira: Doutor Jatene, essa…

Waldir Mesquita : Eu gostaria de pegar alguma coisa rapidinho do que o senhor colocou. Eu tenho impressão de que nós estamos na periferia de algumas coisas importantes. Para discutir claramente, uma delas é a questão da lista única. Eu queria saber a sua opinião sobre isso. A segunda coisa é na relação com a tecnologia. Eu penso que quanto mais tecnologia de ponta tiver, melhor será para a humanidade. Agora, o senhor não acha também que nós, médicos, estamos com o fascínio da tecnologia? Não se faz mais história clínica, não se faz mais exames físicos e que, seguramente, daqui um certo tempo não se consegue fazer diagnósticos, se não tiver o tomógrafo, logo mais uma ressonância. Então, qual é sua opinião sobre esses problemas?

Adib Jatene: Lista única?

Waldir Mesquita : Lista única, por exemplo

Adib Jatene: Lista única é uma exigência da lei. Agora eu acho que, mesmo sem a lei, deveria existir lista única. Porque você, no transplante, depende do doador e o doador… a Constituição te impede de comprar sangue, por exemplo. Quer dizer, a doação tem que ser gratuita. Ora, se a doação é gratuita ela deve ser distribuída uniformemente. As pessoas me dizem: “Não! Se eu tenho um professor universitário e eu tenho um peão de obra, eu não posso tratá-los igual”. Aí é que é o problema do conceito de pessoa humana! E se o tratamento vai depender de um órgão de outra pessoa humana, provavelmente outro peão, a distribuição tem que está vinculada a uma lista e ao nível de gravidade do caso ou a urgência maior ou menor do caso e a possibilidade de compatibilidade ou não. Então, eu acho que pode se discutir mil vezes esse problema de lista única, eu pessoalmente acho que deve ser assim…

Mônica Teixeira: Agora, o senhor acha que, por exemplo, em um estado do tamanho de São Paulo é possível ter uma só lista?

Adib Jatene: Não, ele está dividido em quatro macrorregiões. Existe o chamado “interior transplante”, que está centrado em Ribeirão Preto, você tem a região de Campinas centrada na Unicamp; e você tem duas macrorregiões em São Paulo. Por exemplo, aqui em São Paulo você tem hoje, na lista de receptores de rim, dois mil e duzentos e poucos, mais ou menos metade está na macrorregião controlada pelo Hospital das Clínicas e a outra metade na macrorregião controlada pelo Hospital São Paulo, já está subdividido.

Mônica Teixeira: Mas aí cada hospital… Então, o HC tem uma lista e…

Adib Jatene: Não é o HC, é a Secretaria.

Mônica Teixeira: É o que eu estou tentando entender…

Adib Jatene: É a Secretaria que tem a lista.

Mônica Teixeira: Tá.

Adib Jatene: O problema é que o HC é onde está o laboratório que vai…

Mônica Teixeira: Determinar compatibilidade…

Adib Jatene: Estabelecer a compatibilidade para poder melhorar. Hoje há uma tendência mundial de não se discutir… Eu não esqueci da outra questão sua não, eu estou só… para não perder a coisa…

Waldir Mesquita : Não, então tá.

Adib Jatene: Há uma tendência de não se fazer, não se dar mais ênfase à compatibilidade e essa é uma historinha muito interessante. Durante muitos anos, o Brasil era um dos únicos países que fazia transplantes de rim com doador vivo não relacionado. E eu assisti, em mais de um congresso, o professor Emilson […] ser criticado porque ele fazia isso. Achavam que era um erro, eu vi vários indivíduos da área internacional dizendo que isso é um absurdo, tinha que fazer relacionado só com parentes, coisa e tal porque isso facilita o comércio de órgãos. No último congresso, agora, em dezembro, nos Estados Unidos, todos estão defendendo o doador não relacionado, doador vivo não relacionado para transplante de rim.

Pablo Pereira: A lei mudou isso, não é, professor?

Adib Jatene: E o doutor…

Pablo Pereira: Nos Estados Unidos, que o professor está falando.

Adib Jatene: Nos Estados Unidos.

Pablo Pereira: A lei aqui, essa nova lei mudou essa realidade?

Adib Jatene: E o doutor em rins aqui não vai mais poder fazer isso. Porque a nossa lei permite o transplante, desde que haja quatro compatibilidades. Ora, para você achar quatro compatibilidades…

William Nahas: Tem que ser idêntico!

Adib Jatene: Você não vai achar nunca. Então, aqui na verdade ficou proibido. Então, existem coisas estranhas, por isso eu digo: o conhecimento científico e tal é muito dinâmico e é por isso que essas coisas talvez não fossem adequadas para serem reguladas em leis… Deveria ter uma regulação ética. E até existe hoje, em vista desses grandes avanços, inclusive na área da reprodução humana etc, uma nova disciplina que se chama bioética. A bioética deve organizar isso. E nós precisamos recompor a ética na sociedade. Aí há pouco disseram a ética do médico. Não, é a ética da sociedade que precisa ser recomposta.

Mônica Teixeira: Agora, apesar das pessoas terem todas essas desconfianças, na verdade não está acontecendo de as pessoas terem seus órgãos traficados…

Adib Jatene: Claro que não!

Mônica Teixeira: Então existe ética no Brasil!

Adib Jatene: Claro!

William Nahas: Eu acho que o senhor, que conhece o assunto, poderia falar para os telespectadores, é impossível o tráfico de droga, não é assim para fazer um transplante…

[…]: Tráfico de órgãos.

William Nahas: Tráfico de órgãos, desculpe, é impossível se fazer um transplante…

Adib Jatene: Não é, isso é gente preparada, ninguém vai fazer isso.

Pablo Pereira: Ao que o senhor atribui esse medo da população, doutor Jatene?

Adib Jatene: É a desconfiança da sociedade hoje em dia… Eu não posso dizer sobre outros países mas, no Brasil, quando você está fazendo alguma coisa, o sujeito diz: “O que será que esse cara está querendo?”

Mônica Teixeira: A regra da desconfiança.

Adib Jatene: A regra é a desconfiança…

Mônica Teixeira: É terrível isso.

Adib Jatene: Quando eu estava no Ministério, o pessoal dizia: “Esse cara quer ser candidato a presidente ou ser candidato a governador”, mas eu não pertenço a nenhum partido, nunca fiz atividade política partidária. “Não, mas ele vai ser!” Aí, quando passa a fase da inscrição, ele diz: “Bom, nessa eleição ele não vai, mas na outra ele vai ser.” É a desconfiança própria do país. Quer dizer, nós precisamos mudar isso no sentido das pessoas confiarem umas nas outras.

Pablo Pereira: Doutor, colegas seus que colocam a questão da medicina mercantilizada… e existe toda essa discussão de que os médicos estariam captando para comercializar, porque o hospital privado vale mais que o hospital público. Essa coisa toda, que as pessoas também falam na fila lá do Instituto de Identificação.

Adib Jatene: O fato de o médico falar não quer dizer que ele seja melhor ou pior que os outros. Faz parte da desconfiança da sociedade.

Pablo Pereira: Eu queria dizer duas questões rápidas para o senhor: primeira, dá para ganhar dinheiro fazendo transplante? Dá para ficar rico? E a segunda: o que o senhor acha da questão da formação dos médicos que…

Adib Jatene: Eu estou nessa profissão faz 44 anos e eu já treinei muito residente, muita coisa, você não faz medicina para ganhar dinheiro; você ganha, mas você não faz para ganhar.

Pablo Pereira: Ganha mais no setor público ou no setor privado, professor?

Adib Jatene: Ah, com certeza no setor privado, o setor público é um sacrifício. As pessoas que permanecem no setor público, permanecem por varias razões, mas eu acho que elas, basicamente, permanecem porque têm um ideal. E nós não devemos ter vergonha de ter ideal. Quer dizer, no Brasil, o sujeito que é idealista hoje é um tonto e não é não!

Pablo Pereira: E a segunda pergunta era exatamente nesse sentido, o que o senhor acha… Eu conversei com alguns médicos durante esta semana, que me disseram que existe uma discussão interna aí e eu não sei em que grau está na corporação, entre os médicos, mas que diz o seguinte: até que ponto é ético o pesquisador, o médico, se desenvolver, estudar durante anos, sendo financiado pela sociedade, pelo Estado, com verba do Estado, e depois esse profissional se transfere para iniciativa privada e aí vai ganhar a vida fazendo medicina?

Adib Jatene: Não, não…

Pablo Pereira: O que o senhor acha disso?

Adib Jatene: Não há nenhum problema. Porque o exercício das profissões, ele pode ser exercido. Nós temos, o nosso sistema não é socialista, o nosso sistema é capitalista. Quer dizer, se nosso sistema fosse socialista, eu disse há pouco, em Cuba o médico ganha duzentos dólares, tudo bem!

Pablo Pereira: É um funcionário público?

Adib Jatene: Também, mas o…

Julio Abramczyk: Mas, tem casa e comida grátis?

Adib Jatene: Pois é! É o sistema!

William Nahas: E saúde, e saúde!

Adib Jatene: Agora, aqui não é assim, aqui o sistema é capitalista, e no sistema capitalista tem vantagens e tem desvantagens, uma das vantagens é que o sistema capitalista estimula a competição, estimula a ambição, estimula a busca de excelências em vários níveis, e isso pode ser benéfico. Agora, isso nunca pode conflitar com a postura ética da profissão. Eu concordo que a alta tecnologia trouxe um conflito, porque trouxe muito mais o interesse das indústrias que querem vender os seus equipamentos, cuja ética é diferente da ética que preside a profissão médica. E isso, em um certo momento, cria um certo conflito e dá a impressão de que nós estamos perdidos, nós não estamos. E aí eu volto para o Mesquita. Quer dizer, essa tecnologia está sendo utilizada em excesso, além do necessário. Grande parte das situações podem ser resolvidas facilmente, sem utilizar a alta tecnologia, que devia ficar reservada para os que efetivamente necessitam dela. É por isso que eu acho que nós estamos caminhando para a montagem de um novo modelo. E, como eu disse, “nada começa pronto”. Eu não posso… Porque se montou um novo modelo baseado no programa de Agentes Comunitários de Saúde, na Saúde da Família, na vinculação disso a um nível secundário, terciário, ou seja, a regionalização e a hierarquização. E eu não posso, uma vez que isso está estabelecido, acreditar que, de imediato, nós vamos fazer isso funcionar. Mas na medida em que isso vai funcionando e já está funcionando em muitos lugares, você vai mudando os conceitos. A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que está envolvida nesses dois projetos novos aqui na área metropolitana, está mudando o seu currículo, ela está fazendo um currículo nuclear, buscando treinar, no futuro, seus alunos dentro desses programas.

[…]: Esses dois projetos, o senhor está coordenando?

Adib Jatene: Eu estou participando. Quer dizer, estimulando e ajudando a montar. Mas dentro de um projeto que é da própria Secretaria da Saúde e da Faculdade de Medicina, quer dizer, no momento em que você vê a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo interessada em montar programas de agentes comunitários de saúde e programa de saúde da família, alguma coisa está mudando. Claro que eu tenho que ensinar a alta tecnologia, claro que eu tenho que oferecer a alta tecnologia para as pessoas que precisam dela. Mas eu preciso buscar, tratar a grande massa da população onde ela mora, porque a grande massa da população não precisa da alta tecnologia. E a desorganização da sociedade leva essas pessoas a procurarem hospitais terciários, e aí elas bloqueiam as vagas para aqueles que efetivamente necessitariam daquilo. Então, na verdade, nós temos que fazer um equilíbrio nisso para evitar que a alta tecnologia se transforme em um negócio, e que a profissão, em vez de um serviço, vire um negócio.

Julio Abramczyk: Doutor Jatene…

Matinas Suzuki: Doutor Júlio, desculpe! A Mônica de Oliveira, mudando um pouco de assunto, daqui de São Paulo, pergunta: “O que o senhor acha do uso de critérios políticos na avaliação de projetos técnicos do Ministério da Saúde?”.

Adib Jatene: Olha, eu acho… Dentro do noticiário que saiu recentemente, eu acho uma pena porque não é seguramente por aí. A minha experiência mostra que grande parte das emendas de parlamentares, na verdade, tem justificativas dentro dos municípios e das áreas em que eles atuam, e essa é uma das funções do parlamentar. Quer dizer, para que as pessoas mandam um deputado federal? Para que ele busque levar determinados benefícios para suas regiões. E se isso foi aprovado no orçamento e se existe recurso no orçamento, isso deveria ser cumprido sem vinculação com partido ou com apoio de governo etc. Porque, aí sim você caracterizaria a troca de influência e a utilização política de coisas que são eminentemente administrativas. Eu, pessoalmente, acredito que… Eu digo isso sempre, o que é legítimo, todos aceitam. O grande problema é legitimar. Eu tive esse exemplo na luta pela CPMF na Câmara Federal, não houve barganha, não houve troca, não houve nada, um projeto que era impopular e foi aprovado. Quer dizer, no momento que você legitima a reivindicação, as pessoas apóiam. Agora, se você botar o atendimento na base da troca, bom, aí complica tudo.

Waldir Mesquita: Doutor Adib, me diga uma coisa, eu queria lhe fazer, baseado nisso aí, o senhor não acha que a tal desconfiança da população que se falou ainda há pouco, ela não tem uma certa razão de ser? Senão vejamos, nós todos construímos em 1988 o Sistema Único de Saúde com a promulgação da Constituição. De lá para cá, todos os governos trabalharam para a não implantação do Sistema Único de Saúde. Bom, se conseguiu a CPMF. O governo dá um “calote” na população com essa CPMF, porque, diferentemente do senhor, eu penso que a dívida com o FAT quem teria que pagar era o Tesouro Nacional…

Adib Jatene: Eu também acho.

Waldir Mesquita: Quando nós apoiamos a CPMF ficou muito claro que era para ser para a saúde e para as questões básicas…

Adib Jatene: E era para somar e não para substituir.

Waldir Mesquita: Esse mesmo governo defende o ante-projeto de um plano dos planos privados de saúde, que atende única e exclusivamente o interesse das empresas. Quanto ao interesse da população, esse governo não tem dinheiro para financiar as coisas básicas da saúde, mas tem dinheiro para os bancos. A população vê no dia-a-dia que esse governo não consegue tratar bem dos seus vivos, como se quer que se acredite que ela cuide bem dos mortos? Então, eu penso que a população tem razão nisso. É muito pedir que ela não desconfie. Na questão da tecnologia, eu também acho que existe, vai haver uma contradição entre essa avalanche de tecnologia e o nosso compromisso. O senhor não acha que nós precisaríamos começar sanear eticamente os congressos de especialidades?

Adib Jatene: Eu acho que sim e acho que estamos começando. Você está se referindo à influência enorme das empresas, das indústrias farmacêuticas nos congressos [médicos].

Waldir Mesquita : É, porque quando se chega lá nos congressos, eu tenho a impressão que cheguei no congresso das indústrias e não em um congresso de médicos…

Adib Jatene: É.

Waldir Mesquita : A parafernália é imensa.

Adib Jatene: Mas há uma… Eu não diria uma reação, mas há um entendimento. É por isso que eu digo que nós temos que reforçar a ética e os princípios éticos, porque você pode utilizar o recurso que a indústria lhe trás. E, inegavelmente, por exemplo, a indústria farmacêutica: os benefícios que a indústria farmacêutica trouxe para o tratamento de uma série enorme de doenças é uma coisa fantástica. Você veja a aids, diminuiu a mortalidade, por quê? Pelos novos medicamentos, pelo coquetel. Você não tem pólio pela vacina. Quer dizer, então, não há como você combater indiscriminadamente… O que nós devemos combater é a inadequada utilização desses conhecimentos e o ganho excessivo que se cria fazendo com que os novos avanços fiquem inacessíveis para grande parcela da população, esse que é o grande problema. Então, os custos crescem de uma tal forma que a população de baixa renda que depende do poder público não tem acesso. E é isso que nós precisamos arrumar. Porque, no Brasil, Mesquita, se faz milagre! A medicina brasileira está praticamente em nível de igualdade com a medicina dos países de Primeiro Mundo. E nós gastamos 35 bilhões no ano, no total. Isso é um milagre. Como é que nós conseguimos fazer isso? E aí as pessoas dizem: “Não, os médicos são mercenários”! Como mercenários se eles estão trabalhando com níveis de remuneração absolutamente incompatíveis? Se um anestesista ganha 19 reais por uma anestesia que dura três, quatro horas… você é anestesista e sabe disso e você pega seu carro, bota em uma oficina, eles te cobram de mão de obra trinta reais por hora, e o mercenário é o médico? Quer dizer, isso é uma distorção, ficou bonito falar mal do médico. O grande sacrificado na área da saúde são os profissionais: médicos, enfermeiras, fisioterapeutas, são todos muito sacrificados. É o setor que pior paga os seus profissionais e, no entanto, presta um volume enorme de serviços. Eu acho que nós precisamos mudar essa linha de crítica e passar a entender que esse profissional é necessário, e as pessoas recorrem a ele quando estão em situação difícil. Então, ele precisa ser remunerado convenientemente, as suas instituições precisam estar equipadas adequadamente, para que quando a pessoa precisar do atendimento ela tenha a garantia de que vai ser atendida por gente preparada, em instituição que esteja também adequada.

Matinas Suzuki: Doutor Adib, infelizmente nós já estouramos nosso tempo, eu gostaria de fazer uma perguntinha, se o senhor puder responder rapidamente. O Marcos Freitas, de Franca, diz o seguinte: “O problema todo não está no verbo doar? Porque a população está rejeitando a lei por causa da palavra doar, que para nós, população, significa generosidade, e a lei está tirando o direito de sermos generosos.”

Adib Jatene: Exato, eu já disse isso. Quer dizer, esse é um problema que talvez não precisasse de lei, talvez precisasse de reforçar isso: a generosidade, a solidariedade, a ética, o comportamento moral, a reposição dos valores, a redução das pessoas se moverem por interesses e voltar a se mover por valores; e a sociedade precisa disso. Porque não se constrói uma sociedade em que a desigualdade é a regra, em que a vantagem é a regra. Você, para construir uma sociedade, ela tem que ser fraterna, tem que ser solidária, tem que ser ética. Caso contrário, nós entramos na lei do vale tudo, e na lei do salve-se quem puder, e na lei de levar vantagem, o que na verdade não constrói uma sociedade sadia.

Matinas Suzuki: Muito obrigado, doutor Jatene, mais uma vez pela sua presença esta noite no Roda Viva, obrigado à nossa bancada de entrevistadores, obrigado pela sua atenção e pela sua participação. E eu lembro a você que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite. Até lá, uma boa semana, uma boa noite para todos.

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