Paulo Amarante não está tranquilo com a realidade que o cerca. E nem poderia. O atual cenário político e social do país, marcado por um forte viés conservador emanado do Poder Legislativo e que já traz retrocessos em pautas sociais conquistadas, preocupa um dos principais nomes do movimento sanitário brasileiro. Mas nada disso retira dele a força, a luta e o sonho por uma existência mais humana para todos e, principalmente para aqueles que mais precisam.
Pelo contrário. O coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Esnp/Fiocruz), coordenador do GTSM da Abrasco, Editor Científico da Revista Saúde em Debate e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), dedica-se à organização do 2º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental. O encontro será realizado de 04 a 06 de junho, em João Pessoa (PB) e reunirá estudantes, ativistas, usuários, familiares, gestores e movimentos sociais ligados aos Direitos Humanos e à Saúde Mental.
Uma polifonia representativa daqueles que querem e lutam por um mundo melhor e que contará com Robert Whitaker, jornalista norte-americano dedicado ao tema da indústria farmacêutica e psiquiatria autor do livro e do portal Mad in America; Ernesto Venturini, psiquiatra colaborador de Franco Basaglia no processo de desinstitucionalização manicomial da Itália; Manuel Desviat, uma das referências mundiais sobre reestruturação da atenção em Saúde Mental e editor da revistas espanhola Átopos; Silvia Portugal, professora do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, e Olga Runciman, enfermeira psiquiátrica co-fundadora da rede dinamarquesa Hearing voices, coletivo atuante na discussão e na capacitação de pessoas psicóticas em processo de desmedicalização, entre outros. Todos os convidados das dez mesas e dois grandes debates também estarão também nas rodas de conversa, modelo de diálogo, apresentação e discussão da teoria e da prática adotado nos encontros da Abrasme. “É essa troca que dá uma significação muito grande para quem está apresentando suas ideias, pesquisas e lutas”, acredita Paulo Amarante.
A produção cultural em Saúde Mental também marcará presença, com a participação de grupos como Trem Tan tan e Harmonia Enloquece, além de mostras de vídeo, Feira da Economia Solidária, e demais atividades na espaço da cidade.
Os tempos revoltos e o grande interesse de grupos e organizações levou à prorrogação das inscrições. Trabalhos científicos, relatos de experiências, expositores de EcoSol e projetos culturais tem até 15 de abril para enviar suas contribuições e participar do evento, que assim como a primeira edição, realizada em 2013, marcará e aprofundará as conexões dos Direitos Humanos e da Saúde Mental numa amplificação de vozes que se faz a cada dia mais necessária. Confira a entrevista abaixo e inscreva-se.
Abrasco: Como foi a experiência do 1º Fórum?
Paulo Amarante: O 1º Fórum foi marcante para a construção política da Abrasme. Conseguimos fazer um evento rico em discussões, principalmente, pelo nosso enfoque. Os Direitos Humanos pelos quais lutamos não se restringem aos dos usuários e de seus familiares. Pelo contrário, abarca um posicionamento contra todas as formas de violência, seja o racismo, a discriminação das sexualidades e identidades, o preconceito contra as pessoas com deficiências. São todas agressões que implicam em várias formas de constrangimento e de sofrimento social e mental. Essa inversão foi fundamental, pois conseguimos incluir vários movimentos – de direitos individuais, coletivos, étnicos, de gênero, culturais no Fórum. Essa perspectiva teve ênfase na histórica conferência proferida pelo ex-ministro Paulo de Tarso Vannuchi, que em público disse que não percebia mais a Abrasme apenas como uma entidade da Saúde Mental, mas como uma organização de Direitos Humanos. Daí veio o convite para compôr o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social (Pronacoop) e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade). Perdemos por apenas um voto a titularidade no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), e foi para uma entidade histórica e forte como a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Isso significa uma transformação muito grande para a Abrasme.
Abrasco: Dentro do atual cenário político brasileiro, qual a importância de realizar o 2º FDHSM?
Paulo Amarante: Diante de uma composição das mais conservadoras do Congresso Nacional, a sociedade vivencia um retrocesso em diversas questões éticas e políticas. Umas que já havíamos conquistado na Constituição de 1988, outras são mais recentes. Estamos vendo a discussão sobre a família vir com forte teor homofóbico; posições contrárias às cotas na universidades e nos concursos públicos; propostas privatistas para o SUS; debates como a redução da maioriedade penal. É o momento de lutar para garantir as posições como as do 3º Programa Nacional de DH que estão ameaçadas. É momento de brigarmos pela valorização da tomada de decisões dos Poderes voltada para as políticas públicas, pois são essas as melhores formas de esclarecimento da sociedade para que ela não seja vítima de discursos interessados em produzir de massas de manobras.
Abrasco: Os eventos da Abrasme não seguem o modelo usual dos congressos científicos. Quais são as particularidades que o senhor destaca desses encontros?
Paulo Amarante: Nossa entidade não é tradicional e desde o princípio tem usuários, familiares, ativistas, pesquisadores da Saúde Mental e membros de diversos movimentos sociais. Valorizamos essa composição porque a sociedade tem de opinar sobre os usos e sentidos da ciência. Nessa edição do Fórum queremos ainda mais isso. Abolimos os pôsteres desde os primeiros eventos que realizamos, pois achamos que os mesmos são burocráticos como forma de expôr o conhecimento. Seja um estudo acadêmico ou um relato de experiência, valorizamos a roda de conversa. Serão mesas entre 30 a 40 pessoas com um moderador para auxiliar na na discussão de 6 a 8 apresentações. Durante as rodas, não há eventos paralelos e todos os nossos convidados participam. Em Manaus, durante o 4º Congresso Brasileiro de Saúde Mental [realizado em agosto do ano passado], nomes como Ernesto Venturini e Paul Singer ouviram trabalhos e vivências, o que dá uma significação muito grande para quem está apresentando suas ideias, pesquisas e lutas.
Abrasco: A segunda edição do Fórum traz o tema das cidades e dos territórios. Como as mudanças na dinâmicas urbanas e rurais se relacionam com os Direitos Humanos e a Saúde Mental?
Paulo Amarante: Toda a reunião da Abrasme começamos com uma análise de conjuntura, o que aprendemos com Herbert de Souza, o Betinho, e Sonia Fleury, pois isso ajuda a nos situar na realidade, pôr os pés no chão. Começamos a ver que o processo de reurbanização nas cidades em curso, hoje mais conhecido como gentrificação, têm mostrado uma face ainda maior dos nossos problemas. São feitas verdadeiras expulsões de ordem financeira, cultural e social, ampliando problemas crônicos como racismo e outras formas de discriminação. O mesmo acontece nas transformações do campo e de demais espaços. A partir da discussão de nossas ações nos territórios, queremos destacar o direito à diversidade, defendendo a polifonia de todos os segmentos da sociedade. É um projeto de sociedade em oposição a uma certa visão de comunidade, de origem anglo-saxã e na qual devem-se “ajustar” ações e comportamentos das pessoas, criando uma falsa visão de comunhão.
Abrasco: Com tanta atividade na Abrasme e na ENSP, o senhor ainda ajuda o acompanhamento do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco nos preparativos do 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, onde é presença confirmada. Qual tema irá abordar no Abrascão?
Paulo Amarante: Queremos ampliar o debate que temos hoje sobre a medicalização. Essa é uma questão fundamental na Saúde Publica e nos Direitos Humanos porque a sociedade está sendo emprenhada de doenças. Nos nossos dias, qualquer tipo de insatisfação, mal estar ou conflito é logo medicalizado; tudo vira patológico. Embutida a essa ideia vêm uma série de exames e tratamentos, fazendo da saúde um grande mercado até chegar ao ponto estarrecedor da DSM 5. No entanto, poucos sabem que há diversas experiências de desmedicalização em curso. O movimento do Hearing Voices, uma destas experiências, estará representado no Fórum por uma de suas fundadoras, a Olga Runciman, que também é da organização dos usuários e sobreviventes da psiquiatria na Dinamarca. Porém, os estudos sobre desmedicalização são negados e os resultados não são divulgados, são ocultados, pois os mesmos interesses que vendem as doenças e seus tratamentos controlam as revistas científicas, impedindo o conhecimento de chegar às pessoas. Isso vem sendo denunciado por vários movimentos, como o Stop DSM, formado por médicos e outros profissionais da saúde mental que têm questionado os limites e as responsabilidades éticas, políticas e mercadológicas da sociedade de psiquiatria norte-americana.